Christian Ingo Lenz Dunker – Blog da Boitempo
Resumo
da Ópera
Deputado
federal, militar aposentado, declara para congressista, em espaço público e no
exercício de suas funções: “jamais estupraria você
porque você não merece”. Outro deputado federal, pastor neo-pentecostal,
afirma: “a
podridão dos sentimentos dos homoafetivos leva ao ódio, ao crime, à rejeição”.
Articulista
de jornal de grande circulação comenta:
“De
fato, não acredito que a humanidade aprenda muito em determinadas áreas, entre
elas, romper a cegueira com a própria falha moral: dificilmente somos capazes
de ver as coisas de modo claro quando está em jogo nossa autoestima e nossos
interesses cotidianos. E quando (como no caso de “psicanalistas de esquerda”)
se afirma que existe uma “clínica política” para questões como essas, o
ridículo da coisa é maior ainda.” (Luis Felipe Pondé, “O quarto escuro”, Folha de S.Paulo)
Ao
que é ecoado por outro luminar do pensamento liberal:
“E
é possível observar a baba de ódio escorrendo do canto de suas bocas[dos
psicanalistas de esquerda] quando falam dos “conservadores”, dos
“liberais”, ou dos Estados Unidos e Israel. Pergunta: o psicanalista de
esquerda arriscaria a própria vida para salvar Jair Bolsonaro numa eventual
ditadura bolivariana?” (Rodrigo Constantino, “Psicanalistas de esquerda e a covardia
moral, Blog da Veja)
Que
por sua vez teria sido precedido por uma síntese de conjunto, uma afirmação
mais ampla e circunstanciada, que inclui os casos anteriores:
“Sei,
muitos ainda negam a ideia de que exista um processo de destruição da liberdade
de pensamento no Brasil. Mas, uma das razões que fazem este processo ser
invisível é porque a maior parte dos intelectuais, professores, jornalistas,
artistas e agentes culturais diversos concorda com a destruição da liberdade de
pensamento no Brasil, uma vez que são membros da mesma seita bolivariana.” (Luis Felipe Pondé, “Diálogo ou secessão”, Folha de S.Paulo)
O
que fazer?
Declarações
homofóbicas, misóginas, racistas, preconceituosas ou meramente agressivas como
estas podem receber objeção, reprimenda jurídica ou reação institucional. O
problema de tais discursos é que eles fazem com que pessoas propensas a atos de
preconceito se sintam ainda mais legitimadas a pensar, dizer e finalmente agir
de modo segregatório.
Contudo,
como fazem parte de nosso debate público nos resta trabalhar para que aqueles
que disseminam tais ideias sejam reprovados politicamente nas próximas eleições
ou nas próximas consultas públicas para definir novos articulistas. Tais
declarações despertam reações de protesto e críticas individuais ou coletivas,
mas não um desejo de censura. A indignação é contida em nome da lei maior da
liberdade de expressão, ou pelo espírito burocrático e leniente que ainda
vigora quando o assunto são os crimes da palavra.
Parece
pouco.
Alguns
advogam que a melhor atitude neste caso seria a indiferença. Considerados como
anacronismos sociais, tais exageros opinativos seriam gritos de quem resiste à
mudança até o fim, uma espécie de intensificação do sintoma antes que ele seja
abandonado. Ou então seriam expressão de um desejo de chamar a atenção,
capitalizando o descontentamento com brados cada vez mais altos e
intimidadores. Creio que esta tática de deflação narcísica, baseada na recusa
ao reconhecimento, no silêncio obsequioso e na tolerância paciente, acredita
demasiadamente que o debate público é uma questão de combate entre os
“juntadores” de opinião. Cedemos assim à ideia de que tudo é uma questão de
audiência, espetáculo ou de luta pela “aparecência”.
Ainda
parece pouco.
Partilho
do sentimento generalizado de que há uma pobreza de meios para lidar com tais
excessos. Pobreza que nem uma lei de imprensa poderia evitar. Processos
jurídicos, por difamação, calúnia ou injúria, execuções penais por crime de
racismo, Comitês de Ética, falta de decoro parlamentar, até mesmo a execração
pública de lado a lado são sentidos como instrumentos tímidos e impotentes.
Quando questões de tratamento e respeito mútuo chegam neste acirramento o
processo tende a caminhar pela força da lei ou pela arte da guerra. Ocorre que
declarações como estas são de difícil trato em termos da coisa pública.
O
que deveríamos fazer? Um plebiscito para saber se Bolsonaro merece ou não ser
estuprado? Uma escola de re-educação, semelhante à que impomos aos maus
motoristas, na qual Feliciano seria obrigado a passar alguns meses em
convivência íntima com homossexuais? Um curso de estatística para fazer Pondé
reaprender o conceito de “maioria” ou outro curso de filosofia para entender
que significa “liberdade de pensamento”? Um exame toxicológico de hidrofobia
para mostrar a Constantino que a “baba de ódio que escorre pela boca dos
psicanalistas de esquerda” é imaginária, não contagiosa e tem poderes
terapêuticos contra o neoliberalismo?
Divã
político
Ainda
que saibamos que não se pode recomendar a psicanálise para alguém, e que o
tratamento só funciona se houver um movimento da própria pessoa de buscar
ajuda, às vezes vem a tentação, vem o desejo de testar os limites do seu
próprio desejo de analista. Isso provém do sentimento, quiçá delirante, de que
muita humilhação e constrangimento poderia ser evitado, para o próprio e para
os que o cercam, se o tal se dispusesse a falar livremente, em situação de
sigilo e suspensão de julgamento, sobre seus fantasmas e tormentos. Sim, quero
crer que está faltando um tanto de divã político para esta turma.
Se
pudesse colocá-los todos no divã o primeiro passo do tratamento seria recusar a
falsa divisão da qual eles acham que estão sofrendo, entre PT e anti-PT, entre
bolivarianos e anti-bolivarianos, entre “inteligentinhos” e “burrinhos”, entre
“nós” e “eles”, entre os que são contra a corrupção e os outros que seriam… o
quê, a favor da corrupção? Melanie Klein chamou isso de posição
esquizo-paranóide. Primeiro dividir entre bons e maus, depois demonizar o outro
e em seguida sentir-se perseguido pelo que projetamos neste outro a partir do
que não podemos suportar em nós mesmos.
Não
é que não existam mais esquerdas e direitas, mas existem muitas esquerdas e
muitas direitas. Quero crer que uma divisão mais aceitável em termos
psicanalíticos se daria entre universalistas, que entendem que a essência
universal do sujeito é dividida e vazia, e os particularistas, que tentam
ocupar tal essência com traços positivos e contingentes, de sexo, de gênero, de
religião, de raça, de orientação política ou de classe. O desafio para os
universalistas está em saber como definir quem estaria além das palavras e da
razão. Para um psicanalista estas figuras constituem o limite do analisável, a
fronteira final que nosso desejo pode suportar. Casos limites para o exercício
do método e da ética que lhe cabe.
Recentemente
estive na exposição Topographie
des Terrors [Topografia do terror] junto ao que sobrou do muro de
Berlin. O material iconográfico detalha minunciosamente o processo jurídico e
institucional pelo qual o nazismo se impôs como uma solução inesperada depois
dos anos de avanço cultural e liberdade da República de Weimar. Um dado ressoou
forte com nossa situação brasileira. A primeira lei, que uma vez aprovada
parece ter desencadeado a progressiva institucionalização da barbárie, tratava
de um assunto um tanto esquecido: a eliminação dos pacientes incuráveis ou
terminais. Antes de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e demais formas
de vida não arianas, o regime introduziu a ideia teste de que existem “certas
pessoas” que “nós” não podemos suportar. Uma vez aceito este princípio de que
há condições, crenças ou disposições morais que não têm direito à existência,
está instituído o processo de segregação, cujo capítulo seguinte será a
inexorável expansão do tipo de diferença sentida como intolerável. Portanto, o
segundo ponto do tratamento conjectural desta nova direita brasileira passaria
pela inoculação da dúvida sobre a consistência real de seus inimigos.
Estou
certo que aqui Rodrigo Constantino voltaria a me perguntar sobre a idoneidade
de minhas intenções e sobre a pureza de meu desejo de psicanalista. Mostraria
então o título desta coluna: sim, estou disposto a arriscar a vida para
salvar Jair Bolsonaro da ditadura bolivariana. Não quero que ele seja excluído
da condição de voz ativa e saliente no debate público de nosso país. Mas,
convenhamos, ele deve se comportar melhor. Há que se ter um pouco de
compostura. Talvez a análise ajude com isso. Mais do que um reformatório
militar.
O
tratamento deste discurso não se justifica apenas em nome de algum sintoma ou
diagnóstico que torna esta atitude uma figura patológica ou moralmente
execrável. Você não precisa se reconhecer de saída como um fraco, covarde
molestador de mulheres, basta admitir que existem pontos que talvez valha a
pena colocar em discussão, digamos, em foro íntimo. É possível sim, rever pontos
de vista, mesmo quando nossos interesses estão em jogo, mesmo que isso ofenda
nossa autoestima, o método para isso chama-se psicanálise.
Gente
como Habermas viu neste método um exemplo de exercício da razão comunicativa,
outros como Foucault entendiam que ela seria um caso do dispositivo de
confissão e disciplina. Veja, Bolsonaro, pela esquerda ou pela direita é
possível que o senhor se sentisse em casa para rever suas posições e aceitar o palpite
amigo de Reinaldo Azevedo: peça desculpas. A capacidade de voltar atrás é
um grande sinal de saúde psíquica. Acredite, você não se tornará menos macho
por pedir desculpas a uma colega de trabalho.
Este
seria o momento de resistência do tratamento. Seria forçado a reconhecer que a
expressão “psicanálise de esquerda” é, de fato, um contra senso, não sem antes
lembrar que não fui eu a empregá-la pela primeira vez nesta conversa. Freud
definiu a psicanálise como um método de tratamento, um método de pesquisa e uma
teoria que reúne e se transforma a partir da clínica assim praticada. Há um grande
consenso nesta matéria: a psicanálise é uma ciência laica, não é uma visão de
mundo e, portanto, não pode ser nem conservadora nem liberal, nem comunista nem
capitalista, nem de esquerda nem de direita.
Mas
a psicanálise não opera sem psicanalistas e estes são muito mais terrenos do
que os métodos nos quais acreditam. É por isso que desde Lacan entende-se
também que a psicanálise é uma ética. Uma ética que coloca em seu centro o
desejo em sua dimensão trágica. Uma ética que começa pela suspensão do julgamento
e do interesse no serviço dos bens baseando-se em seguida na associação livre.
Neste ponto talvez nos depararemos com a ideia de que a experiência
psicanalítica tem no seu centro o conflito, tratando pela palavra, gerido no
interior de uma relação. Aqui o conflito não será eliminado pela força, mas
tratado pela palavra, exatamente como na política. Tanto faz se contra isso
enfrentaremos ilusões de bondade ou de maldade sobre nós mesmos, teremos que
atravessar tais ilusões.
Chegará
então o momento em que ficará claro que seu psicanalista não pode ser parte de
uma “seita bolivariana” porque ele não opera a partir de sua própria identidade
de classe, gênero e orientação moral. Ele não está tentando convencer você a
ser outra pessoa, apenas tentando entender porque você precisa tanto de
inimigos.
Aqui
nos lembraremos de Pondé para quem a psicanálise é uma ética sem consequência
política, para perceber que uma análise nestes termos é operação ganha-ganha.
Se esta ética, que busca o bem individual, não tem nada que ver com a política,
que orienta-se pelo bem comum, então não há risco, só potenciais ganhos. Por
dever de ofício estamos impedidos de julgá-los em praça pública, que é o que
está acontecendo agora. Pensem bem, os senhores que defendem a cura gay, a cura
pela palmada, a cura pelo estupro, não estariam mais à vontade com algo bem
mais simples e tradicional, como a cura pela palavra?
Estou
sugerindo que muitas vezes é mais fácil assumir processos jurídicos, responder
a comitês de ética, fazer cursos e penitências nominais e públicas, pagar
indenizações, do que um gesto mínimo de mudança subjetiva como pedir desculpas.
É grátis. Quase tão simples quanto instruir seu filho a não participar de comícios e manifestações
públicas de massa com um revólver na cintura. Não temam. Se Pondé e
Constantino estão certos, em nenhum caso a sua reflexão ética afetará suas
disposições políticas. Uma viagem de palavras, sobre nossos inimigos
imaginários mais privados não vai alterar jamais suas crenças públicas sobre
mulheres, educação, sexualidade ou o sentido da família e da comunidade,
incluindo-se aí bandidos e estupradores. Então, Bolsonaro, vem aqui, deita no
meu divã!
A Boitempo
prepara para breve o novo livro de Christian Dunker: Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil
entre muros. A integrar a coleção Estado de Sítio, coordenada por
Paulo Arantes, o livro parte de uma psicanálise da vida
em condomínios para desenvolver uma aprofundada
reflexão interdisciplinar sobre a privatização do espaço público
e a inserção da psicanálise no Brasil. Confira a aula dele, no Café
filosófico do CPFL Cultura, sobre as transformações no sofrimento psíquico: VER VÍDEO
Christian
Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de
Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do
Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da
USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume,
2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em
2012, seu livro mais recente é Mal-estar,
sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo,
no prelo). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva
Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão
diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente,
às quartas.
Na
foto: Deputado Jair Bolsonaro forma um coração com as mãos durante sessão, no
Plenário em 10.12.2014. Ele pediu a palavra para
reiterar suas ofensas à deputada Maria do Rosário.
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