PORQUE
É IMPROVÁVEL A DESTITUIÇÃO DO GOVERNO, APESAR DA DELICADA COABITAÇÃO DO
PRESIDENTE COM O PRIMEIRO-MINISTRO?
Timóteo
Saba M’bunde* – O Democrata (gb), opinião
Já
havia indícios insofismáveis de que a relação do Presidente da República com o
Primeiro Ministro da Guiné-Bissau não é das melhores. Portanto, a declaração do
Presidente no último dia 1 de maio, externando sua preocupação com o que
qualificou de elevado índice de corrupção na administração pública,
independentemente de sua veracidade, pela forma que foi expressa corrobora e
faz transparecer o estridente estado de mal-estar entre ele e o chefe do
Governo.
Contudo,
o momento que evidenciou com maior contundência a sua rivalidade foi o período
que sucedeu à demissão do ex-ministro de Administração Interna, Botche Candé.
Demitido em novembro de 2014, o sucessor de Candé, Octávio Alves, veio a ser
dado posse só em 6 de março de corrente ano. O intervalo de praticamente quatro
meses em que o Ministério de Administração Interna – instituição cuja função
chave é aprovisionar a ordem e segurança dentro das fronteiras do país – ficou
sob tutela de um ministro interino (o secretário de Estado da Ordem Pública foi
provisoriamente elevado ao cargo de ministro) se deve à intransigente
dissonância do Presidente da República e o chefe do executivo em torno de um
nome consensual para assumir a referida pasta. Penso que a cedência de uma das
partes decorreu da necessidade de transmitir aos doadores internacionais,
naquele momento, a impressão de inexistência de rivalidades entre o executivo e
a presidência da República e dentro das próprias estruturas do Partido Africano
para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – haja vista que a mesa
redonda se realizaria em Bruxelas, dia 25 do mesmo mês. Lembra-se também que
Simões Pereira, durante um discurso alusivo ao dia 20 de janeiro (data
comemorativa do assassinato de Amílcar Cabral) na sede do PAIGC, obsecrou à
elite política do PAIGC – meio em que não há consenso em torno de sua figura –
voto de confiança.
Bem,
o semipresidencialismo é o sistema político da Guiné-Bissau e, portanto, a
constituição do país reparte, teoricamente, o poder entre o Presidente da
República (chefe de Estado) e o Primeiro Ministro (chefe do Governo/Executivo).
Entretanto, conforme consta no ponto 2 do artigo 1040 da carta magna
guineense, realmente o sistema político em questão responde por um
semipresidencialismo presidencial. A despeito do Governo e o Presidente da
República serem eleitos em fóruns eleitorais distintos, eleições legislativas e
presidenciais, respectivamente, o Presidente é assistido constitucionalmente a
destituir o Governo e o Primeiro Ministro em algumas situações. De acordo com o
supracitado artigo, “o Presidente da República pode demitir o Governo em caso
de grave crise política que ponha em causa o normal funcionamento das
instituições da República, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos políticos
com assento parlamentar”.
Tudo
bem. Mas em quais condições pode-se dizer que há grave crise política que ponha
em causa o funcionamento normal das instituições? As respostas a esta questão
são múltiplas e permanecem no âmbito subjetivo. A questão é que o ponto 2 do
artigo 1040 nutre hermenêuticas ambíguas, estando à mercê de
interpretações e enviesamentos diversos, além de potenciais arbitrariedades
políticas que nele repousam. Mas, paradoxalmente, é um dispositivo que oferece
condições práticas ao Presidente a viabilizar politicamente o país em eventuais
situações de ingovernabilidade e em estado de interrupção de relação
interinstitucional. Entretanto, se tratando de um país cuja democracia é jovem,
esse dispositivo constitucional deveria ser retrabalhado no sentido de ser protegido
de interpretações ambíguas, haja vista que esse artigo assistiu, no passado,
aos saudosos Presidentes Vieira e Yalá a derrubarem vários chefes do Governo e
respectivos Governos.
Voltemos
à questão central do presente artigo. O Presidente José Mário Vaz poderia
lançar mão desse mesmo artigo para derrubar constitucionalmente Domingos Simões
Pereira e seu Governo, uma vez que há rivalidades e mal-estar entre os dois?
Seria muito difícil, ou seja, insustentável, pelo menos a curto prazo. Penso
que não há condições reais e substanciais que justificam a deposição do
Governo. No hodierno contexto sócio-político guineense, eventuais deliberações
políticas substantivas – mormente as que tendem a provocar significativas
mudanças estruturais de cunho institucional – tomadas à luz de dissimulações
jurídicas e legais tendem a produzir resultados graves e contraproducentes a
todos. Portanto, a ponderação política sustentada na real evolução conjuntural
do país torna-se fundamental.
A
Guiné-Bissau acaba de sair de um período de transição política (2012-2014)
decorrente do golpe de Estado de 12 de abril de 2012, no qual o país conheceu
um dos períodos mais críticos de sua história pós-independência, tendo sido
suspenso da maioria de organizações internacionais – inclusive da União
Africana – e sofrido cortes de recursos oriundos de cooperação internacional
para o desenvolvimento (discordo veementemente dessa política de
condicionalidade, mas essa análise fica para outra ocasião). A suspensão de
cooperação com o Governo da Guiné-Bissau – país dependente de recursos de
cooperação internacional – era justificada pela boa parte de comunidade
internacional, especialmente pelo Ocidente, como pressão para que o país possa
trilhar caminhos de estabilidade política e institucional, desencorajando
práticas de golpe de Estado.
Com
a eleição de novos órgãos de soberania nacional, a qual permitiu que o país
saísse do já referido árduo quadro sócio-político e econômico, criou-se interna
e externamente boa expectativa em relação ao desempenho do atual governo, cujos
resultados, até aqui, pode-se considerar razoáveis – não desconsiderando,
contudo, o alerta do Presidente sobre notável grau de corrupção. Todavia, entre
outras coisas, as relações do país com a comunidade internacional se restabeleceram,
naturalmente, e o governo obteve, a título de promessa (uma boa parte será a
título de empréstimo), recursos financeiros que giram em torno de US$ 1,5
mil milhões, no recente encontro com seus parceiros internacionais em Bruxelas. Ademais ,
o chefe do Governo, Simões Pereira – ex-secretário executivo da Comunidade dos
Países da Língua Oficial Portuguesa (CPLP) – conta com amplo capital
político-diplomático internacional, especialmente de Portugal – número
considerável de viagens do Primeiro Ministro a Portugal revela o quanto a
ex-metrópole tem ocupado (voltou a ocupar) um lugar de destaque na política
externa do atual Governo.
No
plano doméstico, o Governo de Pereira conseguiu cooptar a elite política do
Partido de Renovação Social – a principal força de oposição. Ao concedê-la
alguns cargos ministeriais, asfixia a sua legitimidade política de oposição
crítica à sua governação. No que concerne à relação com as Forças Armadas, me
parece que o executivo tem conseguido estabelecer relação de diálogo pertinente
com a classe castrense, cujo objetivo é minorar espíritos de desconfianças
entre os dois atores, os quais caracterizaram historicamente sua relação,
sobretudo desde o conflito político-militar de 1998. É nesse sentido que as
reformas no setor de segurança e defesa devem merecer muita transparência,
sendo uma matéria muito sensível à segurança do Estado e do próprio Governo.
Todo
esse cenário de otimismo, sobretudo em termos de efetivação de estabilidade e
paz duradouras que se vive no país depois de fatídicos dois anos de transição
política, fortalece a legitimação do Governo pela comunidade internacional e
sociedade guineense. Neste último caso, o povo já demonstra estar fatigado de
distúrbios políticos, e pela história e experiência própria – a despeito de
considerável índice de analfabetismo – o cidadão comum guineense já adquiriu
consciência de que a instabilidade político-institucional é potencial fator de
estagnação e/ou retrocesso socioeconômico. Desta feita, o povo não seria
transigente em estigmatizar atores de eventuais iniciativas (de destituição do
Governo ou coisa de gênero) que ponham em causa a estabilidade que se busca no
país. E os parceiros internacionais não só tenderiam a virar as costas ao país,
como também tenderiam a suspender seus recursos de cooperação.
Sendo
assim, o Presidente Mário Vaz, devido à sua consciência sobre a atual
conjuntura política do país, não arriscará um ato que poderá pôr em risco sua
imagem política. Por isso, apesar de ser verdade que as coisas mudam na
política rapidamente, é improvável que ele ouse a destituir o governo. Acho que
a delicada coabitação do chefe de Estado com o chefe do executivo tende a
limitar-se a nível pessoal e pode até atravessar o domínio político (a exemplo
do braço-de-ferro em torno de nomeação do ministro de Administração Interna),
mas nada que pressuponha “extermínio político” de um ou outro, pelo menos a
curto prazo, digo a curto prazo.
*
Mestre em Ciência
Política
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