Gustavo
Borges Revilla - Misión Verdad – Opera Mundi
Não
pode ser uma anedota desse tempo a representação trágica e completa que cerca a
foto do menino, mas o terrível é que essa criança é uma anedota
É
apenas uma pequena ironia que o choro hipócrita da Europa inteira esteja
concentrado na desoladora
foto do menino sírio afogado, morto, assassinado na tentativa de fugir
com a sua família, levado cinicamente pelas ondas de uma praia turca. Porque a
Turquia é hoje um antro de cinismo.
É
provável que a Síria seja o país onde está retratada agora mesmo toda a miséria
do humanismo, do humano, do grito poderoso do poderoso, da liberdade como
argumento fundacional do mundo tal qual o conhecemos. Não pode ser uma anedota
desse tempo a representação trágica, complexa e completa que cerca a foto do
menino, mas o terrível, o que é realmente aterrorizante, é que o é, essa
criança é uma anedota.
Também
existem meninos no campo de refugiados de Yarmouk (Síria), em La Guajira
(Colômbia), em Donetsk (Ucrânia), em Gaza, em Juárez, (México), no Rio de
Janeiro, como ele, mas isso não importa, nada importa frente à desoladora
indolência que instituiu o cinismo humanista como a velha indústria da morte.
Não existiria Europa hoje sem as pupilas dilatadas da morte, da guerra, sem o
oxigênio que fez com que a cidade de Trípoli, na Líbia, fosse arrasada no
século XXI, assim como toda a América desde o século XV. Seus rios hediondos
não seriam suficientes para comparar a quantidade de litros de sangue derramada
por nós, as vítimas de seu nome. Essa foto do menino sírio não serve para nada,
ou, melhor dito, se serve, serve para retratar que isso é o que eles são, essa
foto é seu mais alto escalão moral, é sua mais exata declaração de princípios,
é o oxigênio que inalam as centenas de filhos da puta que agora mesmo
contemplam a torre Eiffel com um golinho de nosso café em sua maldita e
pestilenta boca.
Não
existe mar, por mais bravo que esteja, por mais fundo que seja, que não podem
ter; não há canto do planeta, por mais inóspito que seja, por mais alto que
seja, que não podem visitar; não há comida nesse mundo, por mais rara que seja,
por mais longe que esteja, que não podem comer. Esses merdas, os donos do
mundo, têm tudo, ocuparam tudo, não falta uma pedra para ser comprada, vendida,
consumida. Todas as pedras do planeta lhes pertencem, mas nada sacia um cérebro
ocupado pela propriedade e pelo ego, porque é isso, em sua mais infantilíssima
simplicidade, é o ego a razão fundamental de seu plano: ser deus depois de ter
matado Deus.
Eles
não são os maus, nem nós somos os bons. Não é com essa lógica binária com a
qual atrofiaram nossos cérebros que vamos compreender esse momento complicado.
Porque no fundo nós somos um pouco como eles, somos também ego próprio e ego de
outro, somos proprietários sem propriedade, mas também somos propriedade de
outro como nós mesmos, somos também patrões sem escravos e escravos de outro,
que é também nós mesmos. E no fundo, eles também são nós, sem seus planos para
acabar conosco é impossível essa possibilidade de sonhar ser outro, em outros
tempos, nos quais nem eles nem nós sejamos essa tragédia, nos quais sejamos
outra coisa, que não sabemos porque ainda não sonhamos com ela. Estamos a um
passo desse atrevimento, mas o certo é que ainda não nos atrevemos. Eles sim,
eles sim estão se atrevendo e os sírios sabem, os líbios sabem, os colombianos
sabem disso.
O
outro é o exercício do hipócrita, a denúncia estéril, a indignação de mentira,
cínica, a pose. Na comodidade intelectual não é legítima nenhuma dor, ainda que
seja sentida, porque é uma dor comprada e vendida inclusive antes da sua
existência, interessada, condicionada pela maquinaria maldita da informação. A
dor mundial pela foto do menino foi vendida para nós pela Europa e pelos
Estados Unidos quando fecundaram o “Exército Livre da Síria” nos ovários da
opinião mundial, e só agora é que compramos indignados, como fiéis autômatos,
convencidos em acreditar nisto
e naquilo. Sabemos da foto porque algum “profissional” chegou perto da praia e
a fez, pensou nela, a vendeu, cobrou por ela, a foto é apenas uma pequena
tragédia, seu entorno é ainda mais miserável que ela mesma. Não pode doer
somente o que se vê porque não é que estamos vendo somente a nós mesmos, é o
medo do que disfarçamos, a dor, o medo de que sejamos nós os da foto, nossa
prole; no fundo, muito no fundo, não damos a mínima para esse merdinha sírio.
Veja
homenagens ao menino feitas na internet:
Age
de má fé quem ainda não compreende ou se nega a compreender: nós somos uma
criação da Europa. Somos seu desenho filosófico, somos seu sonho na exatidão
mais brutal, somos seu costume e pensamento. Sua liberdade, sua igualdade, sua
fraternidade. Quando Pérez Venta esquartejava em sua própria casa a senhora
[Liana] Hergueta[1], estava
exercendo seu direito à sacrossanta liberdade, estava sendo nada mais que a
Europa. É mentira que são os gringos, esses retardados nunca produziram
pensamento, é mentira que inventaram e aperfeiçoaram a guerra. São apenas a mão
de obra barata para a guerra de outras pessoas que sim, pensaram. Porque a
história não é essa besteira hollywoodiana que nos contam. Não tem um início,
um desenrolar e um final. A história não acontece em pedaços, nem é uma linha.
Quase ninguém no planeta vai se doer por Palmira[2] nem pelos
sepultados da La
Escombrera[3], mas aí está também a história, a mesmíssima história da
Europa no século à sua escolha: a ocupação, a exploração e a morte.
E
por que caralho seguimos então ansiados pelas ruas de Paris e seus malditos
museus? Por que queremos ir embora? Aí é onde estão os calos dos nossos avós. A
Europa é construção nossa porque se fez com a nossa tragédia, com nossas mãos e
sangue. Mas se fez também com a ideia deles, com o pensamento deles, com seu
desenho político para um planeta inteiro. E nós hoje continuamos preocupando-nos
com um pote de xampu idiota. E onde está nosso sonho? Qual é o nosso desenho
político para o planeta inteiro? Onde está o pensamento que vai tirar nossos
netos desse desastre? Onde termina a choradeira existencialista da
insatisfação?
Eu
sei que é uma merda perceber que nunca tivemos um país nosso, mas é pior não
perceber, ou perceber e trair a possibilidade de parar a tragédia. O
ex-presidente do Real Madrid Ramón Mendoza o dizia melhor: “o sonhador não
abandona o sonho para acompanhar outros sonhos, se é assim o abandonado estava
em si mesmo, e quem se supunha sonhador não o era, porque ninguém pode trair
seus sonhos sem se trair”.
Não
me fale de conjuntura se sua prática é dividir.
O
perigo mais paralisante está em tentar ser algo que não somos, esse menino foi
para a Europa obrigado, tirado por bombardeios de sua raiz. Eu não sei quais
eram suas ambições, nem as de sua família, mas a realidade indica que o 1% está
decidido a apagar do mapa tudo o que represente uma possibilidade de ser
autêntico, de ser gente, de sentir o rugir do Apure imortal sem ambicioná-lo,
ou de jogar um anzol por horas inteiras nas praias da cidade síria de Latakia, temem a nossa
decisão de nos enraizar culturalmente longe deles. Longe de sua lógica
produtiva e moderna.
A
guerra desses caras aponta para nosso cérebro, não porque seja mais certeiro
atirar ali, mas porque no cérebro está a possibilidade única do pensamento que
os nega, que nos nega como indivíduos. Está a possibilidade da criação, da
construção íntima do ser coletivo a partir da mais profunda reflexão
individual.
Mas
há outros homens e outros meninos que
romperam com o cinismo. O esforço está em ser um pouco mais como eles, ser um pouco
mais nós e sublimarmos na horda, nos perdermos no tumulto sem a
possibilidade da traição.
*
Texto publicado originalmente no site Misión
Verdad
[1] Nota da Tradução: Liana Hergueta foi
encontrada morta e esquartejada na Venezuela, aos 53 anos, com indícios de
abuso sexual. Os autores do assassinato foram ligados a paramilitares
colombianos e membros da oposição venezuelana. O assassinato revelou a existência
de uma rede de 30 grupos paramilitares, treinados na Colômbia e com vínculos
nos Estados Unidos, com o propósito de provocar atos violentos na Venezuela,
segundo afirmou o presidente Nicolás Maduro
[2] NT: Três famosas torres funenárias
explodidas pelo Estado Islâmico na antiga cidade de Palmira, no deserto sírio
[3] “O lixão”- depósito de entulho na
cidade de Medellín, na Colômbia, onde estima-se que até 300 pessoas, vítimas de
violência, tenham sido enterradas
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