sábado, 5 de setembro de 2015

O MENINO SÍRIO OU O RETRATO DO MISERÁVEL SONHO EUROPEU



Gustavo Borges Revilla - Misión Verdad – Opera Mundi

Não pode ser uma anedota desse tempo a representação trágica e completa que cerca a foto do menino, mas o terrível é que essa criança é uma anedota

É apenas uma pequena ironia que o choro hipócrita da Europa inteira esteja concentrado na desoladora foto do menino sírio afogado, morto, assassinado na tentativa de fugir com a sua família, levado cinicamente pelas ondas de uma praia turca. Porque a Turquia é hoje um antro de cinismo.

É provável que a Síria seja o país onde está retratada agora mesmo toda a miséria do humanismo, do humano, do grito poderoso do poderoso, da liberdade como argumento fundacional do mundo tal qual o conhecemos. Não pode ser uma anedota desse tempo a representação trágica, complexa e completa que cerca a foto do menino, mas o terrível, o que é realmente aterrorizante, é que o é, essa criança é uma anedota.

Também existem meninos no campo de refugiados de Yarmouk (Síria), em La Guajira (Colômbia), em Donetsk (Ucrânia), em Gaza, em Juárez, (México), no Rio de Janeiro, como ele, mas isso não importa, nada importa frente à desoladora indolência que instituiu o cinismo humanista como a velha indústria da morte. Não existiria Europa hoje sem as pupilas dilatadas da morte, da guerra, sem o oxigênio que fez com que a cidade de Trípoli, na Líbia, fosse arrasada no século XXI, assim como toda a América desde o século XV. Seus rios hediondos não seriam suficientes para comparar a quantidade de litros de sangue derramada por nós, as vítimas de seu nome. Essa foto do menino sírio não serve para nada, ou, melhor dito, se serve, serve para retratar que isso é o que eles são, essa foto é seu mais alto escalão moral, é sua mais exata declaração de princípios, é o oxigênio que inalam as centenas de filhos da puta que agora mesmo contemplam a torre Eiffel com um golinho de nosso café em sua maldita e pestilenta boca.

Não existe mar, por mais bravo que esteja, por mais fundo que seja, que não podem ter; não há canto do planeta, por mais inóspito que seja, por mais alto que seja, que não podem visitar; não há comida nesse mundo, por mais rara que seja, por mais longe que esteja, que não podem comer. Esses merdas, os donos do mundo, têm tudo, ocuparam tudo, não falta uma pedra para ser comprada, vendida, consumida. Todas as pedras do planeta lhes pertencem, mas nada sacia um cérebro ocupado pela propriedade e pelo ego, porque é isso, em sua mais infantilíssima simplicidade, é o ego a razão fundamental de seu plano: ser deus depois de ter matado Deus.

Eles não são os maus, nem nós somos os bons. Não é com essa lógica binária com a qual atrofiaram nossos cérebros que vamos compreender esse momento complicado. Porque no fundo nós somos um pouco como eles, somos também ego próprio e ego de outro, somos proprietários sem propriedade, mas também somos propriedade de outro como nós mesmos, somos também patrões sem escravos e escravos de outro, que é também nós mesmos. E no fundo, eles também são nós, sem seus planos para acabar conosco é impossível essa possibilidade de sonhar ser outro, em outros tempos, nos quais nem eles nem nós sejamos essa tragédia, nos quais sejamos outra coisa, que não sabemos porque ainda não sonhamos com ela. Estamos a um passo desse atrevimento, mas o certo é que ainda não nos atrevemos. Eles sim, eles sim estão se atrevendo e os sírios sabem, os líbios sabem, os colombianos sabem disso.

O outro é o exercício do hipócrita, a denúncia estéril, a indignação de mentira, cínica, a pose. Na comodidade intelectual não é legítima nenhuma dor, ainda que seja sentida, porque é uma dor comprada e vendida inclusive antes da sua existência, interessada, condicionada pela maquinaria maldita da informação. A dor mundial pela foto do menino foi vendida para nós pela Europa e pelos Estados Unidos quando fecundaram o “Exército Livre da Síria” nos ovários da opinião mundial, e só agora é que compramos indignados, como fiéis autômatos, convencidos em acreditar nisto e naquilo. Sabemos da foto porque algum “profissional” chegou perto da praia e a fez, pensou nela, a vendeu, cobrou por ela, a foto é apenas uma pequena tragédia, seu entorno é ainda mais miserável que ela mesma. Não pode doer somente o que se vê porque não é que estamos vendo somente a nós mesmos, é o medo do que disfarçamos, a dor, o medo de que sejamos nós os da foto, nossa prole; no fundo, muito no fundo, não damos a mínima para esse merdinha sírio.

Veja homenagens ao menino feitas na internet:

Age de má fé quem ainda não compreende ou se nega a compreender: nós somos uma criação da Europa. Somos seu desenho filosófico, somos seu sonho na exatidão mais brutal, somos seu costume e pensamento. Sua liberdade, sua igualdade, sua fraternidade. Quando Pérez Venta esquartejava em sua própria casa a senhora [Liana] Hergueta[1], estava exercendo seu direito à sacrossanta liberdade, estava sendo nada mais que a Europa. É mentira que são os gringos, esses retardados nunca produziram pensamento, é mentira que inventaram e aperfeiçoaram a guerra. São apenas a mão de obra barata para a guerra de outras pessoas que sim, pensaram. Porque a história não é essa besteira hollywoodiana que nos contam. Não tem um início, um desenrolar e um final. A história não acontece em pedaços, nem é uma linha. Quase ninguém no planeta vai se doer por Palmira[2] nem pelos sepultados da La Escombrera[3], mas aí está também a história, a mesmíssima história da Europa no século à sua escolha: a ocupação, a exploração e a morte.

E por que caralho seguimos então ansiados pelas ruas de Paris e seus malditos museus? Por que queremos ir embora? Aí é onde estão os calos dos nossos avós. A Europa é construção nossa porque se fez com a nossa tragédia, com nossas mãos e sangue. Mas se fez também com a ideia deles, com o pensamento deles, com seu desenho político para um planeta inteiro. E nós hoje continuamos preocupando-nos com um pote de xampu idiota. E onde está nosso sonho? Qual é o nosso desenho político para o planeta inteiro? Onde está o pensamento que vai tirar nossos netos desse desastre? Onde termina a choradeira existencialista da insatisfação?

Eu sei que é uma merda perceber que nunca tivemos um país nosso, mas é pior não perceber, ou perceber e trair a possibilidade de parar a tragédia. O ex-presidente do Real Madrid Ramón Mendoza o dizia melhor: “o sonhador não abandona o sonho para acompanhar outros sonhos, se é assim o abandonado estava em si mesmo, e quem se supunha sonhador não o era, porque ninguém pode trair seus sonhos sem se trair”.

Não me fale de conjuntura se sua prática é dividir.

O perigo mais paralisante está em tentar ser algo que não somos, esse menino foi para a Europa obrigado, tirado por bombardeios de sua raiz. Eu não sei quais eram suas ambições, nem as de sua família, mas a realidade indica que o 1% está decidido a apagar do mapa tudo o que represente uma possibilidade de ser autêntico, de ser gente, de sentir o rugir do Apure imortal sem ambicioná-lo, ou de jogar um anzol por horas inteiras nas praias da cidade síria de Latakia, temem a nossa decisão de nos enraizar culturalmente longe deles. Longe de sua lógica produtiva e moderna.

A guerra desses caras aponta para nosso cérebro, não porque seja mais certeiro atirar ali, mas porque no cérebro está a possibilidade única do pensamento que os nega, que nos nega como indivíduos. Está a possibilidade da criação, da construção íntima do ser coletivo a partir da mais profunda reflexão individual.

Mas há outros homens e outros meninos que romperam com o cinismo. O esforço está em ser um pouco mais como eles, ser um pouco mais nós e sublimarmos na horda, nos perdermos no tumulto sem a possibilidade da traição.

* Texto publicado originalmente no site Misión Verdad

[1] Nota da Tradução: Liana Hergueta foi encontrada morta e esquartejada na Venezuela, aos 53 anos, com indícios de abuso sexual. Os autores do assassinato foram ligados a paramilitares colombianos e membros da oposição venezuelana. O assassinato revelou a existência de uma rede de 30 grupos paramilitares, treinados na Colômbia e com vínculos nos Estados Unidos, com o propósito de provocar atos violentos na Venezuela, segundo afirmou o presidente Nicolás Maduro
[2] NT: Três famosas torres funenárias explodidas pelo Estado Islâmico na antiga cidade de Palmira, no deserto sírio
[3] “O lixão”- depósito de entulho na cidade de Medellín, na Colômbia, onde estima-se que até 300 pessoas, vítimas de violência, tenham sido enterradas

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