Boaventura
Sousa Santos – Visão, opinião
A
esquerda à esquerda do PS é a única que se opõe inequivocamente à austeridade,
mas é confrangedor vê-la dividir-se ainda mais quando nunca houve tantas razões
para se unir
Uma
amiga querida disse-me há dias que lhe apetecia escrever uma crónica
intitulada: "Votem à esquerda e deixem-se de parvoíces." Queria ela
dizer que, apesar de não haver escolhas ideais para votar à esquerda, o mais
importante de tudo é mandar embora este Governo e tudo o que ele significou
para o País. Os danos mais evidentes aí estão: o País empobreceu, a classe
média foi arrasada, muitos dos melhores jovens emigraram, a ciência, a saúde e
a educação foram decapitadas, tudo isto para diminuir uma dívida que afinal
aumentou e para relançar o crescimento económico que afinal não surgiu.
E,
para além de tudo, a corrupção. Excetuando o Tribunal Constitucional, o sistema
judicial português, além de conservador, é timorato, não sendo capaz de
enfrentar políticos enquanto estão no Governo (Sócrates é o exemplo mais
recente). Esta é talvez uma das razões por que os dois líderes do Governo
querem tanto ganhar as eleições. Qualquer cidadão não deixará de considerar um
escândalo que, no caso dos submarinos, os alemães que corromperam os
portugueses tenham sido julgados e punidos enquanto os portugueses corrompidos
continuem a exercer funções públicas.
Mas
o mais grave do que aconteceu está inscrito no que os portugueses não veem
quando se veem ao espelho: a contrarrevolução do 24 de Abril; a ideia de que
somos um povo incapaz, não merecemos o que conquistámos nos últimos 40 anos,
afinal nunca tivemos direitos, recebemos uns donativos que malbaratámos; que
fomos irresponsáveis em pensar podermos ser europeus noutra qualidade que não a
de serviçais estrangeiros dos europeus do Norte.
Devemos,
pois, deixar-nos de parvoíces e votar à esquerda. Porque é que não há escolhas
ideais? O PS entende que, não estando sujeito a nenhuma pressão da esquerda e
tendo o atual Governo assumido uma posição muito mais à direita que a posição
tradicional do PSD, tem à sua disposição o centro, sem concorrência. Estratégia
arriscada porque, depois de quatro anos de destruição da classe média que
sustenta o centro, não se sabe como votarão as suas ruínas.
A
Europa está a mudar. Vejamos o caso inglês, onde o partido irmão do PS, o
Partido Trabalhista, acaba de eleger o secretário-geral mais à esquerda da
história do Labour. Por maioria esmagadora, com a contribuição crucial de
jovens que só agora se filiaram no partido com o objetivo de pôr fim ao
centrismo. No discurso da vitória, Jeremy Corbyn referiu-se sempre ao partido
como partido-movimento.
A
esquerda à esquerda do PS é a única que se opõe inequivocamente à austeridade,
mas é confrangedor vê-la dividir-se ainda mais quando nunca houve tantas razões
para se unir. É confrangedor, mas tem uma razão sociológica. Dado o
envolvimento dos partidos socialistas europeus com o neoliberalismo e a
corrupção e, por último, com as políticas de austeridade que tanta desigualdade
e sofrimento injusto têm causado, abriu-se uma janela de oportunidade para uma
verdadeira política de esquerda. Para ela se concretizar, seria necessária um
profunda revisão das ideologias e uma nova forma da fazer política a partir dos
cidadãos humilhados e ofendidos.
Em
Espanha, a oportunidade foi aproveitada; na Grécia, foi tentada mas falhou ou
foi feita falhar. Em Portugal, não foi sequer tentada. Pelo contrário, o PCP
contentou-se em continuar a ter sempre razão ante os erros que sempre e só os
outros cometem, e o BE criou as condições para o Livre acontecer. Que muitos
dos mais brilhantes quadros políticos dos últimos 20 anos (Francisco Louçã,
Marisa Matias, Pacheco Pereira, Ana Drago, Mariana Mortágua, Bernardino Soares,
Manuel Carvalho da Silva, Paulo Pedroso, Ana Gomes) não possam dar ao País tudo
o que seriam capazes, é um desperdício intolerável.
Desperdício
ainda maior é o de tantos jovens progressistas, altamente qualificados, que
podiam estar politicamente mais ativos se a política fosse menos medíocre. Mas
nem tudo é mau. Em Coimbra, por exemplo, há um movimento de cidadãos e cidadãs
com uma história que vem de trás e que, parecendo estar atrás de um partido,
está, de facto, à frente dele. São o embrião das transformações políticas que
acabarão por chegar à sociedade portuguesa.
Leia mais em Visão
A inédita história do juiz Carlos Alexandre
Sem comentários:
Enviar um comentário