Reportagem
investiga ponto cego da globalização: os tribunais paralelos em que corporações
processam Estados, quando estes ousam ampliar direitos e questionar lógica do
lucro máximo
Claire
Provost e Matt Kennard - Outras Palavras - Tradução: Inês
Castilho - Imagem: Rubem Grilo
Cinquenta
anos atrás, um sistema legal internacional foi criado para proteger os direitos
de investidores estrangeiros. Hoje, conforme companhias ganham bilhões de
dólares em danos, os iniciados dizem que isso tornou-se perigosamente fora de
controle.
O
escritório de Luis Parada fica a apenas quatro quarteirões da Casa Branca, no
coração da Rua K, onde está instalada a longa fila de escritórios de lobistas
de Washington – um trecho de edifícios de aço e vidro certa vez apelidado de
“caminho para os ricos” (road to riches), quando o tráfico de influência
começou a crescer nos Estados Unidos. Parada, um homem de El Salvador com 55
anos e fala mansa, é um entre o punhado de advogados globais que se
especializou em defender Estados soberanos contra ações judiciais apresentadas
por corporações multinacionais. Ele é advogado de defesa num campo obscuro mas
cada vez mais poderoso do direito internacional, por meio do qual investidores
estrangeiros podem processar governos em bilhões de dólares, numa rede de tribunais.
Quinze
anos atrás, o serviço de Parada era um nicho desimportante até mesmo dentro da
advocacia. Mas desde 2000, centenas de investidores estrangeiros processaram
mais de metade dos países do mundo, reclamando danos supostamente causados por
um amplo leque de ações governamentais, que eles dizem ter ameaçado seus
lucros. Em 2006, o Equador cancelou um contrato de exploração de petróleo com
a Occidental Petroleum,
sediada em Houston (Texas, EUA); em 2012, depois que a Occidental entrou com
uma ação diante de um tribunal internacional de investimentos, o Equador
recebeu ordem de pagar o valor recorde de US $ 1,8 bilhão — mais ou menos igual
ao orçamento de saúde do país por um ano. (Quito apresentou um pedido para que
a decisão seja anulada.)
O
primeiro caso de Parada foi defender a Argentina no final dos anos 1990 contra
o conglomerado francês Vivendi,
que processou a província argentina de Tucumán depois que ela a tomou
iniciativa de limitar o preço que cobrava de pessoas para os serviços de água e
esgoto. A certa altura, a Argentina perdeu e foi condenada a pagar à empresa
mais de US$ 100 milhões. Agora, em seu maior caso desde então, Parada faz parte
da equipe que defende El Salvador de um processo de milhões de dólares
apresentado por uma empresa de mineração multinacional após o pequeno país da
América Central recusar-se a permitir que ele escavasse ouro.
O
processo foi aberto em 2009 por uma empresa canadense, Pacific Rim — mais tarde
comprada por uma empresa de mineração australiana, OceanaGold — que disse ter sido
encorajada pelo governo de El Salvador a gastar “dezenas de milhões de dólares
para iniciar atividades de exploração mineral”. Mas a empresa alegou que,
quando foram descobertos depósitos valiosos de ouro e prata, o governo, por
razões políticas, reteve as licenças necessárias para começar a escavação. A
indenização reivindicada pela companhia, que em certo ponto ultrapassou 300
milhões de dólares, foi depois reduzida para 284 milhões — ainda assim mais que
o montante da ajuda externa que El Salvador recebeu no ano passado. El Salvador
argumentou que a empresa não só carecia de licenças ambientais, como também não
conseguiu provar que tinha obtido os direitos para escavação na maioria das
terras abrangidas pelo seu pedido: muitos agricultores da região norte de
Cabañas, onde a empresa queria cavar, haviam se recusado a vender sua terra.
Todo
ano, no dia 15 de setembro, milhares de salvadorenhos celebram a data em que a
América Central conquistou a independência da Espanha. Estouram-se fogos de
artifício e bandas desfilam pelas vilas em todo o país. Mas, ano passado, na
cidade de San Isidro, em Cabañas, as festividades tiveram um tom marcadamente
diferente. Centenas de pessoas reuniram-se para protestar contra a mina. Minas
de ouro costumam usar cianureto para separar o ouro do minério, e uma preocupação
generalizada sobre a contaminação da água, já grave em El Salvador, ajudou a
alimentar um forte movimento, que propõe manter os minerais do país no solo. Na
praça central, foram penduradas bandeiras coloridas convidando a OceanaGold a
desistir do caso contra o país e deixar a área. Muitos carregavam o slogan “Não
à Mineração, Sim à vida”.
No
mesmo dia, em Washington DC, Parada reuniu suas notas e foi para um conjunto de
salas de reunião no Prédio J do Banco Mundial, em frente à sua sede principal,
na Pennsylvania Avenue. Este é o Centro Internacional para a Resolução de
Disputas sobre Investimentos (ICSID, na sigla em inglês) – a principal
instituição para lidar com casos de empresas contra Estados soberanos. (O ICSID
não é o único local para tais casos, há fóruns semelhantes em Londres, Paris,
Hong Kong e Haia, entre outros.) O dia da audiência não foi uma coincidência,
disse Parada. O caso foi visto, em El Salvador, como um teste sobre a soberania
do país no século 21, e o advogado sugeriu que deveria ser ouvido no Dia da
Independência. “A questão fundamental neste caso”, disse ele, “é saber se um
investidor estrangeiro pode forçar um governo a mudar suas leis para agradar o
investidor, ao invés do investidor cumprir as leis existentes no país.”
A
maioria dos tratados internacionais sobre investimento e acordos de livre
comércio garante a investidores estrangeiros o direito a ativar esse sistema,
conhecido como Solução de Controvérsias entre Investidor e Estado
(Investor-State Dispute Settlemente, ou ISDS, em inglês), se querem
contestar decisões que afetam seus investimentos. Na Europa, o sistema
tornou-se um ponto de discórdia nas negociações sobre o controverso Acordo de
Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês),
proposto entre a União Europeia e os EUA. Tanto a França como a Alemanha
disseram que querem ter acesso à resolução de litígios entre investidores e
Estados, ítem removido do tratado TTIP atualmente em discussão.
Os
investidores têm usado esse sistema não apenas para entrar com ações judiciais
por indenizações, diante de alegada expropriação de terra e fábricas, mas
também com relação a um amplo leque de medidas governamentais, inclusive
regulações ambiental e social, que ele dizem infringir seus direitos. Multinacionais
entraram com ação para recuperar dinheiro que já tinham investido, mas também
por alegados lucros perdidos e pela “expectativa de lucros futuros”. O número
de ações contra países no ICSID está agora em torno de 500 – e esse número está
crescendo à média de um caso por semana. As quantias concedidas em danos são
tão grandes que os fundos de investimento têm tomado conhecimento:
reivindicações das corporações contra os Estados são agora vistas como ativos
para investimentos ou para servir como garantia para garantir empréstimos
multimilionários. Cada vez mais, as empresas estão usando a ameaça de uma ação
judicial no ICSID para exercer pressão sobre os governos.
“Não
tinha absolutamente ideia de que isso aconteceria”, disse Parada. Sentado numa
sala de reuniões com paredes de vidro em seu escritório de advocacia Foley
Hoag, ele fez uma pausa, procurando a palavra certa para descrever o que
aconteceu na sua área. “Desonesto”, decidiu, finalmente. “Acho que o sistema de
arbitragem investidor-Estado foi criado com boas intenções, mas na prática
tornou-se completamente desonesto.”
*
* *
A
calma cidade de Moorburg, na Alemanha, encontra-se logo do outro lado do rio, a
partir de Hamburgo. Passando a igreja do século XVI e prados cobertos de flores
silvestres, duas chaminés enormes vomitam um fluxo constante de fumaça cinza e
espessa no céu. Trata-se da Kraftwerk Moorburg, uma nova usina de energia
movida a carvão – o controverso vizinho de porta da aldeia. Em 2009, ela foi
objeto de uma ação investidor-Estado no valor de 1,4 bilhão de euros pela
Vattenfall, a gigante energética sueca, contra a República Federal da Alemanha.
É um exemplo original de como esse poderoso sistema legal internacional,
pensado para proteger investidores estrangeiros em países em desenvolvimento,
está agora sendo usado também para desafiar ações de governos europeus.
Desde
os anos 1980, investidores alemães processaram dezenas de países, inclusive
Gana, Ucrânia e Filipinas, na corte do Banco Mundial em Washington. Mas, com o
caso Vattenfall, a Alemanha viu-se no banco dos réus pela primeira vez. A
ironia não passou despercebida àqueles que consideravam a Alemanha a avó da
arbitragem investidor-Estado: foi um grupo de empresários alemães, no final dos
anos 1950, quem primeiro concebeu uma maneira de proteger os seus investimentos
no exterior, à medida em que uma série de países em desenvolvimento conquistava
a independência das potências coloniais europeias. Liderados pelo presidente do
Deutsche Bank, Hermann Abs, chamaram a sua proposta de uma “carta magna
internacional” para os investidores privados.
Nos
anos 1960, a ideia foi assumida pelo Banco Mundial, para o qual esse sistema
poderia ajudar os países mais pobres do mundo a atrair capital estrangeiro.
“Estou convencido”, disse à época o presidente do Banco Mundial, George Woods,
“de que aqueles …. que adotarem como política nacional um [ambiente] amigável
para o investimento internacional – e isso significa, para não mudar nenhuma
palavra, dar aos investidores estrangeiros uma oportunidade justa de obter
lucros atraentes – vão atingir seus objetivos de desenvolvimento mais
rapidamente do que aqueles que não o fizerem”.
No
encontro anual do Banco Mundial em Tóquio, em 1964, aprovou-se uma resolução
para montar um mecanismo para lidar com casos de investidores contra o Estado.
A primeira linha do preâmbulo da Convenção do ICSID define seu objetivo como de
“cooperação internacional para desenvolvimento econômico”. Havia oposição
acirrada a esse sistema desde o começo, com um bloco de países em
desenvolvimento alertando que poderia sabotar sua soberania. Um grupo de 21
países – quase todas as nações latino-americanas, mais Iraque e Filipinas –
votou contra a proposta em Tóquio. Mas, a despeito disso, o Banco Mundial
seguiu adiante. Andreas Lowenfeld, um acadêmico de direito norte-americano que
esteve envolvido em algumas dessas primeiras discussões, afirmou mais tarde:
“Acredito que essa foi a primeira vez que uma grande resolução do Banco Mundial
foi forçada, apesar de tanta oposição.”
Desenvolvimento
global continua a ser a meta afirmada pelo ICSID. “A ideia”, disse a atual
secretária-geral da instituição, Meg Kinnear, “é que, quando os investidores
sentem que há um mecanismo justo e imparcial, eles nunca entram em disputa –
então, terão muito mais confiança, o que ajudará a promover investimento … e
quando você investe numa país obviamente leva emprego, renda, tecnologia e
assim por diante.”
Mas
agora os governos estão descobrindo, muito tarde, o verdadeiro preço dessa
confiança. A instalação da Kraftwerk Moorburg foi polêmica muito antes de o
caso ser arquivado. Durante anos, os moradores locais e os grupos
ambientalistas se opuseram à sua construção, em meio à crescente preocupação
com as mudanças climáticas e o impacto que o projeto teria sobre o rio Elba. Em
2008, a Vattenfall recebeu garantia de uso de água para seu projeto de
Moorburg. Mas, em resposta à pressão local, as autoridades impuseram condições
ambientais estritas para limitar o uso da água e seu impacto sobre os peixes.
A
Vattenfall processou Hamburgo na corte local. Mas, como investor estrangeiro,
ela tinha também direito a entrar com o caso no ICSID. Essas medidas
ambientais, ela disse, eram tão estritas que constituíam uma violação dos
direitos garantidos pelo Tratado de Escritura de Energia, um acordo
multilateral de investimento assinado por mais de 50 países, incluindo a Suécia
e a Alemanha. A empresa alegava que as condições ambientais firmadas na
permissão eram tão severas que tornaram a usina anti-econômica e constituíram atos
de expropriação indireta.
“Foi
uma surpresa completa para nós”, disse rindo o líder do Partido Verde local,
Jens Kerstan, numa reunião em seu ensolarado escritório em Hamburgo no ano
passado. “Tanto quanto eu saiba, havia alguns [tratados] para proteger empresas
alemãs no mundo em desenvolvimento ou em ditaduras — mas que uma companhia
europeia possa processar a Alemanha, isso foi uma total surpresa para mim.”
O
caso Vattenfall versus Alemanha acabou num acordo em 2011, depois que
a empresa venceu o caso num tribunal local e recebeu uma nova permissão de uso
de água para suas instalações em Moorburg. Foram rebaixados significativamente
os padrões ambientais antes impostos, de acordo com especialistas legais,
permitindo o uso de mais água do rio e enfraquecendo medidas para proteger os
peixes. A Comissão Europeia entrou no caso, levando a Alemanha à Corte de
Justiça da UE sob a alegação de que a usina de carvão Moorburg violou as leis
ambientais da UE ao não fazer mais exigências para reduzir o risco e proteger
as espécies animais, inclusive salmão, que passam perto da usina ao migrar do
Mar do Norte.
Um
ano depois que o caso Moorburg foi encerrado, a Vattenfall entrou com outra
queixa contra a Alemanha, desta vez sobre a decisão do governo federal de eliminar
progressivamente o uso da energia nuclear. Este segundo processo – do qual há
muito pouca informação disponível de domínio público, a despeito de relatos de
que a companhia está tentando tirar 4,7 bilhões de euros dos contribuintes
alemães – ainda está correndo. Cerca de um terço de todos os casos encerrados
no ICSID são considerados como “acordos”, o que – como mostra a disputa do
Moorburg – pode ser muito lucrativo para investidores, embora seus termos sejam
raramente revelados.
Há
agora milhares de acordos de investimento internacional e leis de livre
comércio, assinados pelos Estados, que dão a companhias estrangeiras acesso ao
sistema de disputas investidor-Estado, no caso de decidirem desafiar decisões
governamentais. As disputas em geral são resolvidas por painéis de três
árbitros. Cada lado seleciona um, e o terceiro é definido em acordo entre as
partes. As decisões são tomadas por maioria de votos, e são soberanas e
irrecorríveis. Não há processo de apelação – apenas uma possibilidade de anulação
que pode ser usada em termos muito limitados. Se os estados não pagam após a
decisão, os seus ativos ficam sujeitos a apreensão em quase todos os países do
mundo (a empresa pode entrar nos tribunais locais com uma ordem de execução).
Embora um tribunal não possa forçar um país a mudar suas leis, ou dar
autorização a uma empresa, o risco de danos maciços pode, em alguns casos, ser
suficiente para persuadir um governo a reconsiderar suas ações. A possibilidade
de processos de arbitragem pode ser usada para encorajar os Estados a entrar em
negociações para acordos relevantes.
Na
Guatemala, documentos internos do governo obtidos por meio da Lei de Liberdade
de Informação do país mostram como o risco de um desses casos pesou
significativamente numa decisão estatal de não desafiar uma controversa mina de
ouro, a despeito de protestos de seus cidadãos e uma recomendação de Comissão
Interamericana de Direitos Humanos para que ela fosse fechada. Tal ação, os
documentos alertavam, poderia provocar a companhia, propriedade da gigante
mineradora canadense Goldcorp, a acionar o ICSID ou invocar cláusulas do Acordo
de Livre Comércio Centro-Americano (Cafta) a ganhar “acesso à arbitragem
internacional e subsequente reivindicação de danos contra o Estado”. A mina
teve permissão de continuar aberta.
À
medida em que as reivindicações feitas pelas empresas crescem, parece cada vez
mais provável que os enormes riscos financeiros associados com a arbitragem
investidor-Estado irão efetivamente garantir a investidores estrangeiros um
veto sobre as decisões governamentais.
*
* *
Mesmo
quando as empresas fracassam, em suas ações contra Estados, há outras vantagens
a ser buscadas. Em 2004, passou a valer, na África do Sul pós-apartheid, a nova
Lei de Desenvolvimento de Recursos Minerais e de Petróleo (MPRDA, na sigla em
inglês). Junto com uma nova carta de mineração, a lei procurou corrigir as
desigualdades históricas no setor de mineração, em parte ao obrigar as empresas
a fazer parceira com cidadãos que sofreram sob o regime do apartheid. O
novo sistema rescindiu todos os direitos anteriormente detidos pela mineração e
obrigou as empresas a solicitar uma nova licença, para continuar suas
operações. Também instituiu uma participação obrigatória para negros
sul-africanos, de 26%, nas ações de empresas de mineração do país. Dois anos
depois, um grupo de investidores italianos, que juntos controlam a maioria da
indústria sul-africana de granito, entrou com uma queixa no marco de disputas
investidor-Estado contra a África do Sul. O novo regime de mineração do país,
argumentaram, havia expropriado ilegalmente seus investimentos e os tratou
injustamente. Demandavam uma indenização de 350 milhões de dólares.
O
caso foi apresentado por membros das famílias Foresti e Conti, proeminentes
industriais da Toscana, e pela Finstone, uma holding sediada em Luxemburgo.
Eles citaram dois tratados bilaterais de investimento, ambos assinados no fim
dos anos 1990, durante a presidência de Nelson Mandela. Jason Brickhill,
advogado do Centro de Recursos Jurídicos com sede em Johannesburgo, disse que o
governo pós-apartheid parecia ver esses acordos “mais como atos de boa vontade
diplomática do que compromissos jurídicos sérios, com consequências econômicas
de longo alcance potencialmente graves”.
Durante
aquele tempo, funcionários eram convidados para reuniões na Europa, disse ele,
“e havia todo tipo de discussão sobre a direção comercial e econômica [da
África do Sul]. Parte disso devia-se à expectativa de que se estava celebrando
um tratado de investimento – mas os sul-africanos não tinham entendimento real
do que estavam convertendo em lei”. Peter Draper, ex-funcionário do
Departamento de Comércio e Indústria Sul-Africano, apresenta os fatos mais
duramente: “Estávamos essencialmente entregando os pontos, sem fazer qualquer
pergunta, ou proteger o espaço político crucial.”
O
caso da empresa contra a África do Sul arrastou-se por quatro anos, antes de
terminar abruptamente quando o grupo italiano desistiu de suas reivindicações e
o tribunal ordenou que contribuíssem com 400 mil euros para as custas da África
do Sul. Na época, um comunicado de imprensa do governo celebrou o ocorrido como
“final bem sucedido” – apesar de que a África do Sul ainda teve 5 milhões de
euros de taxas jurídicas não reembolsadas. Mas os investidores clamavam por uma
vitória mais significativa: a pressão do caso, disseram, permitiu que fizessem
um negócio sem precedentes com o governo da África do Sul. Isso possibilitou a
suas empresas transferir apenas 5% da propriedade para sul-africanos negros –
ao invés dos 26% determinados pela autoridade estatal de mineração. “Nenhuma
outra empresa de mineração na África do Sul foi tratada tão generosamente desde
o advento do [novo regime de mineração]”, gabou-se então Peter Leon, um dos
advogados dos investidores.
O
governo parece ter concordado com esse acordo, que vai contra o espírito das
reparações pós-apartheid na África do Sul, para prevenir uma enchente de outras
queixas contra si. “Se o mérito do caso fosse decidido contra o governo,
pensaram, ‘não tem jeito, vamos nos afundar’. E penso que é por isso que
aceitaram concordar com aquela resolução”, disse Jonathan Veeran, outro
advogado da empresa, numa entrevista em seu escritório de Joanesburgo. Seus
clientes, disse, “estavam muito felizes com o resultado”.
*
* *
Um
pequeno número de países está agora tentando desembaraçar-se das amarras do
sistema de litígio entre investidores e Estados. Um deles é a Bolívia, onde
milhares de pessoas tomaram as ruas da terceira maior cidade do país,
Cochabamba, em 2000, para protestar contra um aumento dramático nas tarifas de
água por uma empresa privada de propriedade da Bechtel — uma corporação de
engenharia civil dos EUA. Durante as manifestações, o governo boliviano
resolveu por fim à concessão dada à companhia. Ela então entrou com uma ação de
50 milhões de dólares contra a Bolívia no ICSID. Em 2006, depois de uma
campanha pelo arquivamento do caso, a empresa concordou em aceitar um pagamento
simbólico de menos de um dólar.
Após
esse caso, a Bolívia cancelou acordos internacionais que havia assinado com
outros Estados, quando davam acesso a esses tribunais para seus investidores.
Mas sair do sistema não é coisa fácil. A maioria desses acordos internacionais
têm cláusulas de caducidade, sob as quais suas disposições permanecem em vigor
por mais 10 ou mesmo 20 anos, mesmo que os próprios tratados sejam cancelados.
Em
2010, o presidente boliviano, Evo Morales, nacionalizou o maior fornecedor de
energia do país, a Empresa Elétrica Guaracachi. A investidora em energia
inglesa Rurelec, que indiretamente detinha 50,001% das ações da companhia,
levou a Bolívia para a corte permanente de arbitragem em Haia, pedindo 100
milhões de dólares em compensação. Ano passado, foi determinado que a Bolívia
pagasse 35 milhões de dólares à Rurelec; depois de meses de negociações, os
dois lados acordaram num pagamento de pouco mais de 31 milhões de dólares, em
maio de 2014. A Rurelec, que recusou-se a comentar o assunto para este artigo,
celebrou o prêmio com uma série de press releases em seu site. “Minha
única tristeza é que tenha demorado tanto para chegar ao acordo”, disso o CEO
do fundo, em uma de suas declarações. “Tudo o que queríamos era uma negociação
amigável e um aperto de mão do presidente Morales”.
Até
mesmo Estados que inicialmente rejeitaram a introdução do sistema de disputa
investidor-Estado na reunião do Banco Mundial em 1964 assinaram, de lá para cá,
dezenas de acordos que expandem seu alcance. Com o rápido crescimento desses
tratados – há hoje mais de 3 mil em vigor – desenvolveu-se uma indústria de
especialistas em aconselhar as empresas sobre como explorar melhor os tratados
que dão acesso ao sistema de resolução de disputas, e como estruturar seu
negocio para tirar vantagem das diferentes proteções oferecidas. É um setor
lucrativo: só os honorários são, em média, de 8 milhões de dólares por caso,
mas já chegaram a mais de 30 milhões de dólares em algumas disputas. Os
honorários de advogados começam em 3 mil dólares por dia, mais despesas. Embora
não haja nada equivalente a uma ajuda legal para Estados que estão tentando se
defender nesses processos, as corporações têm acesso a um crescente grupo de
financiadores de terceiros, interessados em oferecer recursos para seus casos
contra os Estados, geralmente em troca de uma parte de eventual ganho.
Cada
vez mais, essas ações estão se tornando valiosas mesmo antes que as queixas
tenham um resultado. Depois de entrar na justiça contra a Bolívia, a Rurelec
levou seu caso ao mercado e garantiu um empréstimo corporativo de milhões de
dólares, usando sua disputa com a Bolívia como garantia, expandindo seus
negócios. Ao longo dos últimos dez anos, e particularmente desde a crise
financeira global, um número crescente de fundos de investimento especializados
passou a levantar dinheiro através desses casos, tratando as reclamações
multimilionárias das empresas contra os Estados como uma nova “classe de
ativos”.
Um
dos maiores, entre estes fundos que se especializaram em apoiar as ações de
corporações contra governos, a Burford Capital, tem sua sede a apenas alguns
quarteirões da estação de trem East Croydon, Londres, no quinto andar de um
edifício de tijolo vermelho comum. As empresas raramente informam quando seus
casos estão sendo financiados por um desses investidores, mas no caso da
Rurelec contra a Bolívia a Burford divulgou um press
release triunfante celebrando seu envolvimento “inovador”. Tipicamente,
patrocinador deste tipo concordam em dar respaldo a queixas das companhias
contra Estados em troca de participação em qualquer recompensa eventual. Nesse
caso, a Burford deu à Rurelec um empréstimo de 15 milhões de dólares, usando a
queixa contra a Bolívia como garantia.
“A
Rurelec não precisa de capital para pagar seus advogados. Ao contrário, precisa
de capital para ampliar seu negócio”, disse Burford numa declaração. “Essa é
uma boa demonstração de que os benefícios de financiar litígio vão bem além de
simplesmente ajudar a pagar taxas legais”, acrescentou o executivo-chefe, “e em
vários casos podem oferecer um método alternativo efetivo de financiamento para
ajudar as empresas a alcançar suas metas estratégicas”. Foi altamente
gratificante também para a Burford: ela anunciou ter obtido, com a disputa, um
lucro líquido de 11 milhões de dólares.
Um
porta-voz da Burford explicou depois: “a Burford não financiou a queixa de
arbitragem da Rurelec, que já corria havia mais de dois anos, antes do nosso
envolvimento com a companhia. Antes, nós fornecemos uma linha de crédito
corporativo para permitir à Rurelec expandir suas operações na América do Sul,
mas nós contamos com o pedido de arbitragem (um ativo contingente) para ajudar
no pagamento do empréstimo”.
Desde
o início, parte da justificativa para o sistema internacional de disputa
investidor-Estado foi criar um “forum neutro” para a resolução de conflitos,
com os investidores desistindo do direito de procurar apoio diplomático em seus
países de origem quando apresentam casos como esse. Mas documentos obtidos em
resposta a um pedido baseado em leis de acesso à informação revelam que a Rurelec
também pôde confiar no governo britânico, que interveio ativamente para apoiar
seu caso.
O
relatório do caso, de 44 páginas, inclui dezenas de emails e briefings internos
produzidos de maio de 2010 a junho de 2014. Vários destes referem-se
explicitamente ao lobby britânico em favor da companhia. Um email ao embaixador
britânico da Bolívia, Ross Denny, afirma: “Nosso constante lobby de alto nível,
em benefício da Rurelec, ajudou a demonstrar a seriedade com que cuidamos dos
interesses de nossas companhias”. Um outro registra, simplesmente: “A Rurelec
necessita da nossa ajuda.”
Parece
que a embaixada britânica sabia que o sistema de arbitragem deve ser imparcial.
Um email, aparentemente sobre como responder a uma pergunta de uma pessoa do
público, estabelece: “Se todas as coisas são iguais, nossa linha seria que o
governo britânico não se envolvesse em processo judicial, como querem os
tratados de investimento que assinamos.” A mensagem continua: “Se o ministério
dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth [FCO, Foreign and Commonwealth
Office] teve um diálogo permanente com a empresa sobre este tema, provavelmente
seria mais adequado responder com algumas linhas genéricas sobre nós e os
benefícios dos tratados de investimento.”
*
* *
El
Salvador já gastou mais de 12 milhões de dólares defendendo-se contra a Pacific
Rim, mas apesar de ter derrotado a companhia numa ação de 284 milhões de
dólares, nunca se recuperará esse valor. Durante anos, grupos de protesto
salvadorenhos apelaram ao Banco Mundial para iniciar uma revisão aberta e
pública do ICSID. Até agora, tal estudo não começou. Nos últimos anos, uma
série de ideias têm sido debatidas para reformar o sistema internacional de
controvérsias investidor-Estado – a adoção de “o perdedor paga os custos”, por exemplo,
ou mais transparência. A solução pode estar na criação de um sistema de
recursos, de modo que os julgamentos controversos possam ser revistos.
No
ano passado, David Morales, ouvidor de direitos humanos de El Salvador (um
cargo estatal criado como parte do processo de paz depois da guerra civil do
país, que durou entre 1979 a 1992) colocou um anúncio de página inteira no
jornal nacional La Prensa Gráfica,convocando o governo a rever todos os
tratados de investimento internacional que assinou, com vistas a renegociá-los
ou cancelá-los. Luis Parada, representante de El Salvador em sua disputa com a
Pacific Rim, concorda que esse seria um passo inteligente: “Eu pessoalmente não
penso que, nesses tratados, os países tenha mais vantagens que riscos, ao submeterem-se
a arbitragem internacional.”
Outros
países já decidiram reduzir suas perdas, e tentam sair desses tratados. Pouco
tempo depois de ter resolvido o processo das empresas de mineração estrangeiras
contra suas novas regras pós-apartheid, a África do Sul começou a rever muitos
de seus próprios acordos de investimento.
“O
que era preocupante para nós era que você poderia ter uma arbitragem
internacional – três indivíduos tomando uma decisão – com riscos de anular o
que era um projeto legislativo na África do Sul, adotado democraticamente. De
alguma forma, esse painel de arbitragem podia levantou a questão”, disse Xavier
Carim, um ex-deputado que era diretor geral do departamento de Comércio e
Indústria da África do Sul. “Estava muito, muito claro que esses tratados são
abertos para amplas interpretações pelos paineis, ou por investidores
procurando desafiar qualquer medida governamental, com a possibilidade de um
pagamento significativo no final”, disse Carim, que é agora representante da
África do Sul na Organização Mundial do Comércio. “O fato cru é que esses
tratados dão muito poucos benefícios e só trazem riscos.”
Antes
de agir para rever seus tratados, o governo sul-africano encomendou um estudo
interno para ajudar a determinar se estes compromissos de fato ajudaram a
aumentar os investimentos estrangeiros. “Não havia relação entre assinar
tratados e receber investimentos”, explicou Carim. “Tivemos grandes
investimentos dos EUA, Japão, Índia e diversos outros países com quem não temos
tratados de investimentos. As companhias não investem ou deixa de investir num
país porque ele tem ou não tem um tratado bilateral de investimento. Eles
investem se há retorno a ser obtido.”
O
Brasil nunca assinou nada desse sistema [1] – não entrou num único tratado que
inclua provisões para disputas investidor-Estado – e apesar disso não tem tido
problemas para atrair investimento estrangeiro.
Parada
disse que é necessário “um amplo consenso de determinados Estados” para rever
verdadeiramente nesse sistema. “Os Estados que criaram o sistema são os únicos
que podem consertá-lo”, disse. “Não vi, até hoje, um número suficiente de
países dispostos a isso… menos ainda, um amplo consenso a favor da mudança. Mas
ainda espero que aconteça”.
==
[1]
No entanto, algumas das propostas apresentadas ao acordo de “livre” comércio
entre Mercosul e União Europeia, em fase de negociação, preveem mecanismos de
solução de controvérsias entre empresas e Estados semelhantes aos mencionados
neste artigo. Para informações mais completas, leia texto
da Rebrip — Rede Brasileira pela Integração entre os Povos. [Nota
de “Outras Palavras”]
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