quinta-feira, 15 de outubro de 2015

MÁSCARAS DE PORTUGAL



José Goulão – Jornal de Angola, opinião

A hipocrisia assaltou definitivamente os ecrãs portugueses

O que tanto se denunciou sobre os desvios de impostos ao regime democrático no sentido de neutralizar o funcionamento dos mecanismos de respeito pela vontade e os interesses dos cidadãos, e que, de acordo com a propaganda oficial, não passava de opiniões de marginais do sistema, de antieuropeístas, quiçá de terroristas encapotados, está confirmado. 

Não era teoria da conspiração, era a demonstração do que se pretendia e pretende atingir com a mascarada de democracia apresentada como a democracia única, possível e desejável, afinal um regime em que a soberania nacional e a maioria das pessoas têm de submeter-se aos interesses minoritários dos predadores da sociedade, dos parasitas dos cidadãos.

Bastaram umas eleições e umas sessões de diálogo – esse diálogo tão enaltecido quando não passa de monólogo em que finge falar-se do que já está decidido – para que a inquietação, os medos, no fundo as pulsões antidemocráticas e trauliteiras subissem ao palco. Elas aí estão, ridículas nos conteúdos, perigosas nas intenções, intimidatórias na prática.

Cito alguns exemplos ao acaso porque a memória e a capacidade de registo não conseguem acompanhar a criatividade dos canais de propaganda do regime português, os quais, como é sabido, são o suprassumo do pluralismo desde que ele seja monolítico e esteja sintonizado com os agentes de Bruxelas, os seguranças dos credores, os magarefes dos mercados.

Na cegada desfilam politólogos e comentadores independentes que, por acaso, ocupam ou ocuparam altas posições no chamado arco da governação, analistas e papagaios amestrados, comentadores, jornalistas ditos de referência e recadeiros, enfim, a corte dos bobos que conseguem especular horas a fio sobre supostas variantes de um mesmo cenário, o único, o permitido, aquele de que vivem e que por sua vez alimentam, num ciclo vicioso e viciado.

Assim sendo, António Costa transformou-se num “radical” com tendências “suicidárias” ao aceitar que o PS dialogue com o PCP e o Bloco de Esquerda. Portugal deve ser governado pelo grupo que teve mais votos, mesmo que seja em minoria, devendo os outros membros do Parlamento fazer de patetas. 

É assim a “tradição política”, a mesma “tradição” que proíbe a entrada de partidos à esquerda do PS na área governativa, porque isso “não está no ADN” da democracia portuguesa. Partidos esses, como o PCP e o Bloco de Esquerda, que foram acusados de se esquivarem a assumir responsabilidades governativas e que, quando manifestam essa disponibilidade, são agora acusados de se meterem onde não são chamados, de acordo com a bem conhecida trama de morto por ter cão, morto por não ter. 

E atenção que isto da “tradição” é muito importante em Portugal, sobretudo a “tradição” que manda o bom povo ser ordeiro e marchar em rebanho. Além disso, e a cegada continua, fiquem sabendo que uma minoria de 107 deputados é muito mais estável e responsável do que uma maioria absoluta de 122, susceptível de viabilizar um governo à esquerda da clique da troika – maioria esta que não passa “de uma coligação negativa”, formada à partida por imbecis mal-intencionados e incapazes sem legitimidade porque, por exemplo, não aceita a austeridade nem dá como plenamente adquirido que os portugueses sejam governados de Bruxelas pelos credores e o sobe-e-desce dos juros da dívida e das manipulações estatísticas. 

Vejam bem, que legitimidade teria essa maioria se porventura se questionasse sobre o tratado orçamental, manobra suja de Bruxelas e Berlim escamoteada aos cidadãos e que transforma os países da União Europeia em pobres protectorados de uma Alemanha expansionista e das praças financeiras? 

Como seria possível admitir um governo de Portugal capaz de governar para as pessoas, segundo os interesses de Portugal e dos portugueses, quando o que interessa são números, cifrões, milhões manipulados pelo casino financeiro mundial e armazenados em paraísos fiscais? 

A austeridade provoca miséria, desemprego, emigração? Pois é, mas não existe outra saída, mesmo que as eleições tenham dito claramente que os portugueses a rejeitam, porque Bruxelas é que sabe o que é bom “para o futuro dos portugueses”, como esse futuro ficará ainda mais risonho estraçalhando o Estado social e a segurança social – e se Bruxelas manda, assim seja. 

Para lhe obedecer existe a minoria que desejavelmente deveria assumir-se como maioria em forma de “bloco central”, esse partido único garante da democracia da austeridade. 

Mas se assim não for, que essa minoria governe com a “estabilidade” e a “governabilidade” que lhe são inerentes, capaz de ressuscitar em versão actualizada a “democracia orgânica”, uma inspirada criação da propaganda marcelista, não a de hoje, a de ontem. 

Fora desse quadro, como por exemplo a hipótese de um entendimento em Portugal entre o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP, que permitiria governar Portugal com maioria parlamentar e para a maioria dos portugueses, seria “absurdo”, uma “batota política”, “um mergulho no desconhecido”; a “instauração da miséria”, uma “irresponsabilidade antieuropeísta”, um “pandemónio ingovernável”, uma “aberração”, uma “vergonha nacional”, um alvo da “chacota internacional”, “mudar as regras a meio do jogo”, “uma conspiração”, um “delírio”, a “restauração do gonçalvismo”, até “um golpe de Estado” – como se percebe nem o céu será o limite para a criatividade chantagista.

Tombam as máscaras dos democratas oficiais, os que sabem corrigir o regime dos enganos dos eleitores para defesa dos interesses dos próprios eleitores, uns pobres idiotas incapazes de saber o que é bom para eles.

Sem comentários:

Mais lidas da semana