Martinho Júnior, Luanda
1
– Neste 11 de Novembro de 215, as minhas memórias estiveram bem presentes…
Enquanto
na Praça do Mausoléu de Agostinho Neto o desfile comemorativo se espraiou sob
meus olhos como um majestoso rio humano e eu repetia o gesto automático de
disparar a pequena máquina fotográfica que gravou a afirmação de patriotismo e
de esperança que tão intensamente se viveu, por dentro dos meus olhos húmidos,
tocando-me por inteiro, tomando-me o cérebro e as entranhas, revivi aquele
remoto 11 de Novembro de 1975 duma forma muito especial: reconstruindo
secretamente os passos peregrinos e decididos do rio de minha própria juventude
quando em Angola, entre o troar das armas, se afirmava e se assumia o sonho
mais legítimo de liberdade!
Aos
Dembos havia chegado em 1972, animado já de horizontes que se impunham muito
para lá daquela época opaca, fechada ainda na caixa do fascismo e do
colonialismo: minha consciência crítica havia sido oxigenada em Lisboa, onde a
frequência na universidade, mesmo sem Casa do Império, possibilitou-me fazer um
balanço sério das conjunturas que então se viviam, com a corajosa e resoluta
dádiva dos colegas mais velhos e experientes, que me levavam também a
questionar toda a vivência juvenil até então…
Nas
universidades portuguesas o espírito de luta contra o fascismo e o colonialismo
ganhava asas e dimensionou um território humano que viria a antecipar as
transformações sócio-políticas que eclodiriam em todas as frentes do espaço
português, implodindo o Estado Novo e finalmente abrindo autodeterminação e
independência para as colónias.
Era
o tempo dos trovadores e Zeca Afonso cantava as janeiras!
Tudo
isso apanhou-me em cheio logo nos meus verdes vinte anos, pelo que quando dei
por mim nos Dembos, feito alferes miliciano das Forças Armadas Portuguesas,
sabia que iria ser sujeito a duras provas, por que o contraditório fustigaria e
poria à prova de forma subtil mas inadiável todos os meus passos e todas as
mais profundas convicções próprias dum jovem que despertava para a vida.
Não
foi assim um náufrago que chegou os Dembos, foi um jovem para o qual a justiça
não era uma palavra vã e perante as lições correntes com que se tinha de
deparar, forçosa, ainda que paulatinamente, em tudo teria de optar.
Foi
esse ambiente que me sacudiu por inteiro, um ambiente em que o quotidiano era
uma radiografia das desigualdades, dos desequilíbrios humanos existentes e
tantas vezes das injustiças sociais mais absurdas que se poderia imaginar, que
conheci Teresa Cassule, uma jovem camponesa analfabeta de Pango Aluquém,
nascida numa das pobres aldeias da região, na aldeia de Benza…
Com
o fervor dos meus verdes anos cedo fiz dela minha companheira, com um misto de
compreensão e espectativa por parte da sua família, pois possivelmente não
suporiam que algo duradouro pudesse um dia surgir: em dias turbulentos afinal
eram tão frequentes os amores de passagem, como as aves de arribação e depois o
que faria um alferes miliciano na vida, amarrado por indeléveis laços a uma
jovem camponesa dos Dembos?…
Entre
as riquezas que pude então recolher, que a muitos poderá surpreender, ao ouvir
os mais velhos de então, constavam histórias que se foram entrecruzando, pois
marcavam o século XX até então naquela região: desde a saga das resistências
dos Dembos aos choques de 1961…
A
minha companheira contou-me mesmo, ela própria, algumas dessas histórias que os
pais transmitiam oralmente e com toda a circunspecção aos filhos, por que
tinham a noção exacta de que sua divulgação poderia desencadear por si o mesmo
tipo de opressão já antes experimentada…
Desfilaram
aldeias bombardeadas (Gombe ya Muquiama), aldeias desaparecidas (uma aldeia
entre Pango Aluquém e Cazuangongo), exemplos de vidas que se esvaíram, famílias
inteiras que haviam desaparecido na voragem da guerra… as fronteiras entre o
que era a possibilidade de vida e a morte prematura que se impunha aos
oprimidos, aos pobres, aos angolanos sujeitos à qualificação do indigenato,
àqueles cujo único crime era enfim a sede de liberdade que lhes era negada pela
força das armas, aqueles a que eram negados os mais elementares direitos
humanos…
Em
Agosto de 1973, na modesta casita de pau-a-pique rebocada a cimento e com chão
cimentado que havia erigido na Benza, nasceria nossa primeira filha que levaria
também por minha opção o nome da mãe, Teresa e de minha mãe, Maria…
Era
um ser frágil, muito sujeito desde logo à precariedade de nossa vida e fui
surpreendido pela decisão de meus pais, pois eles decidiram ir buscá-la numa
viagem épica que encetaram do Lobito até Pango Aluquém, num carrito que estava
dimensionado a um Lobito – Benguela e pouco mais que isso…
A
Teresinha partiu com eles que tiveram a hombridade de não me censurar face à
situação: no fundo acho que reconheciam a legitimidade das opções que se me
deparavam e compreendiam os meus anseios, as minhas espectativas e as minhas
esperanças na flor da vida…
2
– Quando foi possível ingressar nas FAPLA, num memorável encontro que o
Comandante N’Zagi pessoalmente me propiciou, a Teresa Cassule já estava comigo
em Luanda, onde vivíamos numa casinha de madeira alugada ali no Lelo (Ilha do
Cabo), junto ao Largo da Peixeira (hoje desaparecido)…
Depois
foi um desfiar contínuo de missões em 1974 e 1975, até chegar ao dia em que,
ainda sob a bandeira portuguesa, na base secreta da ilha Cabeleira (Kamuxiba),
próximo do Estado-Maior das FAPLA então instalado no morro da Luz, teve a minha
unidade a missão de proteger os Comandantes das Forças Armadas Revolucionárias
de Cuba, que haviam chegado clandestinamente no âmbito da “Operação
Carlota”…
A
unidade estava espalhada num pequeno conjunto de casas que pertenciam à
patriótica família Tavira, disfarçado pela comunidade envolvente e dela faziam
parte outros angolanos, entre eles os camaradas Luís Rosa Lopes, Manuel da
Ressurreição, “Pancho” (recentemente falecido), o internacionalista
português “Alex” (de seu verdadeiro nome Eduardo Cruzeiro)…
Ali
pude assistir ao desdobrar dos mapas por parte dos Comandantes cubanos, entre
eles Dias Arguelles e às suas discussões que levavam pouco a pouco a começaram
a estabelecer os planos para as frentes sul e norte de Luanda… foi assim que
pela primeira vez me foi explicado o significado da “Operação Carlota”, em
honra da temerária escrava rebelde de Matanzas, assim como foi talvez a
primeira vez que foi estabelecido o conceito que viria a criar o funil de
Kifangondo, integrado no plano preparatório para a defesa de Luanda, a norte…
A
minha companheira esteve comigo ainda algum tempo nessa base, mas grávida de
meu segundo filho, foi decidido entre nós que ela fosse ao Pango Aluquém a fim
de melhor ser assistida pela sua família…
As
batalhas sucediam-se em Luanda, na barra do Dande, no morro da Cal, nas
estradas do litoral norte e sul e parte da unidade acabou por ser destacada às
pressas para os Dembos, pois havia a hipótese das forças conjuntas do inimigo
poderem romper na via Pango Aluquém – Cazuangongo – ponte do Zenza e vir a
surgir em Maria Teresa, na estrada de Catete…
A
aba leste do funil de Kifangondo foi assim reforçada, porquanto a aba oeste era
o mar.
No
momento em que cheguei a Pango Aluquém num camião Hino de grande caixa aberta
que levava dezenas de combatentes, fui a correr até à Benza onde encontrei a
Teresa Cassule com a irmã Conceição Cassule, cada uma com sua trouxa à cabeça,
grávidas e com dois meus sobrinhos: um o Ribeiro (já falecido) pela mão e a
Carlota, que era ainda bébé, às costas da mãe… iam para as lavras pois corria o
boato que “a FNLA vem aí” e por isso tinham de se refugiar e
proteger!
Mandei-as
ir para casa: “nós chegámos, vão haver combates e eles não vão conseguir
avançar” disse com toda a convicção que me ia na alma, até por que tinha
todas as razões de vida para assim creditar…
Reforçaram
as unidades os dispositivos que estavam às ordens do Comandante César Augusto
Kiluanji (hoje digno Embaixador de Angola em Cuba), que comandava a frente, mas
mesmo assim acabou-se por perder a Mobil e Kibaxi…
Às
pressas formou a unidade um pequeno CIR na Fazenda SAGRI, enquanto se reforçava
Cacamba (do lado do Úcua) e Kikeza (do lado de Kibaxi)…
O
Manuel Ressurreição “Pancho” dispararia
um “muanacaxito” desde os altos de Cacamba, contribuindo para que as
linhas não fossem mais rompidas a oeste de Pango Aluquém e eu com outros mais
camaradas (Luis Rosa Lopes, “Saber Andar”, falecido, “Diabo Branco”,
Carlos Freitas, falecido e outros) reforçámos os Comandantes Vida e Wachile em
Kikeza, onde tínhamos um canhão de 76mm de quem estava encarregue o camarada
Xavier (hoje General reformado de Artilharia)…a norte de Pango Aluquém a FNLA
tinha também os dias contados…
No
dia 11 de Novembro de 1975 já havíamos reconquistado Kibaxi com a chegada do
Comandante Margoso e de mais reforços das FAPLA e a minha unidade ficou
instalada na Missão, a partir da qual íamos fazendo patrulhas envolventes,
inclusive uma patrulha que chegou à ponte do Dange na estrada do café, que o
inimigo havia destruído com explosivos…
Entre
aqueles que fizeram parte da logística de tropas das FAPLA e cumpriram várias
missões arriscadas de ligação, esteve Alfredo de Jesus, “Manguchi”, de
quem sou familiar e amigo de coração, um camarada que sempre apoiou as FAPLA e
o MPLA no Bengo, de forma digna, decidida e honrada…
3
– A 20 de Novembro de 1975 nasceria o meu segundo filho com a minha companheira
Teresa Cassule…
Ainda
na área de Kibaxi, não pude estar presente, mas quando a notícia chegou tive a
noção de quanto foi vital toda aquela epopeia…
Meu
filho receberia o nome do meu pai, João e o meu, Manuel, tal qual havíamos
procedido com a Teresinha…
Na
altura não havia combatentes das FAR cubanas nos Dembos mas foi deste modo a
minha participação no início da “Operação Carlota”, que sairia vitoriosa
em Cabinda, em Kifangondo e no Ebo.
Se
por acaso o inimigo tivesse tomado Luanda, tinha já a missão de ficar nos
Dembos a fim de integrar a guerrilha que se formaria de imediato…
4
– Enquanto o desfile na Praça do Mausoléu prosseguia, foi esse o desfile que
passava por dentro dos meus olhos, numa onda húmida e enternecida…
Todo
o simbolismo saturado de vida me estremeceu: as convicções, as emoções, a
saudade imensa, eu feito um humilde homem total, na pele dum ignoto combatente,
face a face à história e à humanidade…
A
Teresa Cassule minha companheira dessas eras decisivas viria a sucumbir em
meados do último ano do século XX: tinha um coração frágil que não aguentou com
as injustiças da vida que entretanto nos atingiam em cheio…
Aconteceram
muitas coisas que não escolhi que acontecessem… mas a memória da escrava
Carlota impunha-se-me sempre, por que a partir dela havia um caminho que se
abria e eu integrava a torrente humana que engrossava cada vez mais esse
caminho e ia alcançando com coragem cada conquista, uma a uma, com sacrifício,
sangue, suor, lágrimas, mas com um horizonte radioso que seria impossível
perder!
Com
todos os defeitos humanos, com algumas virtudes, mas sempre sedento de amor e
de vida, como nos meus verdes anos nos Dembos, quando despertei para o desfile
dos 40 anos da“dipanda”… foi assim que consegui ver a liberdade em Angola, bem
por dentro de mim!
-
Foto da minha companheira das horas decisivas, Teresa Cassule
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