Não
se amarrota uma nação dessas na vala comum das economias aleijadas pelos
mercados. O destino do país não pode ser se encolher e se entregar.
Saul
Leblon – Carta Maior, editorial
A parcimônia obedece a um diagnóstico.
Maria da Conceição Tavares, um feixe de 85 anos de argúcia intelectual, inquietação metabólica e vivência histórica enciclopédica depara-se com um problema singular, mesmo para quem acumula longa trajetória de engajamento apaixonado na luta pela construção da nação brasileira.
O país vive uma nova encruzilhada do seu desenvolvimento.
Mais uma das tantas das quais essa portuguesa de nascimento participou, desde que desembarcou aqui no ano em que Getúlio Vargas, com um único tiro, impôs uma década de protelação ao golpe que a coalizão empresarial-militar só lograria desfechar em 1964.
Conceição militou ativamente no esforço progressista de dilatar o tempo histórico e empurrar a roda do desenvolvimento até o ponto em que ele se tornasse autossustentado pelas forças por ele favorecidas.
Em 1964 não deu.
O percurso interrompido, da forma como se sabe, seria parcialmente resgatado nos anos 80, com a derrubada do regime militar e a tentativa frustrada do Cruzado –da qual participaria diretamente também; esforço interrompido com a ascensão neoliberal nos anos 90.
A agenda da construção de uma democracia social na oitava maior economia da terra seria resgatada com a vitória presidencial do metalúrgico, e amigo, Luís Inácio Lula da Silva, em 2002.
Reeleito em 2006, ele conduziria outra admiradora de Conceição, Dilma Rousseff, ao Planalto em 2010. E é justamente essa ex-aluna, reeleita em 2014, que pilota agora um país encurralado em um redil de três malhas: a crise política, a crise econômica e aquela que a economista considera a mais grave de todas, ‘a crise da esperança’.
Obra demolidora do martelete conservador, a falta de esperança no país é um problema com o qual a professora nunca havia se deparado antes. Razão de ser de seu recolhimento recente –‘não cabia falar se não fosse para afrontar isso’.
‘A economia tem jeito’, diz a voz grave, cujo fraseado característico foi pontuado durante décadas pelo cigarro inseparável. ‘Nosso pesadelo é a desesperança no Brasil’, dispara em bemol autoexplicativo.
Não é um problema narrativo apenas.
A doença infecciosa disseminada das usinas conservadoras tem peso material na crise.
Ao magnificar os impasses e interditar o debate desassombrado das alternativas, faz terra arrasada do discernimento histórico e instala a ditadura da fatalidade no imaginário social.
O saldo é a gosma em curso.
Não sobra pedra sobre pedra. Ou melhor, sobra um pesadelo chamado desesperança, como diz Conceição.
A usina de desconsolo age no manejo das expectativas com aplicada disciplina.
Ordena-as em duas direções: de um lado, ao produzir a sensação do caos -- ‘mesmo que ele inexista’, sublinha a professora, e, sobretudo, de outro lado, ao vetar qualquer alternativa capaz de preveni-lo.
A voz grave não isenta o governo da amiga Dilma Rousseff de responsabilidade nessa arapuca.
‘Sanear cortando, cortando?’, ressoa com má vontade para elevar o tom depois, aliviada com o próprio desabafo: ‘Pode cortar o quanto quiser; corte por 15 anos seguidos; não vai sanear nada. Sem receita, por conta da recessão, como é que você vai pagar a dívida? Ainda por cima com esse nível de juros? Isso não é viável. Em nenhum lugar do mundo, como a Europa deixa claro’, arremata agora em agudo sustenido.
A economista tem uma opinião serena, cirúrgica, sobre o centurião dos mercados praticamente imposto no comando da Fazenda do governo Dilma pelo cerco pós-eleitoral: ‘É fraco’.
E outra, pragmática, sobre as alternativas: ‘Alguém como o Trabuco teria sido melhor; é banqueiro, mas é menos rentista do que os economistas de banco; enxerga o Brasil acima do mercado’, diz sobre o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco Cappi, cogitado originalmente como ministro da área econômica de Dilma.
O garrote da desesperança ao mesmo tempo que empurrou Conceição para uma vigília cuidadosa da palavra –‘falar para piorar?’ -- nunca deixou de incomodá-la.
Até que atingiu proporções tais que a economista se obrigou a reagir por entender que persistir na abstinência seria endossar a ocupação do espaço pelos coveiros do país.
Na primeira semana de outubro, ela aceitou duas homenagens, compareceu a ambas e voltou a falar.
A metralhadora giratória temida e respeitada voltou com um alvo: demolir a tese de que o Brasil é um caso perdido de futuro, exceto se aceitar ser lixado ao ponto de se reduzir a um substrato de recursos manejados livremente pelos mercados.
‘Resolvi fazer uns discursos animosos e ao faze-los eu mesmo me animei mais com o Brasil, o que prova que a variável das expectativas tem peso decisivo nesse momento’, brinca ao mesmo tempo em que fala sério.
‘A primeira coisa da qual temos que nos conscientizar é sobre o tamanho do Brasil, a sua importância como mercado, o polo geopolítico que introduz no jogo mundial’, disserta a guerreira cansada da rendição, de volta à batalha com a paixão atravessada na voz.
‘Esperem um pouco: isso aqui é o Brasil’, indigna-se. ‘E o Brasil não é qualquer coisa. Não se amarrota uma nação dessas na vala comum das economias aleijadas pelos mercados’, picota a metralhadora para disparar a bala de misericórdia: ‘O Brasil não cabe nesse buraco; isso em primeiro lugar’, pontifica senhora das armas e dos seus trunfos.
‘Temos essa responsabilidade. Temos que explicar o que é este país a quem insiste em não reconhece-lo’, prossegue na definição da ampla paisagem que se abre aos nossos olhos, à medida em que a voz ora grave, ora rouca, ora em sustenidos descortina o mural da oitava economia da terra, um dos cinco maiores mercados do planeta, autossuficiente em praticamente tudo, mas acossada por forças determinadas a impedir que o conjunto se transforme em um projeto de desenvolvimento justo, soberano, popular, no coração da América Latina, no século 21.
‘Agora que saímos do arrocho cambial, que nos impelia a déficits em contas correntes’, explica a professora de volta à conjuntura para esgrimir a desesperança, ‘temos espaço para recomeçar’.
Conceição chama a atenção para a importância de o país ter recuperado a competitividade cambial, deixando de ser um túnel complacente às importações de um mundo sem demanda. ‘Foi crucial corrigir esse erro’, aquiesce, ‘mas insuficiente’, contrapõe.
A professora emérita da UFRJ, que chegou ao Brasil como matemática e aqui descobriu a economia política ao lado do mestre Celso Furtado, descarta a hipótese de se reerguer a economia pelo lado das exportações.
‘A demanda mundial rasteja desde 2008, o nó das finanças desreguladas não foi desatado e a China pilota uma transição da qual não sabemos a abrangência, a profundidade e a duração’.
Logo?
‘Logo temos que olhar o Brasil –e digo aos sem esperança que isso não é pouco, se nos deixarem olhar o todo, não só o roto’, retruca rápida no gatilho como se tivesse vinte anos na voz.
A professora vê na nova realidade cambial muito mais um trunfo para substituição de importações, do que para crescer para fora – ‘embora isso deva ser explorado em cada fresta’, pontua.
A substituição de importações de que fala hoje não significa ressuscitar conceitos e metas do ciclo dos anos 50, quando a manufatura importada passou a ser produzida internamente para atender a um consumo sedento.
‘O ciclo recente de expansão pelo consumo exauriu-se’, adverte. ‘Não é que falte crédito ao consumidor, é que não existe quem vá tomar crédito a essa altura com o desemprego solto na praça e a incerteza farejando cada lar. Da mesma forma, não é que o BNDES tenha parado de financiar o investimento. É que ninguém está tomando dinheiro para investir’.
O mural de onde desponta o alto-relevo da esperança no Brasil ordena-se pelo investimento público, risca a economista em traços desassombrados e estendidos.
‘Ninguém vai investir se o Estado não puxar’, suspira, toma fôlego e debulha o roteiro delicado que imagina para vencer o desalento que delega a nação à tutela dos mercados predadores.
‘Resolvida a coisa cambial, temos que ganhar fôlego tributário para o investimento público que puxará as concessões. Mas isso não é tarefa para economista’, adverte entre modesta e imperativa.
‘Isso é coisa para uma frente ampla de interesses progressistas, partidários, não partidários, de movimentos sociais, de intelectuais, centrais sindicais e do capital produtivo –o que inclui inclusive banqueiros que financiam a produção porque se isso não acontecer eles também serão penalizados, caso seus clientes corporativos afundem no arrocho’, adverte.
Nisso, essencialmente nisso, Conceição vê semelhanças com o cenário de 1982, quando ao lado de Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos Lessa e Luciano Coutinho, ajudou a escrever o lendário programa do PMDB, ‘Esperança e Mudança’, que puxou o partido para a liderança da frente política contra a ditadura e contra a recessão desencadeada pela crise da dívida externa.
‘Nenhuma nação sai de uma crise de transição de ciclo econômico dessas proporções sem recompor seu rumo político, como se fez em 82, 88, 2002...’
Com uma diferença hoje, diz a voz em novo rebote de sustenido: ‘Não estamos enforcados do lado cambial –e isso é quase inédito em relação às travessias de ciclos anteriores; nossas reservas cambiais são recordes, da ordem de US$ 370 bi. Ninguém nos chantageará no guichê do FMI, como tiveram que se render os tucanos. O nome disso é margem de manobra’.
Não só.
‘O Brasil tem um recomeço esboçado e em vias de implantação’, dispara essa militante de 85 anos que se impôs a tarefa de puxar contrafogos ‘animosos’ contra as milícias desanimosas.
‘Temos o pré-sal e a Petrobrás’, lista Maria da Conceição ágil na técnica de erguer a bola e com ela ainda no ar desarmar as resistências entrincheiras no campo conservador. Drible número um: a Agência Internacional de Energia (IEA) projeta que o barril de petróleo dentro de curtos cinco anos voltará ao patamar de 80 dólares. É hora de entregar o pré-sal, como advoga seu conhecido José Serra?
Mais que isso.
Conceição sabe que o entreguismo contra o pre-sal joga com um dado objetivo: o elevado endividamento da Petrobras que consome seu fluxo de caixa e dificulta o investimento na exploração das novas reservas.
E isso é razão para trair a semente de futuro em forma de poupança de bilhões de barris no fundo do mar?
Conceição até ri.
‘Ademais de não enfrentarmos uma crise cambial dispomos agora do banco dos BRICs’, lembra a economista que, provocada, cogita com entusiasmo: ‘Por conta do interesse da China, da Índia e mesmo da África do Sul no petróleo, pode-se montar uma operação com o banco, capaz de propiciar o alívio financeiro de que a Petrobrás necessita para investir e elevar a produção’.
A imensidão da infraestrutura por erguer, renovar e ampliar no Brasil –entre investimentos públicos, parcerias e concessões— compõe as pinceladas finais do mural que Maria da Conceição desbasta em largas e firmes pinceladas contra a desesperança.
Se fosse preciso dar um nome a essa obra, ela por certo faria do batismo uma advertência aos que, mesmo nascidos aqui, acreditam menos nesta nação do que ela que a escolheu por pátria;e fez do seu desenvolvimento a razão de ser de sua vida, para dizer-lhes mais uma vez: ‘Não passarão’.
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