José
Pacheco Pereira – Público, opinião (02.04.2016)
Dizer
o ‘estado de direito’ angolano devia provocar uma sonora gargalhada se o
assunto não fosse muito sério
O
que é que faz PCP, PSD e CDS juntarem-se num voto comum com denso significado
político? Angola. O que faz juntar Paulo Portas, Jerónimo de Sousa, Passos
Coelho, Assunção Cristas num silêncio mais ou menos incomodado sobre claras e
grosseiras violações dos direitos humanos e da democracia? Angola. O que faz
Paulo Portas, esse corifeu do anti-comunismo, e da liberdade económica, agora
convertido à digna carreira dos negócios, queixar-se da “judicialização da relação
entre Portugal e Angola” a propósito da prisão de Orlando Figueira, antigo
procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP),
acusado de ter engavetado um processo em que era investigado Manuel Vicente,
antigo dirigente da Sonangol? Angola.
Aqueles
a que se solta a boca com o que se passa na Venezuela, aqueles que espumam com
a viagem de Obama a Cuba, aqueles que correm para escrever artigos indignados
com a duplicidade da esquerda face a regimes como o norte-coreano, o cubano, ou
o venezuelano, agora explicam-nos que o regime angolano nada tem que ver com o
comunismo. É um regime “pragmático”. Lá isso é, mesmo muito pragmático.
O
mais espantoso argumento é o que acha que nada se pode dizer sobre o que se
está a passar, visto que o que está em causa é o sistema judicial, os
tribunais, o “Estado de direito” angolano e isso é tão inquestionável como os
tribunais ingleses de juízes e advogados de cabeleira e velhos direitos do
júri, onde há habeas corpus e... o primado da lei. Dizer, aliás, o
“Estado de direito” angolano devia provocar uma sonora gargalhada, se o assunto
não fosse demasiado sério.
Criticar
a Coreia do Norte está bem. Criticar a Birmânia está bem e é muito longe e não
se sabe nada para nosso conforto. Criticar a Síria e a “ditadura” de Assad está
bem. Bater palmas à queda de Khadafi, mesmo com o incómodo do seu linchamento
público, está também muito bem. Até ao nosso parceiro na CPLP, a Guiné
Equatorial, podemos torcer o nariz. Tivessem eles “salvo” o Banif, talvez já
não fosse assim.
Mas
há ditaduras e ditaduras. E a questão já não é só ideológica, bem longe disso.
Isso era antes e só funcionava para o PCP. Para o PSD, o CDS e parte do PS, é o
“pragmatismo” que conta, ou seja, as que estão próximas de nós pelo dinheiro,
com essas é que é preciso muita prudência. Na verdade, se investem em Portugal,
pagam pelo menos o direito de não serem tratadas como ditaduras, apenas
“Estados africanos em construção”, importantes motores de negócios, países mais
ou menos exemplares.
Veja-se
a China, cujo Partido Comunista Chinês comprou durante o Governo Passos Coelho
algumas das mais importantes empresas portuguesas. Pelo menos uma, qualquer
consideração estratégica do interesse nacional deveria impedir que fosse
vendida, a REN. Mas a lei que definia os sectores de valor estratégico para
Portugal, — anoto, não é para a economia portuguesa, é para Portugal —, por
singular coincidência, só foi publicada depois da venda. Grande Partido
Comunista Chinês, vanguarda do capitalismo mundial, exemplo de gestão da
economia, parceiro desejado, governante dos homens que pagam umas centenas de
milhares de euros para virem a ter a nacionalidade portuguesa com um “visa
dourado”. Pelos vistos pagam a frente e ao lado. Mas os refugiados que se
acumulam na Grécia e na Turquia, esses, não têm dinheiro para comprar um
passaporte europeu, nem prédios de luxo, nem comissões a advogados e
imobiliárias, nem luvas para “agilizar” o processo.
Angola
é o que se sabe. Não havendo propriedade privada dos diamantes ou do petróleo
ou dos outros bens naturais do país, apenas concessões às grandes petrolíferas
americanas ou às empresas estatais, o que decorre da exploração desses recursos
são biliões de dólares que são a principal riqueza de Angola. Para onde vão? Do
lado “recebedor” desses gigantescos fundos está a cleptocracia governante
em Angola, a começar na família do Presidente, estendendo-se para a entourage da
Presidência, e para um conjunto de generais que ascenderam ao poder durante a
guerra civil, e a que se juntam altos quadros do MPLA, administradores de
empresas públicas, embaixadores, ministros e “homens de negócios”. Nenhum deles
construiu a sua riqueza que não fosse pelo acesso ao poder político. Os seus
nomes são conhecidos de todos, estão sistematicamente presentes em duas listas:
as dos que violam os direitos humanos, como as da Amnistia Internacional, e as
dos corruptos que todas as polícias europeias e americanas conhecem, incluindo
a portuguesa.
Os
seus nomes são também conhecidos, familiares, da “casa” de uma parte
considerável da elite portuguesa, políticos, jornalistas, empresários,
banqueiros, advogados, que têm negócios com eles. Há mesmo alguns casos, como o
de um antigo diplomata, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, que é
funcionário do Governo angolano para conduzir como “consultor” aquilo a que
chama “diplomacia privada”. Há jornais, bancos, grandes empresas, investimentos
imobiliários, terras, casas, e muita “influência” paga com o dinheiro angolano.
Não há também nenhum negócio corrupto em Portugal de grande dimensão, ou queda
de banco ou escândalo financeiro, que não vá ter a um destes angolanos, desde o
BES, e o seu obscuro BESA, até ao “caso Sócrates”. E há demasiadas histórias
que se sussurram e que circulam de boca sobre gente que foi espancada numa
esquina de Lisboa ou Cascais, e que, vá-se lá saber porquê, não parece muito
interessada em que a polícia investigue os seus agressores. E, no meio de tudo
isto, abrem-se todos os dias os jornais, a começar pela imprensa económica, e
vê-se notícias sobre notícias sobre os grandes negócios em que participam
pessoas cuja riqueza foi roubada ao povo angolano, como se fosse a coisa mais
normal do mundo.
O
argumento que pensam ser definitivo e arrasador é da “irresponsabilidade” que
seria criticar Angola ou estas pessoas poderosas, porque quem iria pagar o
preço seriam os portugueses que lá vivem e trabalham. Não é preciso ir mais
longe para perceber que, com este argumento, estão a dizer tudo sobre a
natureza do regime angolano e sobre a sua “democracia”. Daí vem a tese de que,
“para proteger os portugueses”, têm de dançar com os demónios todos. Claro que
não lucram nada com isso.
Mas
o ponto é sensível. Há de facto muitas empresas e empresários que ganhavam
muito dinheiro antes da actual crise em Angola. Pagavam todas as “propinas”
necessárias e sobrava-lhes ainda lucro. E, quando confrontados com isso,
encolhiam os ombros com cinismo e diziam: “Se não fôssemos nós, seriam os
chineses, ou os franceses, ou os espanhóis.” Verdade, mas isso coloca-os hoje
no mesmo barco daqueles a quem pagaram.
Mas
há infelizmente muitos outros, os que de facto não têm defesa. Os portugueses
em Angola, os que precisaram mesmo de ir para Angola trabalhar ao apelo de
Passos Coelho para “saírem da sua zona de conforto” e para fugir ao desemprego
por cá, esses servem para o argumento do silêncio. Na verdade, nada os protege,
muito menos o silêncio, porque é o silêncio da fraqueza e os fracos nada podem
quando as coisas endurecerem. Enquanto o regime angolano for o que é, nada os
protege. Serão sempre as vítimas de um regime que não hesita em retaliar sobre
os mais fracos para proteger os mais fortes.
Mas
as coisas vão endurecer mesmo. A crise do preço do petróleo faz escassear os
bens que os predadores estavam habituados a ir buscar à cornucópia da
abundância. Eles se encarregarão de se guerrear entre si pela pouca água que
jorra da fonte outrora abundante. E serão os próprios angolanos, aqueles que
hoje vão para a cadeia, que acabarão por falar mais alto. Porque têm razão e são
corajosos. É com eles que os portugueses deveriam estar.
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