segunda-feira, 4 de abril de 2016

O ARQUITETO DA NOVA ANGOLA



Kumuênho da Rosa – Jornal de Angola

É costume dizer-se que o sorriso, o aperto de mão, seguido de um abraço apertado, comunicam muito mais do que aparentam. Entre homens, principalmente, o aperto de mão é rico em significados.

Há precisamente 14 anos o mundo testemunhava aquele que pode ter sido o mais emblemático aperto de mão da história recente de Angola.

No Palácio dos Congressos, o mesmo lugar onde, 24 horas antes, deputados angolanos aprovaram uma Lei de Amnistia, para “todos os crimes contra a segurança do Estado cometidos no contexto do conflito armado”, os generais Armando da Cruz Neto e Abreu Muengo Ukwachitembo “Kamorteiro” apertaram as mãos e a seguir abraçaram-se, sob olhar atento do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, cujo sorriso reflectia alegria e satisfação por aquele momento tão significativo para o futuro do angolanos.

Era o “enterrar do machado de guerra” entre os chefes das Forças Armadas Angolanas e das forças militares da UNITA que deste modo punham fim a mais de três décadas de um conflito fratricida, com um rasto de destruição, mais de meio milhão de mortos e centenas de milhares de famílias longe das suas zonas de origem.

O Memorando de Entendimento do Luena, documento complementar aos Acordos de Lusaka, representa um marco importante na história de Angola e uma prova de maturidade política do povo angolano. A sua assinatura num acto solene, marcou o fim de uma guerra que de tão prolongada pareceu fazer parte da sina dos angolanos e a paz um sonho distante.

Depois de décadas, e com vários acordos falhados, houve quem chegasse a acreditar que os angolanos estavam condenados a viver em guerra, como chegou a cantar um músico de sucesso na década de 90, num verso marcadamente infeliz, ao referir-se à “guerra, ambição e muito mais…” como “predestinações divinas”. Não tardou, o tempo acabou por demonstrar que estava errado. Ele e todos os que acreditavam que a paz em Angola era somente uma utopia.

Fim da guerra

O fim da guerra em Angola começou a desenhar-se com a morte de Jonas Malheiro Savimbi, o chefe das forças rebeldes da UNITA, a 22 de Fevereiro de 2002, nas proximidades de Cassamba, localidade adjacente ao Luvuei, um dos três afluentes do rio Lungue-Bungo.

Depois de semanas de perseguição, Savimbi acabou por ser abatido a tiro, numa operação bem-sucedida levada a cabo pela 20ª Brigada das Forças Armadas Angolanas. Esse foi na opinião geral o acontecimento que escancarou as portas para a paz em Angola.

Foram necessários beliscões, já que era difícil acreditar que a paz, este bem tão caro e tantas vezes adiado por ene razões, estava ali, escancarada, pronta para ser desfrutada. Nas ruas das principais cidades organizaram-se passeatas. Ouviram-se tiros, mas dessa vez sem que ninguém esboçasse qualquer sinal de medo. Só alegria. Havia gente eufórica a festejar. Era a certeza de que desta vez sim, a guerra em Angola chegara ao fim.

Derradeira esperança

Relatos de militares que viveram os últimos dias da guerra confirmam que depois de praticamente esgotar todas as manobras na intenção de despistar o grupo de “caçadores” da 20ª Brigada das FAA, Savimbi depositou as suas derradeiras esperanças no êxito de uma operação secreta elaborada por  país vizinho, que se comprometera em resgatá-lo com vida. A intenção era ajudá-lo a recuperar no estrangeiro e daí reagrupar o que restasse do seu grupo armado, para dar sequência ao seu velho projecto, que era atingir o poder. Mas a determinação dos militares das FAA acabou por deitar por terra o plano de “velhos amigos de Savimbi” no exterior, que estavam em desespero, para salvar o senhor da guerra. A operação envolveu importantes esforços diplomáticos e com inteligência militar à mistura. Mas falhou redondamente, tal era a determinação das autoridades angolanas.

As mesmas fontes disseram que o plano foi “desmontado” e uma alta patente do país vizinho a quem foi incumbida a missão de liderar a operação de resgate morreu em território angolano perto da fronteira com a Zâmbia. Enfim, um episódio que ajuda a compreender porque em vez de um ponto final, a história da guerra em Angola foi feita de sucessivos pontos e vírgulas.

Houve desinteligências das partes, mas na sua grande maioria os percalços resultavam de manietações externas, mãos invisíveis, que faziam fortunas à custa do sofrimento de um povo mártir que sempre acreditou que, da mesma forma que conseguiu arrancar a ferros a independência, a paz definitiva teria de ser conquistada.

Prioridade para a Paz

Numa entrevista a um jornal português, para promover o livro em que narra a sua versão sobre os derradeiros dias do chefe da guerrilha, o político da UNITA Alcides Sakala revelou que a situação dos combatentes que acompanhavam Jonas Savimbi era precária.

“Perseguidos, com fome e, sobretudo, já exaustos”, mesmo assim, disse acreditar que a “UNITA podia ter continuado a luta na província do Moxico ou em circunstância mais difíceis nas do Cuanza Sul e Benguela”. “Mas resistiríamos por mais quanto tempo, com a carga de sanções a pesarem nas nossas costas, num mundo em mudança?”, questionou o político que já foi secretário para as Relações Externas da UNITA. Na narrativa em que discorre sobre as suas observações na “derradeira marcha” da cúpula da UNITA, Sakala refere-se ao acordo assinado pelos militares logo após a morte de Savimbi como uma “oportunidade para a paz”. De recordar que no momento em que Savimbi foi abatido, o agora deputado da UNITA encontrava-se nas margens do rio Luconha, afluente do rio Lungue-Bungo. Com ele seguiam os generais Lukamba Paulo Gato, então secretário-geral da UNITA, Marcial Dachala, secretário para a Informação, Jovem Blanche, responsável dos quadros, e ainda Vituji e Calulo, membros influentes do corpo de segurança de Jonas Savimbi.

Somente nós

O general Abreu Muengo Ukwachitembo “Kamorteiro”, co-signatário do acordo de paz é dos protagonistas desse processo mais solicitados para dar entrevistas. Em todas as vezes que falou sobre o processo de paz, procurou sempre destacar o facto de terem sido somente os angolanos a discutirem e a definirem qual seria o rumo a seguir.

Poucos dias atrás, numa palestra em Luanda sobre o 4 de Abril de 2002, o agora vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas considerou o fim da guerra em Angola, uma “obra acabada sem interferência externa” e que devia servir de modelo de inspiração para outros países em situação de conflito. Perante um auditório constituído por oficiais superiores e subalternos, agentes, cadetes e trabalhadores civis da Polícia Nacional, o general Kamorteiro lembrou que desde 15 de Março, dia em que começaram as conversações entre as delegações do Governo e da UNITA, até à data da assinatura do acordo de paz, foi observado um “estrito rigor” quanto à inadmissibilidade de qualquer interferência externa. “Fomos apenas nós, desejosos de acabar com aquilo, sem humilhações e sem vencedores nem vencidos. Quem venceu foi Angola e os angolanos. Isso foi determinante para o desfecho do processo”, assinalou.

Chega de errar

Quando, ainda na vila do Luena, eram feitos os primeiros contactos para os passos a seguir no processo de paz, ficou claro que o Governo angolano estava determinado a evitar os erros do passado. Depois de Nova Iorque em 1988, Gbadolite, em 1989, Bicesse em 1991, e Lusaka, 1994, era preciso ter a certeza de que Luena seria diferente.

Depois de confirmado o êxito no controlo de todos os chefes militares da UNITA que ainda estavam dispersos nas matas e afastado o cenário de continuação da luta como guerrilha, foi preciso avançar rapidamente para conversações directas, sem mediadores, nem representantes de países aliados, como foi nas anteriores negociações.

Em Luanda, assistiam-se a intensas movimentações com diplomatas interessados em fazer parte do processo, uns invocando “laços históricos de cooperação com Angola”, outros um “direito adquirido”, com base precisamente nos acordos que fracassaram. E foi com o firme propósito de evitar um novo erro que pusesse novamente tudo a perder, que foi definido que o fim da guerra em Angola dispensava um novo acordo de paz. Bastava a vontade das partes e um documento complementar ao Protocolo de Lusaka.

Divergências políticas

Tal como dispunha o Protocolo de Lusaka, que o Memorando do Luena veio complementar, o aquartelamento e incorporação nas FAA dos ex-militares da UNITA seriam acompanhados por países observadores, mas as questões políticas que “constituíam a essência das contradições antagónicas entre os angolanos durante décadas”, foram tratadas de “forma cautelosa, sigilosa e exclusivamente por patriotas angolanos”, frisou o general Kamorteiro.

O general Kamorteiro considera ter sido esse um elemento fundamental no desenrolar  tranquilo e sereno das negociações, igualmente de determinante para o êxito do processo que até hoje os angolanos e o mundo inteiro reconhecem. “Temos muito orgulho em fazer parte de um processo de paz verdadeiramente genuino, e que é referenciado no mundo inteiro. “É um caso sui generis e devia constituir um modelo a seguir em situações de conflito quer em África quer em outras partes do mundo”, disse.

Obreiro da Paz

Os depoimentos de protagonistas do processo de paz em Angola reconhecem o papel chave do Presidente José Eduardo dos Santos, que coordenou desde o início todas as acções para que o fim da guerra em Angola fosse uma realidade. 

O general Geraldo Sachipengo Nunda, actual chefe do Estado-Maior das FAA, que na época era adjunto do general Armando da Cruz, recorda terem sido dadas instruções do Presidente da República e Comandante-em-Chefe para que fossem poupados todos os militares que voluntariamente abandonassem as acções armadas. Mesmo os que fossem capturados deviam beneficiar de pronta assistência médica, e alimentar para os que já vinham debilitados, depois de dias a caminhar nas matas comendo raízes e frutos silvestres.

Todos concordam que a amnistia decretada pelo Governo para os que até àquela data cometeram crimes no contexto do conflito armado, e que foi aprovada dia antes do acto solene de assinatura do Acordo de Paz, a 4 de Abril de 2002, foi um gesto de enorme simbolismo, que além de vincar a magnanimidade do Presidente José Eduardo dos Santos, como o obreiro da paz, ajudou a reforçar a confiança dos angolanos. Foi um passo decisivo para que todos passassem a encarar o futuro sem receios, mais engajados na construção da nova Angola.

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