Thierry
Meyssan*
Ao
observar a campanha eleitoral presidencial norte-americana, Thierry Meyssan
analisa a ressurgência de um velho e grande conflito civilizacional. Hillary
Clinton acaba de declarar que esta eleição não versava sobre programas, mas
sobre a questão de saber «Quem são os Americanos?». Não é baseados em questões
políticas que os tenores republicanos acabam de retirar o seu apoio ao seu
candidato, Donald Trump, mas antes a propósito do seu comportamento pessoal.
Segundo o nosso autor, até à data presente, os Norte-americanos eram emigrantes
vindos de horizontes diferentes e aceitando submeter-se à ideologia de uma
comunidade especial. É este modelo que está em vias de se desfazer, com o risco
de estilhaçar o próprio país.
No decurso
do ano de campanha eleitoral norte-americana que estamos a acabar de atravessar,
a retórica mudou profundamente e uma clivagem inesperada surgiu entre os dois
campos. Se, à partida, os candidatos falavam de assuntos basicamente políticos
(tais como a repartição de riqueza ou a segurança nacional), agora eles tratam
principalmente de sexo e dinheiro.
Foi
este discurso, e não as questões políticas, o que fez explodir o Partido
Republicano –-cujos principais líderes retiraram o apoio ao seu candidato–- e
que reformula o tabuleiro político, fazendo ressurgir uma clivagem
civilizacional muito velha. De um lado, a senhora Clinton pretende ser
politicamente correcta, enquanto do outro «O Donald» fez voar em estilhaços a
hipocrisia da antiga «primeira Dama».
De
um lado, Hillary Clinton promove a igualdade homens/mulheres, muito embora ela
jamais tenha hesitado em atacar e emporcalhar as mulheres que revelavam ter-se
deitado com o seu marido; que se apresenta não pelas suas qualidades pessoais,
mas enquanto esposa de um anterior presidente, e que ela acusa Donald Trump de
misoginia porque ele não esconde o seu gosto pela espécie feminina. Do outro
lado, Donald Trump denuncia a privatização do Estado, e a extorsão de
personalidades estrangeiras pela Fundação Clinton, sempre que queriam obter
acesso ao Departamento de Estado; a criação do ObamaCare, não no interesse dos
cidadãos mas para benefício dos Seguros médicos; e vai até ao ponto de pôr em
causa a idoneidade do sistema eleitoral.
Estou
perfeitamente ciente que a maneira como Donald Trump se exprime encoraja de
facto o racismo, mas não acho de todo que isto esteja no centro do debate
eleitoral apesar do martelar que os média(mídia) pró-Clinton fazem a propósito.
Não
é indiferente que, aquando do escândalo Lewinsky, o presidente Bill Clinton
tenha apresentado as suas desculpas à Nação e tenha reunido Pastores para rezar
pela sua salvação. Enquanto ao ser posto em causa por factos parecidos, numa
gravação áudio, Donald Trump se tenha contentado a apresentar as suas desculpas
às pessoas atingidas, sem fazer apelo a membros do clero.
A
clivagem actual retoma a revolta de valores dos Católicos, de Ortodoxos, e de
Luteranos, contra os dos Calvinistas, representados nos Estados Unidos
principalmente pelos Presbiterianos, Baptistas e os Metodistas.
Mesmo
se os dois candidatos foram educados na tradição puritana (Clinton como
Metodista e Trump como Presbiteriano), H.Clinton retornou à religião pela morte
do seu pai e participa hoje em dia no grupo de oração dos chefes do
estado-maior das forças armadas, The Family («A Família»- ndT), enquanto Trump
segue uma espiritualidade mais interiorizada e não frequenta habitualmente os
templos.
É
claro, ninguém fica fechado nos padrões em que foi criado. Mas, quando se age
sem reflexão, podemos reproduzi-los de forma inconsciente. A questão do
ambiente religioso de cada um pode portanto ser importante.
Para
entender o que está em jogo, é preciso voltar à Inglaterra do século XVII.
Oliver Cromwell derruba, com um golpe de Estado militar, o rei Carlos Iº. Ele
pretendeu instaurar uma República, purificar a alma do país, e assim fez
decapitar o antigo soberano. Criou um regime sectário inspirado nas ideias de
Calvino, massacrou os Irlandeses papistas em massa, e impôs um modo de vida
puritano. Concebeu também o sionismo: ele chamou à atenção para os judeus em
Inglaterra e foi o primeiro chefe de Estado, no mundo, a reivindicar a criação
de um Estado judeu na Palestina. Este episódio sangrento é conhecido com o nome
de «Primeira Guerra civil britânica».
Após
a restauração da monarquia, os Puritanos de Cromwell fugiram da Inglaterra.
Eles instalaram-se nos Países Baixos, de onde alguns de entre eles partiram a
bordo do Mayflower para as Américas (os chamados “Pais Peregrinos"),
enquanto outros fundaram a comunidade Afrikaner na África Austral. Aquando da
guerra de independência dos Estados Unidos, no século XVIII, reviu-se o
confronto dos Calvinistas contra a Monarquia britânica, de tal modo que nos
manuais actuais de História Britânica, designam-na como a «Segunda Guerra
civil».
No
século XIX, a Guerra de Secessão opôs os Estados do Sul (sobretudo habitados
por colonos católicos) aos do Norte (principalmente habitados por colonos
protestantes). A História dos vencedores apresenta este confronto como uma luta
pela Liberdade face à Escravatura, o que é pura propaganda (os Estados do Sul
aboliram a escravatura durante a guerra, quando fecharam uma aliança com a
monarquia britânica). Com efeito, regressa-se ao enfrentamento dos Puritanos
contra o Trono inglês, razão pela qual certos historiadores falam aqui de uma
«Terceira Guerra civil britânica».
Durante
o século XX, este enfrentamento interno da civilização britânica parecia
ultrapassado, fora o ressurgimento dos Puritanos ao Reino Unido com «os
cristãos não-conformistas» do primeiro-ministro David Lloyd George. Estes
últimos dividiram a Irlanda e dedicaram-se a criar o «Lar nacional judaico» na
Palestina.
Seja
como fôr, um dos conselheiros de Richard Nixon, Kevin Phillips, consagrou uma
volumosa tese a estas guerras civis, constatando que nenhum dos problemas
estava resolvido e anunciou uma quarta volta [1].
Eu
não duvido que H. Clinton será a próxima Presidente dos Estados Unidos, ou que
se Trump fosse eleito, ele seria rapidamente eliminado. Mas, em alguns meses,
assiste-se a uma ampla redistribuição eleitoral sobre o fundo de uma evolução
demográfica irreversível. As Igrejas vindas dos Puritanos não somam mais que um
quarto da população e basculam para o campo Democrata. O seu modelo aparece
como um acidente histórico. Ele já desapareceu na África do Sul e não poderá
sobreviver ainda por muito mais tempo, nem nos Estados Unidos, nem em Israel.
Para
além da eleição presidencial, a sociedade dos EUA deve evoluir rapidamente ou
irá dilacerar-se novamente. Num país onde o juventude rejeita maciçamente a
influência dos pregadores puritanos, não é mais possível mover a questão da
igualdade. Os puritanos idealizam uma sociedade onde os homens são todos
iguais, mas não equivalentes. Lorde Cromwell queria uma República para o
Ingleses, mas só depois de ter massacrado os papistas Irlandeses. É assim que
actualmente nos Estados Unidos, todos os cidadãos são iguais perante a lei mas,
em nome dos mesmos textos, os tribunais condenam sistematicamente negros
enquanto encontram circunstâncias atenuantes no caso de brancos tendo cometido
crimes ou delitos equivalentes. E, na maioria dos Estados, uma condenação penal,
mesmo por um excesso de velocidade, basta para retirar o direito de voto. Por
conseguinte, brancos e negros são iguais, mas em alguns Estados, a maioria dos
negros tem legalmente sido privada do seu direito de voto. O paradigma deste
pensamento, em política externa, é a «solução de dois Estados» na Palestina:
iguais, mas acima de tudo não equivalentes.
Foi
o pensamento puritano que orientou as administrações do Pastor Carter, de
Reagan, de Bush (o Sr. e o Jr. são dois descendentes directos dos “Pais Peregrinos”),
de Clinton e de Obama a apoiar o wahabismo, em contradição com os ideais
propagados pelo seu país, e hoje em dia a apoiar o Daesh(E.I.).
No
passado, os “Pais Peregrinos” fundaram comunidades em Plymouth e Boston, que
foram mitificadas na memória colectiva americana. Contudo os historiadores são
rigorosos. Eles afirmavam construir o «Novo Israel» e escolheram a «Lei de
Moisés». Eles não colocaram a Cruz nos seus templos, mas, sim as Tábuas da Lei.
Muito embora cristãos, atribuíam mais importância às Escrituras Judaicas que
aos Evangelhos. Eles obrigaram as suas mulheres a tapar a cabeça com véu e
restabeleceram os castigos corporais.
Thierry Meyssan* -
Voltaire.net - Tradução Alva
*Intelectual
francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace.
As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe,
latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).
Sem comentários:
Enviar um comentário