Pela
mão do Governo PSD/CDS-PP foi alterado o Código de Processo Civil e criado o
novo regime de cobrança de dívidas. A par da privatização do processo
executivo, trata-se do esbulho das pequenas economias dos portugueses e de
deitar mão a um «mercado apetecível» à custa dos bens das famílias que não
conseguiram pagar os seus empréstimos.
José
Martins | AbrilAbril | opinião
O mundo
capitalista passa pelas piores crises económico-financeiras da sua história.
Até
2007, a situação foi marcada pelos tempos em que as famílias portugueses foram
aliciadas de forma leviana pela Banca e instituições financeiras a contraírem
empréstimos. Foram os anos das «vacas gordas» para o capital financeiro, dos
lucros de biliões, da fuga de capitais para os offshores, dos jogos de
casino, do branqueamento de capitais e da corrupção generalizada.
A
Banca optou por colocar todo o capital disponível na construção e no sector
imobiliário, e em investimentos de risco. Até que a bolha rebentou em plena
crise económica-financeira.
E
o resultado do regabofe, apadrinhado e estimulado pelos sucessivos governos de
direita, perante o fechar de olhos da supervisão do Banco de Portugal, foi o
colapso do sistema financeiro, da falência de centenas de milhar de micro,
pequenas e médias empresas, da estagnação económica produtiva, das taxas de
juro elevadíssimas, do aumento brutal dos impostos, da desvalorização dos
imóveis, da precariedade e do desemprego, do endividamento de milhares de
famílias e do flagelo da miséria a bater à porta dos portugueses.
Mas
o grande capital, responsável pelo desastre económico-financeiro, não estava
satisfeito. E é pela mão do Governo PSD/CDS-PP que é alterado o Código de
Processo Civil (CPC) e é criado o novo regime de cobrança de dívidas, com o
falso argumento de que os tribunais não davam resposta ao elevado número de
casos processuais pendentes.
O
objectivo da manobra é claro. A par da privatização do processo executivo,
trata-se do esbulho das pequenas economias dos portugueses e de deitar mão a um
«mercado apetecível» à custa dos bens das famílias que não conseguiram pagar os
seus empréstimos. Efectivamente, com a entrada em vigor do decreto-lei n.º
226/2008, de 20 de Novembro, foi alterado o regime da acção executiva.
A
principal alteração prende-se com o papel desempenhado pelo agente privado de
execução. Este passa a actuar de forma discricionária e sem controlo judicial.
E, mais grave, o agente privado de execução passa a depender com carácter
absoluto do credor, ou seja, dos bancos, das instituições financeiras e das
multinacionais.
Hoje
é tudo automático. É o SIPA (Sistema Informático de Penhoras Automáticas), nome
pomposo que tem sido usado pelos bancos, pelo grande capital e pelos agentes
privados de execução para os maiores desmandos contra as famílias portuguesas.
O
sistema deixou de analisar caso a caso. O sistema judicial deixou de ter
qualquer controlo. Deram todo o poder aos solicitadores privados de execução, à
Banca, às instituições financeiras, os mesmos que arruinaram o País. Representa
um dos mais graves atrofiamentos do sistema de Justiça e um enorme desprestígio
para a Justiça em geral.
Em
apenas dois anos (2013 e 2014) foram penhoradas pensões a mais de 400 mil
idosos, pelas situações de incumprimento de filhos e de netos, na condição de
fiadores. No mesmo período, 5891 famílias perderam a casa no processo de
penhoras. E em 2013 foram iniciados cerca de 1,7 milhões de processos de
penhoras, com 125 mil operações de penhoras efectuadas e 337 milhões de euros
arrecadados.
Desde
o 25 de Abril, o Governo de Passos Coelho/Paulo Portas foi o caso mais típico e
flagrante da fusão entre um governo, os banqueiros e o grande capital. Fazendo
prevalecer os interesses dos bancos e das instituições financeiras, o Governo
desencadeou um ataque brutal, esmagando as famílias, os pensionistas e as
empresas.
Compreende-se
o entusiasmo da então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, quando
refere: «Estão agora reunidas as condições para efectivar a penhora de saldos
bancários de uma forma célere e eficaz.» Igualmente, o FMI não poupa elogios ao
Ministério da Justiça: «As reformas da Justiça levadas a cabo pelas autoridades
portuguesas deverão estar entre as mais bem sucedidas do sector.»
Não
surpreende, também, que o presidente da Câmara dos Solicitadores teça a
seguinte opinião: «Podemos dizer que temos actualmente um sistema de penhoras
electrónico de depósitos bancários inovador a nível de europeu.» E
compreende-se o porquê de tantos elogios. De um lado, estão milhões de
devedores e fiadores; do outro, uma verdadeira máquina de justiça privada,
insensível e em correria desenfreada para abocanhar tudo o que tenha valor.
O
que aconteceu com a privatização da Saúde e com as grandes negociatas aconteceu
com a privatização a Justiça e o grande negócio de 700 milhões por ano.
Em
todo este procedimento há claramente abusos de poder desde que a acção
executiva deixou de estar sob o controlo do juiz. O sistema foi montado para
alimentar o arbítrio e a ilegalidade, e para que os cidadãos em situação de
incumprimento não possam contestar ou fazer oposição junto do juiz de execução,
dado o aumento brutal das custas judiciais.
De
pouco serve escrever cartas, lavrar protestos, apresentar provas. Só importa
penhorar, penhorar e penhorar o máximo possível. É a prepotência erigida em
lei.
A
presunção da culpa e o paternalismo fazem parte do relambório. Partiu-se do
princípio de que o devedor é um criminoso e tem de ser condenado, sem ter em
consideração que o endividamento das famílias tem causas económicas e sociais
(desemprego, doença e divórcios, os três D do incumprimento das famílias).
O
objectivo é fazer com que o devedor e os fiadores sejam esmagados, percam o
controlo da situação e o processo se arraste ad aeternum, com os juros a
aumentar e a tornar a situação de incumprimento cada vez mais difícil de
resolução.
Métodos
coercivos implacáveis, inflexibilidade e ilegalidade sobre as famílias a
contrastar com as facilidades, benevolência e apoios com dinheiros públicos à
Banca e ao capital financeiro – estes, sim, responsáveis pelas falências do
BPN, BPP, BANIF e do BES, da fuga de milhões para paraísos fiscais, do
branqueamento de capitais e da corrupção que atingiu o sistema financeiro.
Os
portugueses foram esbulhados em 13,5 mil milhões de euros para «salvar» a
Banca, o equivalente a 7,3% do PIB. Mas estes (a Banca e o sistema financeiro)
são os devedores especiais, aqueles que movimentam milhões, os que têm direito
divino à renegociação das suas dívidas, aos perdões fiscais, ao acesso a
empréstimos a zero juros. São os devedores VIP, dos casos mediáticos, bem
protegidos e defendidos pelos grandes escritórios de advogados.
É
interessante notar que, passados que foram os sobressaltos para a Banca devido
à queda do Governo PSD/CDS, aí está novamente a Banca, intocável e omnipotente,
a exigir o cumprimento dos prazos e juros, o pagamento integral das dívidas,
com a penhora dos salários, pensões e saldos bancários. A fazer chantagem, a
ameaçar e humilhar as famílias.
É
mais do que certo que os limites do tolerável já foram ultrapassados. É
conhecido que a severidade de tratamento por parte da Banca e das instituições
financeiras é proporcional à sensibilidade social que possa existir num
governo.
Por
isso mesmo, a independência, a imparcialidade e a isenção em toda a acção
executiva devem estar depositadas no poder judicial. Mas o que acontece é que
foram atribuídas tais competências aos solicitadores e agentes privados de
execução, cuja constitucionalidade é legítimo equacionar.
Igualmente,
trata-se de eliminar os entraves que impedem as famílias em situação de
incumprimento de aceder a um regime especial de devedores que obrigue a Banca e
as instituições financeiras a renegociar e a prescindir dos altíssimos juros
quando da aplicação de um plano de reestruturação da dívida, que deverá ser
supervisionada pelo Departamento de Apoio ao Cliente Bancário do Banco de
Portugal.
Os
devedores, na sua esmagadora maioria, estão de boa-fé e pretendem honrar os
seus compromissos, mas à Banca e às instituições financeiras interessa-lhes
fazer «orelhas moucas».
As
recentes alterações verificadas com a Lei n.º 13/2016, de 23 de Outubro, no
sentido de proteger a casa da morada de família no âmbito de processos
executivos, são um passo importante, mas não chega. Face aos desmandos e
ilegalidades, é preciso ir mais longe na protecção adequada às famílias em situação
de incumprimento.
O
Estado não pode demitir-se das suas funções ao serviço dos cidadãos. Quando tal
acontece, é o Estado de Direito que é ferido de morte.
Sem comentários:
Enviar um comentário