“Lupi,
velho guerrilheiro da caixinha de fósforos” - Jornalista Paulo Santana
(1939-2017)
Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre
| Brasil
Em
agosto de 2017, completam-se 43 anos da morte de um grande ícone da música
brasileira: o gaúcho Lupicínio Rodrigues. Nascido, em Porto Alegre, na Ilhota,
em uma noite chuvosa de 16 de setembro de 1914, ainda menino, fugia de casa
para participar das rodas de samba que, com frequência, ali ocorriam. A antiga
Ilhota se localizava nas atuais imediações do Estádio Tesourinha e do Centro
Municipal de Cultura, constituindo-se num dos espaços mais importantes de
resistência cultural do negro na capital gaúcha.
Lupi
- como carinhosamente era chamado - exaltou, em suas canções, o amor com suas
alegrias, sonhos, dores e desencantos, adentrando, com a precisão de um
bisturi, nos mistérios da alma e do coração.
A
Família
Sua
primeira composição, aos 14 anos, chamava-se “Carnaval”. Esta foi encomendada pelo
cordão ”Os Prediletos” que era oriundo da antiga Colônia Africana. Totalizando
21 filhos, Lupi foi o quarto filho e o primeiro varão do casal Francisco
Rodrigues e Abigail. Embora não se adaptando a rotina escolar, completou o
curso ginasial e aprendeu o ofício de mecânico.
As
dificuldades financeiras levaram Lupi a exercer, desde cedo, várias atividades:
baleiro, em frente do Cinema Garibaldi, entregador de pacotes na famosa
Livraria do Globo, empurrador de roda de bonde na Cia. Carris e fazedor de
parafusos na Fábrica de Cipriano Micheletto. A sua paixão por música e
pela vida boêmia fez com que seu pai o alistasse, aos 15 anos, no Exército,
acreditando que estaria dando outro rumo à vida do filho.
O
primeiro amor
Promovido
a cabo, em 1933, transferiram-no para Santa Maria. Nesta cidade,
Lupi conheceu a jovem Iná, que foi o primeiro e um dos seus grandes amor.
Após cinco anos, o noivado foi desfeito, pois os pais da noiva não aprovaram o
seu comportamento boêmio. Ao vê-la enamorada por outro, ele sentiu um desgosto
profundo. Este sentimento de traição foi a força motriz, que o inspirou a
compor canções de teor passional, consagrando-o como “O Rei da dor de cotovelo”.
No
ano de 1935, deu baixa do Exército, retornando para Porto Alegre. De volta à
capital, empregou-se como bedel na Faculdade de Direito da UFRGS. Reza a
tradição de que, diante da monotonia de algumas aulas, os alunos preferiam
ouvir as canções de Lupi a estudar. Ele costuma repetir que o amor era a causa
de todos os seus males, aposentando-se, em 1947, devido à saúde debilitada.
Durante
as comemorações do famoso Centenário Farroupilha (1935), Lupi participou de um
concurso musical que foi organizado pela Prefeitura. A canção vencedora
foi “Triste História”, cuja composição contou com a parceria de Alcídes
Gonçalves (1908-1987). Em 1936, gravou também a canção “Pergunta aos meus
tamancos” da autoria de ambos. Esta famosa dupla compôs, também, outros
inesquecíveis sucessos: “Castigo” (1953), “Maria Rosa” (1949), “Cadeira Vazia”
(1949), “Quem há de dizer” (1948), entre outras composições.
Seu
primeiro sucesso
O
sucesso chegou, em 1938, com o samba “Se acaso você chegasse”, que foi gravado
por Cyro Monteiro (1913-1963), em parceria com Felisberto Martins (1904-1980). Este
último, que morava no Rio de Janeiro, foi responsável pela divulgação
desse trabalho. Seu sucesso foi matéria na Revista Carioca (1930-1960),
uma das mais populares da época. Nos anos 50, esta revista chegou a
registrar uma foto de Lupi a dedilhar um violão, mas a imagem não passava de
uma “jogada” editorial, pois ele não tocou nenhum instrumento, exceto quando
batucava numa caixa de fósforos. Seu estilo era compor assoviando a melodia e
anotando as letras em guardanapos e pedaços de papel, Em uma viagem ao Rio de
Janeiro, em 1939, Lupi conheceu Francisco Alves (1898-1952) - “O Rei da Voz” -
que acabou gravando as canções: “Nervos de aço” (1947), “Esses Moços” (1948),
“Quem há de dizer” (1948) e “Cadeira Vazia” (1950).
Embora
o jornalista Marcelo Campos - que é autor do Almanaque do Lupi (2014) – não
concorde, muitos autores e a tradição oral afirmam que as canções de Lupi se
tornaram conhecidas, no centro do país, graças também aos marinheiros, que
frequentavam bares e boates em Porto Alegre. Ao desembarcarem, noutros centros,
divulgavam o que haviam escutado na noite gaúcha.
Outro
amor fracassado
Abandonado
pela carioca Mercedes, ele viveu outra grande decepção amorosa, que o inspirou
a compor “Briga de Amor”, “Minha Ignorância”, “Nunca” e “Vingança.”. Nesse
ínterim, foi pai da menina Tereza com Juraci de Oliveira,. Esta, à beira da
morte, levou-o a legalizar a união.
Os
ícones nacionais Orlando Silva (1915-1978) e Linda Batista (1919-1988), também,
gravaram músicas compostas por Lupi.. O primeiro, em 1947, interpretou as
canções “Brasa” e “Zé Ponte”; já a segunda, em 1951, com a canção “Vingança”,
alcançou um sucesso absoluto.
Lupi,
em 1949, casou-se com a gaúcha Cerenita Quevedo. Esta o acompanhou até o final
de sua vida, sendo a mãe de Lupicínio Rodrigues Filho, o Lupinho. A canção
“Exemplo” foi composta por Lupi em sua homenagem.
O
Hino do Grêmio
No
ano de 1952, gravou seu primeiro álbum “Roteiro de um Boêmio”. No ano seguinte,
compôs o atual Hino do Grêmio. No dia do jogo - Grêmio x Cruzeiro - houve
muita dificuldade de acesso ao local, o Estádio da Baixada, no bairro Moinhos
de Vento, devido a uma greve iniciada dias antes pelos motoristas, motorneiros
e cobradores de ônibus e bondes da Carris, Soul e Teresópolis. Este fato
justifica o verso presente no hino “Até a pé nós iremos...” Lupi é homenageado
pela família gremista, por meio de um retrato, na Galeria dos Gremistas
Imortais, no salão nobre do clube. Em 1954, ano do suicídio do presidente
Vargas, seu samba-canção "Aves daninhas" foi gravado por Nora Ney,
pela Continental, constituindo-se num grande sucesso.
O
Racismo no Futebol
O
pai de Lupi, Francisco Rodrigues, pertenceu à Liga da Canela Preta, tendo sido
um dos fundadores e jogador do Rio-Grandense, que fazia parte desta liga. Ao
tentar introduzir o time, no campeonato oficial, recebeu o veto do Sport Club
Internacional. Este fato fez com que Lupi se desencantasse com o time colorado,
passando a torcer para o Grêmio. O racismo era muito intenso à época.
Embora o Internacional (1909) seja conhecido como o Clube do Povo, ele passou a
incluir negros somente a partir da década de 20. A elite branca, representada
por italianos e alemães, dirigia os principais times, naquela época, e não
aceitava a presença de jogadores negros. Devido a esse preconceito, criou-se,
na década de 1910, na Ilhota, a Liga da Canela Preta. É neste local , em
1914, no ano da eclosão da 1º Guerra Mundial, que nasceu Lupi.
Ao
som de uma caixa de fósforos e assoviando, numa mesa de um bar, ele compôs
verdadeiros relicários musicais que atravessaram gerações. Suas
composições espelham as emoções mais profundas da alma. Lupi foi o canal de
expressão dos que desafiavam a moral vigente e daqueles que buscavam alívio de
suas dores na mesa de um bar. Bastava assoviar e batucar numa caixa de
fósforos, para que suas mágoas se transformassem em poesia. Sua música é um
mosaico de amores, vinganças, encontros e abandonos. Ele desnudou, como
ninguém, a psique humana. O amor foi a bússola que orientou a existência
do “ Rei da dor de cotovelo”.
A
partir da canção “Ela disse assim”, em 1959, suas canções se popularizaram,
ainda mais, na voz do saudoso José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão
(1913-2008), que se tornou um dos seus maiores intérpretes. Ainda, em
1959, Elza Soares gravou o famoso samba “Se acaso você chegasse”.
A
Política
Em
1959, Lupi concordou em concorrer pelo Partido Republicano (PR), uma sigla
pouco expressiva e que, no Rio Grande do Sul, também servia de reduto para
comunistas do PCB, porém atingiu apenas 396 votos. Isto fez com que ele
desistisse da carreira política, Em sua plataforma eleitoral, ele defendia os
direitos dos cantores e músicos que trabalhavam à noite nas boates e bares da
capital numa espécie de nacionalismo boêmio.
O
cronista da Última Hora
Última
Hora (1960-1964) foi o único jornal da capital que não apoiou o golpe de 64 e
defendeu, abertamente, a figura do presidente João Goulart e sua política de
reformas de base. O posicionamento contrário ao golpe acarretou o encerramento
das suas atividades. Neste periódico, no período de fevereiro de 63 a fevereiro
de 64, Lupi escreveu sobre as suas composições e a vida boêmia de Porto Alegre,
totalizando 42 crônicas. A coleção deste periódico faz parte do acervo do Museu
da Comunicação Social Hipólito José da Costa que, desde setembro de 1974, é
responsável pela guarda, preservação e difusão da memória dos meios de
comunicação em nosso Estado.
O
empresário
Alguns
bares e restaurantes foram gerenciados por Lupi, como o Jardim da Saudade, o
Clube dos Cozinheiros, o Batelão e o Bar Vingança. Ele costumava declarar que
não visava ao lucro, apenas reunir os amigos para confraternizar.
Lupi
é redescoberto
Após
um tempo de ausência nas paradas, devido ao sucesso do rock e da bossa nova, na
década de 60, artistas famosos regravaram as composições do “Rei da Dor de
Cotovelo”, a exemplo de Elis Regina (Maria Rosa), Zizi Possi (Nunca), Maria
Bethânia (Foi Assim), Caetano Veloso (Felicidade), Gal Costa (Cadeira Vazia)
Paulinho da Viola (Nervos de Aço), Gilberto Gil (Quem há de dizer) entre outros
nomes da nossa MPB. Lupi compôs cerca de 600 composições, tendo gravado,
aproximadamente, 150. Seus biógrafos registram que seu lado compositor sofreu
influência de Noel Rosa (1910-1937), enquanto o cantor se espelhou na figura de
Mário Reis (1907-1981).
Lupicínio
Rodrigues faleceu de insuficiência cardíaca, em 27 de agosto de 1974, e foi
sepultado, no Cemitério São Miguel e Almas. Ao som do grande sucesso, “Se acaso
você chegasse”, o jornalista Paulo Santana (1939-2017), sob os aplausos da
multidão, começou a cantar, emocionando todos os presentes.
Transcorridos
43 anos, a história se repetiu, em julho de 2017, porém o cenário foi o funeral
do colunista da Zero Hora, Paulo Santana, um fã incondicional de Lupi e um
fanático torcedor do Grêmio. O eterno sucesso, “Se acaso você chegasse”,
invadiu as galerias do cemitério João XXIII num misto de saudade e de
reencontro feliz de dois amigos: o primeiro um ícone da música; o segundo, do
jornalismo.
As
lembranças vividas com Lourdes Rodrigues (1938-2014), Zilá Machado (1928-2011),
Alcides Gonçalves (1908-1987), Orlando “Johnson” Silva (1910-1995), entre
outros amigos, e as noites de boemia, no Bar Adelaide’s, ficaram na memória de
quem compartilhou a sua amizade. Lupicínio Rodrigues partiu deste mundo,
aos 59 anos, num dia chuvoso. A Chuva era como as lágrimas de todos os
amantes, que passaram a existência em busca do verdadeiro amor….
Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=fMVTL3tHamo
Lupicínio Rodrigues - "Vingança" (1972)
* Coordenador do Setor de Imprensa do Museu de Comunicação Hipólito José da Costa
Bibliografia
CAMPOS,
Marcelo. Almanaque do LUPI. Porto Alegre: Editora da Cidade/ Letra
& Vida, 2014.
GONZALEZ,
Demósthenes. Roteiro de um boêmio: vida e obra de Lupicínio Rodrigues – crônicas.
Porto Alegre, Edit. Sulina, 1986.
OLIVEIRA,
Márcia Ramos de, Lupicínio Rodrigues: a cidade, a música, os amigos.
Dissertação de Mestrado /PPG em História/UFRGS, 1995.-
———————–
Uma leitura histórica da produção musical de Lupicínio Rodrigues. Tese de
Doutorado/PPG em História/UFRGS, 2002.
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