O secretário de Clacso, Pablo
Gentili, reconstruiu um dia que será fundamental no Brasil e região: 24 de
janeiro, quando a Justiça deixou Lula perto de não poder candidatar-se à
presidência. Aqui suas conversas com Lula nos momentos anteriores e depois do
fracasso dos juízes de Porto Alegre
Pablo Gentili, Página/12 | em Carta
Maior
Lula apoia seu rosto sobre a mão
esquerda. Não parece cansado, embora todos ao seu redor estejam exaustos depois
de semanas de tensão e nervosismo. Faltam algumas horas para que o Tribunal
Regional Federal confirme a sentença do juiz Sérgio Moro. Lula se mostra
realista e assume a missão de manter o ânimo entre seus familiares,
colaboradores e amigos. Sempre foi assim. Nos momentos mais difíceis de sua
gestão como presidente, ele chegava ao Palácio do Planalto e quando via alguém
abatido dizia: “que cara é essa? Não me diga que você está lendo os jornais”.
Logo, soltava uma imensa gargalhada, contagiosa, balsâmica, reparadora. Era o
Lula presidente, o que apoiava, consolava e animava todos. Continua sendo assim.
Como Lula, os que o acompanham
neste 24 de janeiro no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista sabem que
estão assistindo a crônica de uma sentença anunciada. Se repete a farsa
jurídica iniciada pelo juiz Sérgio Moro, com quem o ex-presidente teve diálogos
que envergonhariam a Kafka e seriam a inveja dos Irmãos Marx. Um juízo no qual
não há nada o que provar. Tudo o que tiver que ser atribuído a Lula já está
dado como certo através do artifício jurídico da convicção do juiz, do chamado
“domínio do fato”, do desprezo ao devido processo e da indolente pretensão de
querer transformar uma vingança num ato de justiça. Se chama lawfare: o uso do
Poder Judiciário para acabar com os adversários políticos.
A equipe do ex-presidente
acompanha a sessão pela televisão e observa como os juízes de apelação leem suas
intermináveis sentenças, que já estavam escritas antes de escutar a própria
defesa de Lula – que só teve 15 minutos para expor suas razões. Um observador
privilegiado do evento foi o jurista australiano Geoffrey Robertson, presente
na sala de audiências de Porto Alegre, e que logo após o resultado disse que
“isto não foi uma sessão justa. Os juízes falaram durante cinco horas, lendo um
roteiro que haviam escrito antes de escutar qualquer argumento. Numa corte de
apelação, os juízes devem primeiro escutar as partes, antes de emitir uma
sentença”.
Todos observam as atualizações de
notícias nas redes sociais, menos Lula. Um dos tuites que gera mais impacto é o
do jornalista Rodrigo Vianna: “No processo mais importante da história deste
país, uma mulher negra serve café a três homens brancos que vão condenar um
retirante nordestino. Quem não entendeu isso não entendeu nada”.
Lula pensa sabe-se lá no que.
Ninguém o molesta nem interrompe o que parece ser um íntimo ritual de
introspecção deste imenso líder operário, nascido numa das regiões mais
miseráveis do planeta. Abraça seus filhos um por um. Diz a eles algo no ouvido
antes de começar a intervenção do último juiz, se retira e vai à casa.
No sindicato permanecem mais de
500 personas, entre colaboradores, dirigentes, ativistas, militantes sindicais,
representantes do Movimento Sem Terra (MST) e dezenas de jornalistas, de 34
países diferentes. No sindicato, que sempre foi também a casa do ex-presidente,
permanece a tristeza. Também ali, há apenas alguns meses, foi velada Marisa
Leticia, a esposa de Lula, que os juízes citam agora como partícipe de um
delito que ninguém cometeu. No sindicato permanece a tristeza. Há exatamente um
ano, no dia 24 de janeiro de 2017, Marisa Leticia sofria um derrame cerebral que
lhe custou a vida. Foi o dia que a justiça brasileira escolher para golpear
novamente o Lula.
Anestesia
Em sua casa, também em São
Bernardo do Campo, Lula permanece acompanhado por sua família e alguns poucos
amigos. Está tranquilo e tenta descansar para a longa jornada que ainda o
espera. Milhares de ativistas, centenas de movimentos sociais, trabalhadores
rurais, organizações sindicais, estudantis e profissionais haviam se congregado
numa multitudinária jornada de protestos, no dia anterior, em Porto Alegre. As
mulheres, convocadas por diversas organizações feministas e contando com a
presença da presidenta Dilma Rousseff, tiveram papel de protagonistas nos atos
e mobilizações que reuniram mais de 70 mil pessoas na cidade que se tornou
ícone do bem sucedido “modo petista de governar”. Uma cidade heróica na memória
da esquerda mundial, agora transformada no cenário de um momento trágico para a
história democrática do Brasil e da América Latina.
Muitas destas organizações e
líderes políticos de todo o mundo se deslocaram depois a São Paulo. Nesse dia,
ao finalizar a sessão que ratificaria a condenação a Lula, milhares de pessoas
começaram a se aglomerar na Praça da República, onde aconteceria, durante a
noite, um ato que desafiou a prepotência oficial, no qual o PT lançaria a
candidatura de Lula à Presidência da República.
No discurso, o ex-presidente
voltou a mostrar seu semblante mais enérgico. São os atos e a proximidade com o
povo que mantêm Lula ativo. Os abraços, os beijos, as fotos que tanto molestam
alguns dirigentes, são o combustível que alimenta sua vontade, a força que o
rejuvenesce e lhe dá fortaleza para enfrentar qualquer tipo de adversidade.
Página/12: Quais desafios o PT e
as forças progressistas brasileiras deverão enfrentar a partir de agora?
Lula: O desafio de evitar os
retrocessos que estão ocorrendo na democracia e nos direitos dos trabalhadores.
Especialmente, agora, com a proposta de reforma da Previdência impulsionada
pelo governo golpista de Michel Temer. Também de garantir eleições realmente
livres e democráticas em outubro deste ano. Uma ofensiva conservadora tenta
anestesiar o país. Afirmavam que o problema do Brasil era o PT e o governo da
Dilma. Foi assim que eles destituíram uma presidenta eleita por 54 milhões de
votos, prometendo que tudo iria melhorar. Depois, disseram que o problema eram
os direitos trabalhistas. E acabaram com esses direitos. Agora dizem que o
problema são os aposentados e eu. Mas o povo brasileiro está despertando e
descobrindo que, em vez de curar da doença como prometeram, estão roubando
todos os órgãos vitais do país: nossos recursos naturais, os direitos do povo,
o patrimônio público. Tudo o que temos construído com o sacrifício e o trabalho
de várias gerações, eles estão vendendo a preço de banana.
A direita fez o golpe, mas passou
mais de um ano e não consegue ter outro candidato além de um neofascista,
defensor da ditadura militar, sexista e violento, como Jair Bolsonaro. Um
deputado que na sessão de destituição de Dilma Rousseff dedicou seu voto ao
general que a havia torturado quando ela tinha 19 anos. Por outro lado, a
candidatura de Lula cresce visivelmente, e lidera todas as pesquisas
eleitorais. Apesar de todos os ataques, o PT continua sendo o partido com o
maior número de militantes e maior apoio popular na sociedade brasileira.
Página/12: Por que está ocorrendo
isso?
Lula: Porque o povo está
percebendo que o golpe não foi contra a Dilma, contra Lula ou contra o PT. O
golpe foi contra os trabalhadores, contra a classe média, contra os que fazem
um enorme esforço por sobreviver com dignidade. O golpe foi contra as
conquistas democráticas que levaram o Brasil a reduzir significativamente a
pobreza, a injustiça social, a fome. Inclusive, um amplo setor da classe média
que apoiou o golpe está sofrendo as suas consequências. Se não reagirmos a
tempo, o Brasil voltará a ser um país onde um terço da população tem direitos
enquanto milhares de crianças passam fome nas ruas, como já está ocorrendo. Os
índices sociais do país pioraram de forma assombrosa. O Brasil só pode ser um
país grande, importante e soberano se a economia cresce de verdade.
Página/12: O que seria crescer de
verdade?
Lula: Crescer incluindo os
pobres. Quando os pobres podem comprar, quando podem consumir, o comércio vende
mais, a indústria produz mais. Brasil crescia e incluía milhões de pessoas no
orçamento público que antes não tinham direitos nem as oportunidades mais
básicas. Eles estão destruindo tudo isso. O Brasil era um país com futuro. Um
país de todos, não de alguns poucos. Estávamos deixando de ser o império do
privilégio. Um país não pode ser um mero exportador de commodities, porque elas
empregam pouco e fazem com que a economia tenha que conviver com multidões de
desempregados, pobres e excluídos.
De costas
Nas primeiras horas da tarde de
24 de janeiro, a farsa jurídica deu um novo passo adiante. Lula sofreu uma nova
condenação que complica seriamente suas possibilidades de ser candidato nas
eleições presidenciais de outubro deste ano. Enquanto se prepara para ir à
concentração, na Praça da República, no centro de São Paulo, ele recebe
ligações de apoio e de solidariedade de todo o mundo. É um ícone da democracia
latino-americana e mundial, venerado em todos os continentes, não só por
líderes e personalidades políticas progressistas como também por liberais e
conservadores com apego ao devido processo.
O manifesto “Eleição sem Lula é
fraude” reuniu, em poucos dias, mais de 215 mil assinaturas. Destacados
intelectuais, políticos, artistas, juristas e dirigentes sociais progressistas
de todo o mundo aderiram à declaração que já circula em 10 idiomas. Cristina
Kirchner, José Pepe Mujica, José Luís Rodríguez Zapatero, Rafael Correa,
Massimo D’Alema e Ernesto Samper são alguns dos ex-mandatários que o apoiam.
Lula: Estou imensamente
agradecido pelo respaldo e pela solidariedade internacional, especialmente de
países como Argentina, México, Uruguai, Equador, Itália, Portugal, Espanha,
França, Inglaterra, Estados Unidos e Venezuela.
Página/12: O que muda no processo
de integração regional após o golpe no Brasil?
Lula: Infelizmente, o Brasil
voltou a dar as coisas aos seus vizinhos, a disputar com eles quem atrai melhor
a atenção dos Estados Unidos. Querem saber quem ganha o privilégio de jantar
com o Donald Trump, como se a solução dos nossos problemas dependesse disso, e
não de uma política internacional própria. Respeitando o mundo, mas sem manter
essa vergonhosa submissão. O governo de Michel Temer não tem legitimidade, e
tampouco uma política exterior. Está dedicado a vender os ativos e o patrimônio
do nosso país. Cada nação tem a sua história, seus governos, sua cultura. Em
matéria internacional, é fundamental que exista diálogo e respeito mútuo. Tenho
muito orgulho do período em que fui presidente do Brasil e pude conviver com
presidentes como Néstor e Cristina Kirchner, com Pepe Mujica, Chávez, Bachelet,
Evo, todos eles.
Página/12: O que tinham em comum?
Lula: Entendíamos a
importância de uma região sem conflitos. Entendíamos que éramos mais fortes
juntos, resolvendo os problemas entre nós, sem a interferência externa, nossas
diferenças. Evitávamos crises e promovíamos a cooperação comercial, educativa e
social entre os nossos países. Sempre tive a convicção de que o Brasil só
poderia se desenvolver de forma soberana se nossos próprios vizinhos se
desenvolviam também de forma soberana. Hoje, essas ideias essa energia
integradora e solidária, foi congelada ou está em retrocesso. Entretanto, a
integração entre os nossos povos é uma vocação inexorável e voltará a avançar.
Página/12: Durante muito tempo, a
consigna do PT foi “a esperança vence o medo”. Hoje, muitos jovens se aproximam
da política porque creem na vigência daquele lema.
Lula: Sempre digo uma coisa:
abandonar, nunca, perder a esperança, jamais. O neoliberalismo, muitas vezes
sustentado pelos monopólios midiáticos, promete um futuro melhor para todos mas
concentra a riqueza e restringe as oportunidades em alguns poucos, os de
sempre. No Brasil, nós provamos que podíamos governar fazendo exatamente o
contrário: que era possível incluir os pobres no orçamento público, que
podíamos investir mais em educação, mais em saúde e em moradia, acabar com a
fome, construir dignidade, ampliar direitos. Eles querem apagar da memória do
povo esse período de conquistas democráticas. Hoje eles me condenam, mas querem
condenar também esse projeto de nosso futuro como nação livre, soberana e
justa. Querem fazê-lo, mas não conseguirão.
Página/12: Há uma mensagem
especial para os jovens?
Lula: Milhões de jovens
chegaram pela primeira vez à universidade no Brasil. Nós fomos o último país
das Américas que criou uma instituição universitária. Quando a Argentina já
estava fazendo a reforma universitária nós nem tínhamos uma. Fomos os últimos
em abolir a escravidão. Éramos a vanguarda do atraso. Em 12 anos de governos
nossos, conseguimos ter a primeira geração de brasileiros e brasileiras que não
tinham crianças passando fome. Tiramos mais de 40 milhões da pobreza sem
prejudicar nenhum setor social, sem perseguir ninguém. Isso nunca havia
ocorrido na história do nosso país. Foi possível utilizar a política em
benefício das maiorias e através do Estado, fazer políticas públicas de inclusão
e promover a justiça social. Nós mostramos que o povo sabe governar melhor que
as elites. Por isso eles nos odeiam. Mas te digo uma coisa: essa reação
retrógrada não vai prosperar. Nós vamos vencer.
*Pablo Gentili é
secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)
e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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