domingo, 25 de fevereiro de 2018

PORTUGAL | "Os políticos lêem pouco e escrevem mal"


O escritor e editor Francisco José Viegas acredita que os livros correm o risco de "serem cada vez menos populares", culpando, acima de tudo, "a desvalorização da literatura no ensino do português".

Do sistema de ensino aos meios de comunicação social, sem esquecer a família, Francisco José Viegas encontra vários culpados na hora de explicar as razões da retração do mercado editorial português há perto de uma década. Para o antigo secretário de Estado da Cultura, os editores "são os últimos resistentes de um mundo (cada vez mais democrático) que desvaloriza a leitura na escola e na família".

Segundo as Estatísticas da Cultura de 2016, divulgadas pelo INE, os portugueses estão a gastar mais em concertos e a visitar mais museus (embora o crescimento também se deva aos turistas), mas a comprar menos livros. Como analisa os resultados?

Com preocupação. O aumento estatístico das visitas aos museus já vem de 2013, e compreende-se com a importância que os portugueses passaram a atribuir mais ao seu património, com a grande contribuição do turismo - acho, mesmo, que é a mais dominante. Basta ir aos museus para perceber a importância dos turistas nos museus nacionais. Por outro lado, sabemos que a nossa sociedade valoriza cada vez mais o espetáculo, a música ao vivo e a ideia de festa. Daí que não me espante o aumento de público dos concertos, mas também aí o número de estrangeiros é dominante. O caso mais emblemático de crescimento é o Nos Alive, o festival que, pela sua qualidade, tem maior sucesso no estrangeiro.

A tendência para a quebra na área do livro não é apenas portuguesa; em França houve uma queda de 1,1% em 2017, na Alemanha calcula-se que só no primeiro trimestre se registou uma perda de 600 mil leitores (o que é tanto mais grave quanto se sabe que é um dos países europeus com mais solidez nos índices de leitura), em Espanha registou-se um crescimento de 3%, mas que não serve ainda para compensar as perdas de 700 milhões dos últimos quatro anos na indústria editorial, e em Inglaterra houve uma perda de 2,9% em volume de vendas (embora com um crescimento de 0,09% de faturação das editoras graças ao aumento dos preços).

O livro corre o risco de ser cada vez menos popular, não creio que valha a pena mascarar o panorama.

Em relação à área concreta dos livros, que causas aponta para essa descida contínua?

Em primeiro lugar - provavelmente no topo de tudo - a desvalorização da literatura no ensino do português; hoje destacam-se mais, nas aulas e nos manuais escolares, os textos de «português normal», pobre, banal, sem grandeza literária. Depois, tanto a falta de destaque dos meios de comunicação - nomeadamente a televisão - aos livros e à literatura, como a democratização do acesso aos chamados "bens culturais". Isto pode parecer um absurdo, mas explico rapidamente: nos anos 80, deixou de haver páginas de livros e de literatura nos jornais, substituídas por páginas de "cultura & espetáculos" ou "entertainement" - era uma concorrência manifestamente desleal em relação ao livro, além de que muitas dessas páginas passaram a incluir gastronomia, jogos de vídeo, viagens, moda, etc. É uma questão de pacto de regime. Queremos ou não que os nossos filhos, os vindouros, sejam bons leitores (ou apenas leitores), apreciem os tesouros da língua, valorizem o belo e o maravilhoso da literatura? Pode acontecer que as pessoas não estejam para aí viradas, e tudo bem, teremos de viver numa sociedade medíocre, sem os valores que eram dominantes até ao século XXI. Manteremos o livro para minorias, vastas minorias, mas minorias.

Portanto, acho que a descida desses índices vai continuar. Se compararmos um romance do início do século XX (imaginemos "Mau Tempo no Canal") e um romance contemporâneo, verificaremos que se perdeu cerca de 25 a 30% daquele léxico. É muito, e é trágico.

Que efeitos é que esta queda já está a provocar na atividade das editoras e de que forma isso se repercute na qualidade final?

Os editores são heróis hoje em dia. São os últimos resistentes de um mundo (cada vez mais democrático) que desvaloriza a leitura na escola e na família. As séries de televisão substituíram os livros, e os livros ainda não souberam responder. No caso dos debates de ideias, livros de não-ficção, é extraordinário como os editores conseguem publicar tão bons livros num país em que a média de títulos lidos por estudantes de uma faculdade de letras não chega aos 2 por ano. São números de estudos realizados há poucos anos, e são escandalosos - mas a verdade é que a própria classe política lê pouco e escreve mal, portanto não pode estar sensibilizada para o tema, além de que falam em circuito fechado, em endogamia, não sabem nada do que se passa na vida real. Os editores são heróis, não tenho dúvida nenhuma, porque não só têm de responder às necessidades de faturação (ou seja, têm de publicar livros vendáveis) como, ao mesmo tempo, têm de ser editores e agentes culturais.

Apesar da subida em algumas áreas, como as atrás citadas, os gastos das famílias portuguesas com cultura recuaram mais de 20%. A crise que incidiu sobre esses anos explica essa descida ou há outras razões?

Se fosse pela crise, apenas, então hoje estaríamos a vender muito, muito, muito mais. Há razões mais profundas. Têm a ver com a própria sociedade, que valoriza cada vez menos a leitura e os bons livros, e por isso os editores têm de ser cada vez mais inteligentes, pacientes e dedicados. Esse recuo de 20% era esperado - as pessoas preferem colecionar selfies de restaurantes gourmet em vez de bibliotecas para os seus filhos. Porque o livro não ficou mais caro, nem é mais caro do que outros produtos de consumo. Simplesmente, acho que estamos num momento de viragem, de conflito e de desleixo. A começar pela própria escola, e pelas políticas atuais.

Sérgio Almeida | Jornal de Notícias

Imagem Francisco José Viegas critica desvalorização do livro na sociedade | Foto de Igor Martins/Global Imagens


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