Há pelo menos 4,7 milhões de
italianos a viver na pobreza – muitos deverão abster-se no domingo. Num dos
maiores mercados da Europa, há requerentes de asilo a distribuir fruta e
verdura a dezenas de pessoas por dia.
O frio é de rachar e nevou
durante parte da manhã. Os voluntários temem que os vendedores do Porta Palazzo
se preparem para arrumar as bancas mais cedo. Pior: interrogam-se se vão
aparecer pessoas para recolher a fruta e as verduras que eles distribuem depois
de encerrado o mercado. Afinal, correu tudo bem. Recolheram 91 kg de verduras e
82 de fruta que umas 25 pessoas levaram para casa – a média são 200 kg e 30 a
40 pessoas por dia.
É difícil, mas em 42 dias de
campanha os líderes políticos italianos conseguiram não falar de alguns dos
problemas mais graves no país. O desemprego, por exemplo, mas também a pobreza,
usada pela coligação de direita para acusar o centro-esquerda, no poder, de ter
“criado mais três milhões de pobres”, sem propostas sérias para inverter a
situação. Em 2016, havia 4,7 milhões de italianos a viver na pobreza absoluta
(sem dinheiro para produtos essenciais). É provável que já sejam mais.
Foi em 2016 que Paolo Hutter,
jornalista e fundador da associação Eco dalle Cittá, um portal que se dedica a
notícias sobre ambiente, começou a pensar no projecto que hoje se chama
Eco-mori. Inicialmente, uma iniciativa para promover a recolha diferenciada de
lixo.
“Começámos a distribuir estes
sacos biodegradáveis pelos vendedores para não misturarem o lixo orgânico com o
resto. Mas vimos que no fim do mercado se formava uma montanha gigante e que
vinha gente tentar encontrar comida boa entre caixas e papéis”, descreve Luca,
o jovem que Paolo contratou como jornalista e que acabou a coordenar o
Eco-mori. Na sala por onde se entra na associação, outros jovens dividem os
sacos.
O nome – que junta ecologia e mori (negro
em dialecto do Piemonte) – já era este. A ideia incluiu sempre reunir
voluntários entre os milhares de africanos requerentes de asilo a viver em
Turim. Assim, para além de distribuírem os sacos pelos vendedores, estes
voluntários, de coletes cor-de-laranja fosforescente que os identificam como
“sentinelas dos resíduos”, recolhem junto destes as frutas e verduras que eles
sabem que já não vão vender (não estarão em condições no dia seguinte).
Têm a sua própria banca, que
identificam com a faixa onde se lê Eco-mori, e é lá que fazem uma última
escolha, decidindo o que está em bom estado, pesam os produtos e os
redistribuem por caixas, “para que cada pessoa leve um pouco de tudo”.
“Peço desculpa, ainda não
podemos. Só depois das 14h”, explica Omar Sillah com toda a simpatia a uma
senhora que se preparava para começar a mexer nas caixas já expostas onde há
alcachofras, courgettes, bananas, laranjas, alfaces, couves e tomate.
Parceiros e sorte
Primeiro, foi preciso contactar a
assessoria de Ambiente da câmara e a Amiat, a empresa que gere a recolhe de
resíduos em Turim. Depois, faltava um patrocinador e surgiu a Novamont, empresa
de transformação de recursos, que fornece os sacos e se concentra actualmente
no bioplástico. “Tivemos sorte em estar tão perto”, diz Paolo. A redacção e
sede da Eco dalle Cittá fica a centenas de metros do Porta Palazzo, no centro
histórico da cidade.
A maioria dos voluntários vem do
mesmo centro de acolhimento, um lugar que oferece cama e algumas aulas de
italiano mas mais nenhuma actividade. Alguns estão desde o início, outros
vieram algumas vezes e não voltaram. Ao todo, passaram pelo Eco-mori 45
requentes de asilo, homens e mulheres. “Hoje, temos de os gerir. Há o núcleo
duro e tentamos fazer rodar os restantes. Às vezes aparece gente a mais, mas
não temos coragem de os mandar embora. O centro fica quase a 25 km”, diz Paolo.
O núcleo duro, para alegria de
Paolo e Luca, já recebe algum dinheiro. “Aconteceu agora mesmo, a 1 de Março”.
Um deles assinou um contrato em part-time com a associação e dois começaram
estágios remunerados disponíveis para requerentes de asilo – um está prestes a
perder a autorização de permanência por já ter visto o seu pedido de asilo
recusado três vezes e o estágio pode ajudar.
Foi fácil adivinhar quem teve a
sorte de ser o primeiro contratado, bastou ver sua desenvoltura e sensibilidade
a lidar com as pessoas. “Olá a todos. Sou o Omar e venho da Gâmbia. Somos
requerentes de asilo e voluntários neste projecto. Por favor, levem uma caixa
por pessoa.”
Tomate, alecrim e alho
Anna, empregada de limpeza de 51
anos, desempregada há cinco meses, diz que vem “às vezes”. Outra Anna, esta de
olhos verdes e lenço verde na cabeça a protegê-la do frio, tem 65 anos e quatro
filhos a viver longe. “Não tenho trabalho há muito tempo. Venho duas ou três
vezes por mês, mais não. Quando se acaba volto”.
Meli (a quem Omar chama Maria)
tem 88 anos e vive com um filho doente que “já fez 60”. “Não recebo ajudas, só
a pensão de viuvez do meu marido”, diz, enquanto enche o saco de rodas que
empurra com as mãos mais finas que se pode imaginar, dedos compridos, toda ela
magra e alta, gorro azul muito largo a sublinhar a magreza. “Este tomate não é
muito bom. Mas já não há tomate bom. Junto alecrim e alho e fica um molho
saboroso”, conta.
São mais mulheres do que homens e
há mais gente a partir dos 50 anos, mas também aparecem estudantes e pais de
família.
“Tem de ser”, diz Pino (diminutivo
de Giuseppe). Envergonhado, não evita que os olhos se encham de lágrimas antes
de começar a falar. “Às vezes vimos. Eu ou o meu filho”. Divorciado, vive com o
filho de 30 anos que nunca trabalhou; tem uma filha de 37 a viver com a mãe.
Ele ficou desempregado há quatro meses: "Era encarregado num armazém”. A
um mês de completar 62 anos, teme nunca mais conseguir trabalho.
Pino ouve dizer que os
voluntários temiam que ninguém aparecesse por causa do mau tempo. “Quem tem
fome não se importa com a neve”, diz.
Organizar recursos
Nenhuma destas pessoas se
lembrava que há legislativas este domingo. Meli já não vota há anos, a Anna
mais nova pensa que não pode votar por não ter recebido os boletins em casa,
como antes; Pino está demasiado triste com a vida. Na associação, os únicos
preocupados são Paolo e Luca. Afinal, se a direita chegar ao poder e avançar
com as propostas deportações de pessoas em situação irregular podem perder
alguns voluntários.
Aconteça o que acontecer, o
projecto já é um sucesso e deu origem a duas experiências, em Roma e Milão. O
Porta Pallazo é bastante único, em dimensão (por aqui diz-se que é o maior
mercado ao ar livre da Europa) e regularidade, só encerrando ao domingo. Isso
ajuda a manter voluntários e a espalhar a palavra.
“Estou muito contente. Estamos a
experimentar formas de colaboração, a perceber como eles nos podem ser úteis e
nós a eles”, diz Paolo sobre os voluntários. Evitar desperdício – num país onde
cada família desperdiça 85 kg de comida por ano (outros números falam em 145
kg) – é outra vitória. “Pensa-se sempre que temos de lutar pelos recursos. Mas
não é verdade, basta organizarmo-nos para que os recursos cheguem a quem
precisa”.
“Gosto tanto de fazer isto”, diz
B., um dos rapazes que pode ficar sem autorização em breve. “No primeiro dia vi
um senhor velhinho a procurar no lixo. Agora, é diferente. Eu também sou pobre.
Quando sobra, levo comida”, conta o jovem de 26 anos que veio do Mali.
Mustafa, outro maliano de 33
anos, conta orgulhoso que participa desde o início. “Estava lá no primeiro dia!
Gosto disto. Ocupa-me e sabe bem ajudar as pessoas”, diz. “Podem ter vergonha
quando começam a vir, às vezes enervam-se com a espera”, explica Omar, 24 anos
e um contrato de trabalho. “Mas depois, quando levam a comida para casa vê-se
que vão com um sorriso. Isso é o melhor”.
Sofia Lorena em Turim | Público
Foto: Temperaturas muito baixas e
queda de neve marcaram o dia de sábado em Turim LESSANDRO DI MARCO/EPA
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