Ao jantar serve-se uma violência
obscena. Crianças agonizantes, «socorristas» de capacetes brancos. Atrás da
câmara, o anónimo «correspondente» fala de armas químicas. O noticiário
prossegue para as condenações inflamadas: Washington, Londres, Paris. Para a
indústria da morte, o cenário está montado.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Serão certamente muitas as
pessoas que até há um mês jamais teriam ouvido falar da região de Ghuta, na
Síria, e hoje já sabem tudo o que ali se passa, desde que seja provocado pela
essência maléfica do «tirano Bachar Assad». Estar informado é fácil, basta consumir
o prato de resistência que nos é servido a cada jantar, dia-após-dia, com somas
de pormenores macabros que não cuidam das recomendáveis doses q.b. e nos
atormentam tanto a ingestão como a digestão para que a tragédia não passe de
largo.
O mesmo aconteceu a propósito de
Alepo1,
por exemplo; já não tanto no caso de Mossul, e de maneira nenhuma com o
genocídio e os crimes contra a humanidade que continuam a ser praticados em
Gaza. É naturalíssimo que assim seja: os critérios de selecção e a definição da
escala de importância dos acontecimentos são inquestionáveis atributos dos
agentes da informação global deste admirável mundo novo. E coisa alguma existe
mais fácil de explicar do que uma guerra.
Ghuta: o jornalismo pode e deve
ter memória
Algumas memórias pessoais talvez
tenham arquivado a palavra «Ghuta» a propósito de acontecimentos igualmente
sangrentos vividos em Agosto de 2013, altura em que nos garantiram, a toda a
hora e sem qualquer reserva, que o mesmo «tirano Bachar Assad» tinha usado
armas químicas contra a população dessa região matando 1700 pessoas, um terço
das quais crianças.
Talvez sejam menos aqueles que se
lembram de a jurista suíça Carla Del Ponte2,
à cabeça de uma comissão da ONU para investigação do massacre, ter então
concluído, «estupefacta», que o massacre com gás sarin foi cometido pela
«oposição» síria, mais propriamente a Al-Qaida; circunstância que obrigou o
então presidente Obama – conhecido por não se acanhar perante oportunidades
para guerrear – a cancelar o bombardeamento «de retaliação» que já tinha
preparado contra Damasco3.
O enigma das armas químicas
O uso e abuso de armas químicas
pelas tropas governamentais continua, aliás, a ser um tema âncora do cenário
informativo montado para a Síria4;
nulo relevo tem merecido, porém, a declaração pública feita há dias pelo
secretário norte-americano da Defesa, o general James Mattis5,
segundo a qual Washington «não tem provas» da utilização desse tipo de armas
pelas forças regulares sírias. A prestigiada Newsweek teve o cuidado
de pedir a Mattis que confirmasse o depoimento, o que este fez e assim foi
publicado6.
Uma informação tão bombástica, digna, pelo menos, de ser oferecida como
sobremesa das nossas refeições, morreu assim, quase em segredo, nas páginas da
prestigiada revista norte-americana.
A ocupação terrorista
A região de Ghuta é parte da
grande Damasco, isto é, integra os vastos subúrbios da capital síria. O sector
oriental de Ghuta está ocupado militarmente pelos terroristas da Al-Qaida desde
2012 e os cerca de 400 mil habitantes da altura estão reduzidos a 250 mil7.
Apesar das restrições à circulação impostas pelos mercenários jihadistas em
Ghuta Oriental, muitos milhares de pessoas conseguiram refugiar-se em bairros
de Damasco, aterrorizados com a imposição da Charia – normativo legislativo que
corresponde a uma leitura fundamentalista do islamismo político – e pelos
exercícios de «devoção» impostos arbitrariamente, mercê dos quais, por exemplo,
cidadãos comuns são degolados em público por se recusarem a escrever ou
proclamar que «Assad é um cão».
Terroristas «radicais» e
«moderados»: percebe a diferença?
São várias as designações usadas
pelos grupos terroristas que ocupam Ghuta Oriental, alguns dos quais se
extinguiram ou mudaram de nome8,
mas todos eles têm em comum a dependência da estrutura tentacular da Al-Qaida,
do financiamento pela Arábia Saudita ou pelo Qatar, e dos interesses
da família Alluche, que se alongam até Londres, e patrocina directamente o
Jayah al-Islam – «Exército do Islão».
O mimetismo das duas principais
redes de mercenários – Al-Qaida e Daesh – graças ao recurso a uma volátil
miríade de heterónimos, traduz a verdadeira fronteira entre
«moderados», abertamente apoiados pela NATO e as grandes potências da União
Europeia, e os «radicais», supostamente por elas combatidos. Os «moderados» têm
assento nas recorrentes negociações entre o governo e a «oposição», sob
mediação internacional; é através deles, ausentes da lista de «organizações
terroristas» elaborada pela ONU, que os principais grupos ditos «radicais»,
nela incluídos, se tornam assim parte dos processos de discussão sobre «o
futuro da Síria».
Por serem «moderados», os grupos
que ainda controlam Ghuta Oriental, sob o comando operacional da Al-Qaida,
estão enquadrados, no terreno, por agentes de elite do SAS (Special Air
Service) britânico e da DGSE (agência de espionagem francesa), o que faz deles
esquadrões da agressão franco-britânica contra a Síria como Estado soberano.
O «Exército do Islão» é um
exemplo acabado de «moderação» e «vocação democratizadora». O seu patrono entre
o Verão de 2012 e 2015, Zahran Zaluche, prometia semanalmente tomar Damasco na
semana seguinte e executar, sem julgamento, «todos os infiéis», isto é, os
não-sunitas que não cabem na definição do seu conselheiro religioso, o pregador
whaabita Abd al-Azis ibn Baz ao serviço do islamismo político saudita. Foi o
patriarca da família Zaluche, falecido em 20159,
quem institucionalizou a transferência dos «infiéis» das prisões para os
telhados dos prédios urbanos, para servirem de escudos humanos sempre que o
exército sírio respondia aos constantes bombardeamentos de obuses contra
Damasco.
Sucedeu-lhe o primo Mohamed
Zaluche, que além de manter o clima de terror em toda a região ocupada se
destaca por perseguir especialmente os homossexuais, juntando-os aos
prisioneiros para funcionarem como «escudos humanos» ou lançando-os
sumariamente dos telhados dos prédios. Foi a maneira que o herdeiro Zaluche
encontrou de condenar a tolerância que há longo tempo existe na Síria em
relação às orientações sexuais, consideradas do foro privado de cada um, uma
realidade que a comunicação global desconhece ou finge desconhecer, caindo até
no ridículo de atribuir ao regime as perseguições homofóbicas10.
Pois Mohamed Zaluche foi um dos
representantes da «oposição» presente nas negociações internacionais de
Genebra. Para que tal fosse possível, o encarregado de negócios de França nesta
cidade suíça tomou em mãos o encargo de mandar cobrir e disfarçar os casos de
nudez em obras de arte existentes no hotel destinado ao sensível hóspede
chegado de Ghuta Oriental. Cuidado que, aliás, nada tem de novo pois já a
Inquisição católica, no século XVI, mandou tapar sectorialmente os primorosos
frescos de Miguel Ângelo nos tectos da Capela Sistina.
A intervenção estrangeira é uma
verdadeira guerra secreta contra a Síria
Este pequeno exemplo de
prestimosos serviços diplomáticos prestados pela França a um expoente do
terrorismo islâmico «moderado» segue a linha vigente ainda em Ghuta Oriental,
onde o «Exército do Islão» e outras designações encaixadas na estrutura da
Frente al-Nusra, isto é, a al-Qaida, recebem múltiplos apoios governamentais
francês e britânico através dos respectivos Ministérios dos Negócios
Estrangeiros e da Defesa.
Além do enquadramento operacional
pelo SAS, pelo próprio MI6 (serviços britânicos de espionagem) e pela DGSE
francesa, os grupos mercenários ditos «islâmicos» e ditos «moderados» recebem
um vasto conjunto de outros apoios, designadamente no âmbito de design de
fardamentos, logos identificativos, organização de desfiles propagandísticos
dos esquadrões de mercenários e elaboração de materiais de comunicação como
fotos, vídeos, websites, brochuras e relatórios militares.
Para tal, o ministério britânico
dos Negócios Estrangeiros contratou empresas de «gestão de crise» como a
Regester Larkin e a Innovative Communications & Strategies, para
trabalharem sob a supervisão do Ministério da Defesa. Ambas as sociedades têm
instalações em Londres e em Washington. Estas cumplicidades governamentais
franco-britânicas com o terrorismo actuando na Síria não foram reveladas por
qualquer lunático viciado em teoria da conspiração, mas pelo circunspecto e bem
comportado diário Guardian.
No terreno, as multifacetadas
orientações de apoio transmitidas pelos governos de Londres e Paris são
passadas à prática, ombro-a-ombro com os grupos jihadistas, por «organizações
não-governamentais» transformadas pela propaganda em símbolos do altruísmo e do
humanitarismo. É o caso dos Médicos sem Fronteiras, que serve de disfarce a
actividades da DGSE; dos Capacetes Brancos (White Helmets), que já chegaram ao
estrelato dos oscares de Hollywood11,
da Adam Smith International (ASI), da Integrity Global, entre outras.
O que está a acontecer em Ghuta
Oriental é um episódio de guerra; e o objectivo de qualquer guerra é derrotar o
inimigo – sendo esta a génese das matanças. Não foi o governo de Damasco quem
criou o conflito que destroça o país; hoje já não existem dúvidas – embora os
factos continuem escondidos pela comunicação social dominante – de que a guerra
de agressão externa contra a Síria estava planeada desde meados da primeira
década deste século, quando ganhou forma a enorme mistificação que foram as
«primaveras árabes», sucedâneos das «revoluções coloridas» fabricadas em
Washington com o envolvimento da NATO e da União Europeia12.
O desmantelamento da Síria
deveria seguir-se ao do Iraque e da Líbia, à entrega à Irmandade Muçulmana de
países como a Tunísia e o Egipto (esta falhada), no âmbito de uma recomposição
de fronteiras e regimes no Médio Oriente que já custou mais de quatro milhões
de vidas humanas desde 20011314.
Da tragédia encenada à tragédia
real
Ao jantar de cada dia tomamos
conhecimento da tragédia de Ghuta Oriental, agora cercada pelas tropas sírias
após um lento processo15 de
reconquista de posições ocupadas por tropas e mercenários estrangeiros16.
No lado oculto deste cenário está
o drama vivido pela população de Damasco sob os bombardeamentos constantes da
Al-Qaida e dos seus aliados transnacionais, efectuados durante os últimos seis
anos a partir das suas bases de Ghuta. Na capital síria, cerca de um terço dos
cinco milhões de habitantes, a que agora se juntam vagas de refugiados em
desespero, estão remetidos às suas residências, aterrorizados com os obuses
jihadistas; grande parte do comércio permanece encerrado; a administração e as
empresas funcionam de maneira fortemente condicionada.
As imagens que nos servem confrontam-nos
com a tragédia que atinge populações civis como se fosse o resultado de acções
arbitrárias, unilaterais e gratuitas cometidas por uma das partes em conflito e
não de uma guerra onde estão em causa «a soberania, a independência, a unidade
e a integridade territorial» de um país, a Síria, ainda há poucos dias
reafirmadas pelos membros do Conselho de Segurança da ONU ao aprovarem a
resolução 2401. Sinal da hipocrisia dos tempos: países que deram luz verde a
essa resolução, como os Estados Unidos, a França, o Reino Unido, estão
simultaneamente envolvidos numa guerra de agressão cujo objectivo é minar a
soberania, a independência, a unidade e a integridade territorial da Síria.
Pelo que não devemos
surpreender-nos com o facto de lágrimas cinicamente vertidas por causa das
vítimas civis da guerra em Ghuta Oriental não terem caído dos mesmos olhos
quando a ofensiva «contra o Daesh», conduzida pela chamada «coligação
internacional» integrando Estados Unidos, França e Reino Unido, provocou a
morte de nove a 11 mil civis na cidade iraquiana de Mossul.
A guerra é a matança
institucionalizada. Uma das suas armas mais letais é a ocultação ostensiva e
deliberada de algumas das facetas explicativas do horror, assim se abrindo o
caminho para a escabrosa distinção entre matanças boas e matanças más,
garantindo a perenidade da lucrativa indústria da morte.
Notas:
1. Em plena crise, a 30/8/2013, o Guardian,
habitualmente alinhado nas críticas a Assad, publicava um artigo onde se
reconheciam dúvidas sobre os «ataques químicos» e se dava conta de a
intervenção americana e britânica na Síria ter sido propulsionada pelos
interesses de ambas as potências no negócio da energia (gás e petróleo). Ver
artigo de Nafeez Ahmed «O plano de intervenção na Síria foi motivado por interesses
petrolíferos, não por preocupação com as armas químicas».
2.Carla
del Ponte presidiu ao Tribunal Internacional para a Ex-Jugoslávia entre 1999 e
2007. Em Setembro de 2012 faz parte da Comissão Independente Internacional de
Inquérito para os crimes de guerra na Síria, abertamente preparada para julgar
Bachar Assad após uma vitória dos «rebeldes». Após ter reconhecido, em Maio de
2013, o uso pela «oposição» de gás de nervos (sarin), viu a comissão arrastar
os seus trabalhos e acabou por se demitir em Agosto de 2017, declarando ao Libération (06/08/2017) que «a oposição
é composta por não mais do que extremistas e terroristas» – ao contrário das
suas expectativas iniciais, que eram de encontrar «a oposição no lado do bem e
o governo no papel do mal».
3.Ver
«Del
Ponte (UN) diz haver evidências de os rebeldes “terem usado sarin”», BBC (06/05/2013).
4.Um
balanço consistente da questão foi feito por Tim Anderson para a TeleSur,
em «Maquinações químicas: Ghuta Oriental e as crianças sírias
desaparecidas» (11/04/2015).
5.Em
2017 o general James Mattis ainda afirmava «não
haver dúvidas» sobre a responsabilidade do governo sírio nos «ataques químicos»
(CNBC (11/04/2017)]. A 2 de Fevereiro passado a Reuters titulava
dizendo-o «preocupado com o eventual uso pela Síria [leia-se, pelo governo
sírio] de gás sarin, retirando ênfase ao resto da declaração de Mattis: «(mas) não tenho provas. O
que digo é que outros (…) disseram que foi usado gás sarin, portanto estamos à
procura de provas». Foi esta declaração que a Newsweek quis ver
esclarecida..
6.Ver
artigos de Ian Wilkie na Newsweek, «Agora Mattis admite que não havia provas de Assad ter usado gás
sarin contra o seu povo» (8/2/2018) e «Onde estão as provas de que Assad usou gás sarin contra o seu
povo?» (17/02/2018).
7.Ver
Rania Khalek, «A guerra na Síria: o que os principais meios de informação não
lhe dizem sobre Ghuta Oriental», em RT News (00/00/2018).
8.A Deutsche
Welle, habitualmente crítica de Assad, reconhece, em 20/02/2018, a existência
de grupos jihadistas (a que chama «rebeldes») em Ghuta Oriental: «Que grupos rebeldes lutam em Ghuta Oriental, Síria».
9.Ver
«O que significa realmente a morte de um alto dirigente
“jihadista moderado” sírio?», Sputnik (01/01/2016).
10.Ver
«O
Emirato Islâmico e a homossexualidade», por Thierry Meyssan, em Voltairenet (20/06/2016).
11.Além de
Vanessa Beeley, MPN News (06/09/2017), ver também Max Blumenthal, Alternet (02/10/2016)
12.Ver,
a seguir, declarações feitas em 2013 por Roland Dumas, ex-ministro
dos Negócios Estrangeiros da França, acerca das propostas que
recebeu, em Inglaterra e em 2009 (dois anos antes da chamada «rebelião
síria» começar), para colaborar na intervenção que os
britânicos preparavam na Síria.
13.Em
Outubro de 2007 o general Wesley Clark discursou no Commonwealth Club, em San
Francisco, recordando as palavras que ouvira a um oficial do Pentágono, poucas
semanas após o ataque às torres gémeas (11/09/2001), acerca de um «golpe
político» dos neoconservadores (neocons). «Acabo de receber este memorando do
gabinete do Secretário da Defesa» – disse-lhe a fonte, e continuou: «diz que
vamos atacar e destruir os governos de sete países em cinco anos – começaremos
com o Iraque, a seguir avançamos para a Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e
Irão». O caso é reportado pelo jornalista Glenn Greenwald em «Wes
Clark e o sonho neocon», na Salon, (26/11/2011).
14.Robert
F. Kennedy Jr., filho do malogrado senador assassinado em 1968 e opositor da
política imperial americana, vai mais longe e aponta o ano de 1949 para o
começo da intervenção secreta da CIA na Síria: «Porque não nos querem os árabes na Síria?», em Politico (23/2/2016)
15.O
exército sírio faz preceder o avanço sobre as zonas ocupadas pelos jihadistas
do lançamento de panfletos e mapas dirigidos aos civis que permanecem no
enclave, indicando como podem escapar da zona de combates e chegar a locais
protegidos. Frente e verso de
um folheto em árabe, e a sua tradução
para inglês (25/02/2018).
16.Stephen
Lendman traça um paralelo sobre a situação em Ghuta Oriental e o que passou em
Alepo. Em ambos os casos as potências ocidentais defenderam e defendem os jihadistas que
ocupam o território; já as populações, vendo aproximar-se a hora da libertação,
dão sinais de revolta contra os ocupantes.
Na foto: Muitas das crianças de
Ghuta Oriental não recordam os dias antes do conflito. Créditos/ ITV News
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