Em decadência, EUA já não podem
abater a China. Tentam fustigá-la atacando seus aliados: Rússia, Coreia do
Norte, Irã, BRICS. A devastação espalha-se — da guerra na Síria ao golpe no
Brasil. Como contê-la?
Boaventura de Sousa Santos |
Outras Palavras | Imagem: George Grosz, Eclipse do Sol (1926)
O bombardeio de alvos sírios onde
supostamente se produzem ou armazenam armas químicas supostamente usadas pelo
governo de Bashar al-Assad contra os rebeldes deixou os cidadãos do mundo
confusos, num misto de perplexidade e de ceticismo. Apesar do bombardeio
(imagem apropriada no caso) midiático dos meios de comunicação ocidentais,
tentando convencer a opinião pública das mais recentes atrocidades do regime de
Bashar Al-Assad; apesar da quase unanimidade dos comentaristas políticos de que
se tratou de uma intervenção humanitária, de uma punição justa e de mais uma
prova da vitalidade da “aliança ocidental”; apesar de tudo isto, os cidadãos do
mundo ocidental (dos outros nem se fala), sempre que consultados, mostraram as
suas dúvidas a respeito da narrativa midiática e manifestaram-se
majoritariamente contra os ataques. Por que?
As consequências
Porque os cidadãos minimamente
informados têm uma memória mais apurada que os comentaristas e porque, sem
serem peritos sobre as causas destes atos bélicos, são peritos no conhecimento
das suas consequências, algo que escapa sempre às contas dos ditos
comentaristas. Lembram-se que em 2003 a invasão do Iraque foi justificada pela
existência de armas de destruição em massa, que se provou mais tarde não
existirem. Lembram-se que as fotos que na altura foram mostradas eram
fotomontagens para dar credibilidade à mentira. Lembram-se que, tal como agora,
o ataque foi feito na véspera de chegar ao país uma comissão independente de
peritos para averiguar a existência ou não de tais armas. Lembram-se que essa
mentira deixou no terreno um milhão de mortos, um país destruído e rendeu
lucrativos contratos de reconstrução entregues a empresas norte-americanas
(Halliburton, por exemplo) e de exploração do petróleo às empresas petrolíferas
ocidentais. Lembram-se que em 2011 a mesma aliança destruiu a Líbia, tornou-a
um antro de terroristas e de negociantes de tráfico de refugiados e emigrantes
e rendeu o mesmo tipo de lucrativos contratos. Lembram-se que a guerra da Síria
já causou 500 mil mortos, 5 milhões de refugiados e 6 milhões de pessoas
deslocadas no interior do país. E sobretudo, talvez pela misteriosa astúcia da
razão de que falava Hegel, lembram-se do que lhes não é dito pela mídia.
Lembram-se que naquela região estão em curso dois genocídios perpetrados por
terrorismo de Estado de que quase não se fala porque os Estados agressores são
“nossos” aliados: o genocídio dos iemenitas pela Arábia Saudita e o dos
palestinos por Israel.
Estas são as consequências mais
visíveis. Mas há outras vítimas de que o cidadão comum tem uma ideia mais vaga,
uma suspeita que por vezes não é mais que um mal-estar. Saliento três. A
primeira vítima é o direito internacional que foi mais uma vez violado, uma vez
que tais intervenções bélicas só são legítimas em caso de legítima defesa ou
sob mandato do Conselho de Segurança da ONU, condições que não se verificaram.
Os tratados bilaterais e multilaterais estão a ser deitados no lixo um atrás do
outro, ao mesmo tempo que as guerras comerciais se acirram cada vez mais.
Estamos entrando numa nova Guerra Fria com menos regras e mais mortes
inocentes? Estamos a caminho de uma terceira guerra mundial? Onde estará a
ONU para a evitar pela via diplomática? Pode esperar-se outra coisa de países
como a Rússia, a China ou o Irã senão que se afastem ainda mais dos países
ocidentais e do falso multilateralismo destes e que organizem as suas próprias
alternativas de cooperação?
A segunda vítima são os direitos
humanos. A hipocrisia ocidental atingiu o paroxismo: a destruição militar de
países e a morte de populações inocentes tornou-se o único meio de promover os
direitos humanos. Aparentemente, deixou de haver outros meios de promover os
direitos humanos senão violando-os. A democracia de tipo ocidental não sabe
florescer senão nas ruínas. A terceira vítima é a “guerra contra o terrorismo”.
Ninguém de boa vontade pode concordar com a morte de vítimas inocentes em nome
de qualquer objetivo político ou ideológico, e muito menos os países que desde
há vinte anos têm dado total prioridade à guerra contra o terrorismo, os EUA e
seus aliados. Sendo assim, como se pode compreender que estejam sendo
financiados e armados pelas potências ocidentais grupos de rebeldes da Síria
que são reconhecidamente organizações terroristas e que, tal como Bashar
al-Assad, usaram no passado armas químicas contra populações inocentes?
Refiro-me particularmente à frente al-Nusra, conhecida como a Al Qaeda da
Síria, um grupo extremista salafista que quer implantar um Estado islâmico.
Aliás, o mais fiel aliado dos EUA, a Arábia Saudita, é quem tem sido acusado
mais frequentemente por instituições norte-americanas de financiar grupos
extremistas e terroristas. Quais são os objetivos ocultos de uma guerra contra
o terror que financia e arma terroristas?
As causas
Os cidadãos comuns têm mais
dificuldades em identificar as causas porque estas se furtam ao ruído das
notícias. É convencional distinguir entre causas próximas e estruturais. Entre
as causas próximas, a disputa sobre o gasoduto do gás natural tem sido a mais
mencionada. As grandes reservas de gás natural da região do Qatar e Irã têm
dois trajetos alternativos para chegar à rica e voraz consumidora Europa: o
gasoduto do Qatar através da Arábia Saudita, Jordânia, Síria e Turquia; e o
gasoduto do Irã, através do Irã, Iraque e Síria. Por razões geopolíticas, os
EUA favorecem o primeiro trajeto e a Rússia, o segundo. Bashar al-Assad também
preferiu o segundo por favorecer apenas governos xiitas. A partir de então
passou a ser um alvo a abater pelos governos ocidentais. O Major Rob Taylor,
professor do US Army´s Command and General Staff College, escreveu no Armed
Forces Journal de 21 de Março de 2014: “Visto através de uma lente
geopolítica e econômica, o conflito na Síria não é uma guerra civil; é antes o
resultado do posicionamento de vários atores internacionais no tabuleiro do
xadrez geopolítico, preparando-se para a abertura do gasoduto em 2016”.
As causas estruturais são talvez
mais convincentes. Como tenho defendido, estamos num momento de transição entre
globalizações do capitalismo. A primeira globalização ocorreu entre 1860 e 1914
e foi dominada pela Inglaterra. A segunda ocorreu entre 1944 e 1971 e foi
dominada pelos EUA. A terceira iniciou-se em 1989 está terminando agora. Foi
dominada pelos EUA, mas com crescente participação multilateral da Europa e da
China. Nos intervalos das globalizações, a rivalidade entre países aspirantes
ao domínio aumenta e pode redundar em guerras entre eles ou entre os aliados de
cada um. A rivalidade neste momento é entre o EUA, um império em declínio, e a
China, um império ascendente. Segundo o estudo “Tendências globais, 2030” do
insuspeito National Intelligence Council dos EUA, em 2030 “a Ásia será o motor
da economia mundial como foi até 1500” e a China pode vir a tornar-se a
primeira economia do mundo.
A rivalidade intensifica-se e não
pode ser de enfrentamento direto porque a China é já hoje muito influente na
economia interna dos EUA e um credor importante da sua dívida pública. A guerra
comercial é fundamental e atinge as áreas de alta tecnologia porque quem
dominar estas (a automação ou robótica) dominará a próxima globalização. Os EUA
só investem em tratados que possam isolar a China.
Como a China é já demasiado
forte, tem de ser enfrentada através dos seus aliados. O mais importante é a
Rússia, e os acordos recentes entre os dois países preveem transações
comerciais, sobretudo de petróleo, não denominadas em dólares, uma ameaça fatal
para a moeda de reserva internacional. A Rússia em caso algum poderia
vangloriar-se de uma vitória na Síria (uma vitória contra os extremistas
terroristas, diga-se de passagem), uma vitória que esteve a ponto de obter
devido ao suposto desnorte da política de Obama ao não incluir a Síria na lista
das prioridades. Por isso, os EUA precisavam encontrar um pretexto para
regressar à Síria e continuar a guerra por mais alguns anos, como acontece no
Iraque e no Afeganistão. A Coreia do Norte é outro aliado e tem de ser hostilizado
de modo a embaraçar a China. Finalmente, a China, como todos os impérios
ascendentes, investe em (falsos) multilateralismos e por isso responde à guerra
comercial com abertura comercial.
Mas além disso tem investido
concretamente em acordos multilaterais limitados que visam criar alternativas
ao domínio econômico e financeiro norte-americano. O mais importante desses
acordos foi o Brics que incluía, além da China e Rússia, a Índia, a África do
Sul e o Brasil. Os Brics chegaram a criar um Banco Mundial alternativo. Era
preciso neutralizá-los. A Índia desinteressou-se do acordo desde que o
presidente Narenda Modi chegou ao poder. O Brasil era o parceiro
particularmente estratégico porque se articulava, ainda que relutantemente, com
uma alternativa mais radical que emergira na América Latina por iniciativa de
alguns governos progressistas, com destaque para a Venezuela de Hugo Chávez.
Refiro-me à Alba, Unasur, e Celac, um conjunto de acordos político-comerciais
que visavam libertar a América Latina e o Caribe da secular tutela dos EUA.
O país mais vulnerável dos Brics,
talvez porque o mais democrático de todos eles, era o Brasil. A sua
neutralização iniciou-se com o golpe institucional contra a presidente Dilma
Rousseff e continuou com a prisão ilegal de Lula da Silva e o desmonte de todas
as políticas nacionalistas empreendidas pelos governos do PT. Curiosamente, na
África do Sul, Jacob Zuma, sem dúvida um líder corrupto e entusiasta dos Brics,
foi substituído por Cyril Ramaphosa, um dos homens mais ricos da África (menos
corrupto que Zuma?) e adepto incondicional do neoliberalismo global. A Cúpula
das Américas que teve lugar em Lima, nos passados dias 13 e 14 de Abril, foi
uma peça geopolítica muito importante neste contexto. A participação da
Venezuela foi vetada e, segundo o El Pais (edição brasileira) de 15
de Abril, a reunião selou o fim da América bolivariana. O fortalecimento da
influência dos EUA na região está bem patente no modo como foi criticada pela
delegação norte-americana a crescente influência da China no continente.
Por tudo isto, a guerra na Síria
é parte de um jogo geopolítico bem mais amplo e de futuro muito incerto.
* Boaventura de Sousa Santos é
doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor
catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos
Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador
Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da
Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com
os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela
participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada
Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.
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