segunda-feira, 25 de junho de 2018

PORTUGAL | Estragos no elevador


Manuel Carvalho da Silva | Jornal de Notícias | opinião

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) divulgou um estudo sobre questões relativas à mobilidade social, que mereceu múltiplos comentários na comunicação social. O seu conteúdo concreto e o teor de opiniões expressas desafiaram-me a expor, neste limitado espaço, pequenas considerações sobre a matéria.

As barreiras entre classes sociais não são facilmente amovíveis. Grandes conquistas sociais e políticas ocorridas no último século e os resultados de fortes impulsos de transformação social em tempos concretos - como o que ocorreu em Portugal na sequência do 25 de Abril - propiciaram extraordinários avanços de mobilidade ascendente. Há, contudo, um acrescento a fazer: a reprodução social é bem mais forte do que a mobilidade. E há que não confundir melhorias nas condições objetivas de vida, de que milhões e milhões de seres humanos beneficiaram, com mobilidade social.

O elevador social que agora nos dizem estar muito avariado em Portugal tem um nome: democracia e Estado social. Foi a densidade dada à democracia e a implementação do Estado social que nos distanciaram de um passado próximo onde as barreiras de classe eram muito mais elevadas do que as atuais e estavam institucionalizadas, naturalizadas. "Haverá sempre ricos e pobres" - pregava-se em muitas igrejas e quase todos, mesmo os pobres, acenavam com a cabeça concordando, porque não dispunham de instrumentos necessários para conceber mudanças na sua condição.

A ideia de igualdade é para os portugueses nova. Ganhou forma com a democracia e com as instituições por ela criadas: i) a liberdade sindical, o direito à negociação coletiva, à greve e a uma legislação do trabalho moderna deram dignidade aos trabalhadores, valorizaram os seus salários, atualizaram a estrutura da economia; ii) o poder local democrático criou infraestruturas básicas imprescindíveis; iii) a escola pública de qualidade surgiu gratuita e para todos; iv) o Serviço Nacional de Saúde veio com acesso universal; v) os transportes e outros serviços garantiram direitos fundamentais aos portugueses em cidades, vilas e aldeias; vi) e também, em dimensão insuficiente, algumas políticas de habitação foram positivas.

Tudo isto são peças do elevador social. Quando uma se avaria, o elevador engasga-se. O que caracteriza o funcionamento do elevador é o facto de todas as suas peças existirem para aproximar, para incluir e não para dividir ou segregar.

O objetivo do pleno emprego, a valorização de profissões e carreiras profissionais, os direitos no trabalho, o acesso universal a proteção no desemprego ou na doença e o direito de todos a pensões de reforma ou a prestações sociais aproximaram, porque impediram que os rendimentos do trabalho e do capital evoluíssem em rota de divergência e porque visaram sempre a harmonização no progresso. Nas últimas décadas assistimos à imposição de argumentos e práticas que em nome da crise, da globalização, da competitividade, ou de qualquer comportamento pontual desviante colocam quem usufrui de algo mais do que mínimos como privilegiado e promovem a harmonização no retrocesso.

O SNS empurrou o elevador ao ter como objetivo e prática servir todos os portugueses sem distinção. Mas agora está a definhar porque interesses privados o parasitam e querem acantoná-lo à condição de serviço apenas para pobres.

A escola pública puxou o elevador universalizando-se e qualificando-se e porque nela se encontraram crianças e jovens de (quase) todas as classes sociais. Entretanto, a escola não ajudará à mobilidade se não for capacitada para o ensino pré-escolar, se continuarmos a ter apenas um terço dos jovens a ingressar na Universidade quando o futuro exige bases amplas de conhecimento, ou se desprestigiarmos os professores.

As políticas de habitação integraram quando impediram a expulsão das pessoas dos seus bairros a não ser para lhes dar dignidade e quando evitaram a construção de bairros segregados. Hoje, os custos da habitação atrofiam a vida de imensos portugueses, em particular dos jovens.

A liberalização da economia sem limites e o capitalismo financeiro produzem ricos mas não riqueza partilhada, tornam o piso mais pegajoso em baixo e em cima.

* Investigador e professor universitário

Sem comentários:

Mais lidas da semana