sábado, 3 de novembro de 2018

Portugal | A falta que faz “um cheirinho de alecrim”


Voltamos pois a ficar descansados quanto aos destinos da nação que, se evitou o negro abismo para onde o governo PSD-CDS a estava a arrastar, ainda continua longe dos amanhãs que cantam.

Jorge Seabra | AbrilAbril | opinião

Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
«Tanto mar», Chico Buarque, 19751

Depois do susto das nacionalizações do PREC, brandindo o «papão» vermelho e a conversa fiada da «Europa dos cidadãos», a «elite nacional», que vivera à sombra do regime salazarista e do domínio das colónias, recuperou o fôlego após o 25 de Novembro, mostrando-se pronta ao patriótico desígnio de vender-se a interesses maiores, pondo em causa os principais instrumentos do desenvolvimento do país.

E enquanto ensaiava algumas fracassadas aventuras de internacionalização (de que a PT é bom exemplo), que apenas confirmaram a promiscuidade dos «donos disto tudo» com os governos do «arco do poder» (PS,PSD e CDS-PP), um coro de compenetrados analistas foi apregoando as vantagens da perda de soberania a que a modernidade da globalização obrigava, embrulhada no ilusionismo da «regulação» e do controlo das «golden share», acabando por vender tudo a pataco.

Entrevistado recentemente pelo Público (4 de Março de 2018), David Miller, autor do livro A Century of Spin: How Public Relations Became the Cutting Egde of Corporate Power (2008) e professor de Sociologia na Universidade de Bath, no Reino Unido, refere:

«A criação desta indústria (relações públicas, propaganda), foi uma resposta da classe dos negócios ao crescimento de uma classe trabalhadora organizada e às reivindicações associadas ao sufrágio, universal.»[...]

«Com o objectivo de transferir recursos, então sob alguma forma de controlo democrático, para o sector privado, argumentou-se que a propriedade pública era ineficiente. Este argumento foi criado por uma série de think tanks apologistas do mercado livre e financiados pelo poder económico».

Nada de verdadeiramente novo que não se soubesse já. Mas é sempre consolador ouvir insuspeitos académicos confirmarem os mecanismos que levaram à propagação da falácia da superioridade da gestão privada que, ainda hoje – após o ruir da banca e de grandes corporações privadas atoladas em especulação e gestão danosa – se ouve afirmar como verdade incontestável, nomeadamente quando se fala do Ensino, da Saúde ou da Segurança Social.

A negociata da ANA

Não deixa, contudo, de ser irónico que jornais e jornalistas que sempre teceram loas às privatizações e sustentaram os governos que as fizeram, assumam de vez em quando o papel de virgens ofendidas, denunciando a posteriori e quando lhes convém, negócios e negociatas:

«Vítor Gaspar é demasiado inteligente para não saber o que que estava a fazer: em 2012, concessionou dez aeroportos durante cinquenta anos à Vinci, recebendo um balúrdio à cabeça em troca de um monopólio privado com altíssimos lucros e taxas de rentabilidade.» – escreve Pedro Santos Guerreiro, actual director do Expresso, na edição de 5 de Outubro de 2018.

O jornalista, escusado será dizer, está longe de ser um radical de esquerda. E o Expresso e o seu dono, Francisco Balsemão, dificilmente podem situar-se como tendo alinhado nas «críticas que foram levantadas naquela altura», que o director do semanário também refere. Menos ainda de terem apoiado os partidos considerados irrealistas e demasiado à esquerda (PCP e BE) que se opuseram à escandalosa concessão.

E o director do Expresso acrescenta: «A operação da ANA Aeroportos foi vendida com um contrato que permite subir as taxas em aeroportos que têm hoje uma procura extraordinária. A mesma Vinci que pagou três mil milhões naquele ano teve, num só dos 50 anos da concessão, um lucro operacional de 500 milhões de euros. José Luís Arnaut, presidente da ANA, deve ter o retrato de “empregado da década” nas paredes da Vinci.»

Como parece ser hábito, não é também de estranhar a promiscuidade dos agentes do negócio feito em 2012 pelo governo de Passos Coelho, num tempo em que a subida da procura dos aeroportos já não era propriamente uma surpresa. Ponce de Leão, do gabinete de advogados que preparou a privatização, foi nomeado presidente da ANA (pública), passando depois a presidente da ANA (privada), já entregue à Vinci, e é agora presidente da NAV Portugal, que vai regular as condições para o novo aeroporto a negociar com a Vinci, dona da ANA, sua antiga empregadora.

Como resultado de toda essa dança, o contrato da privatização foi redigido de tal forma que blindou a ANA contra qualquer «incómodo» que pudesse ser levantado pelo Estado português no futuro.

Desde essa data, a ANA vai já a caminho do décimo aumento das tarifas aeroportuárias, o que levou a uma queixa das representantes das companhias de aviação (IATA e A4E) junto da Direcção Geral da Concorrência em Bruxelas, a que a Vinci e a ANA responderam argumentando que não foram elas que estabeleceram as condições da privatização que lhes permite tal feito!...

Quase apetece manifestar a nossa admiração pelo cinismo da resposta, que nos faria rir se não fosse antes caso para chorar, ainda mais se nos lembrarmos do «apagão» que as restrições tarifárias (inicialmente previstas no contrato), tiveram a meio do ajuste directo que o estado proporcionou à Vinci.

Como no negócio que inaugurou a «moda» das parcerias público-privadas, promovido nos anos oitenta por Cavaco e Silva com a Lusoponte (com o ministro Ferreira do Amaral também passado a presidente da empresa com quem tinha negociado), em que qualquer nova ponte em Lisboa tem de ser acordada com a Lusoponte dando origem a apetitosas «compensações», também a construção de um novo aeroporto vai obrigar o estado a ter de pagar à Vinci para viabilizar essa sua «soberana» decisão.

«Teremos de negociar com a concessionária… mas não é fácil, tendo em conta o modelo de privatização» – disse o até há pouco ministro do Planeamento e das Infraestruturas, Pedro Marques, acrescentando: «temos uma concessionária que tem quase o monopólio, logo as negociações serão difíceis».

Assim, a privatização da ANA – como a de outras empresas públicas levadas a cabo por governos PS, PSD e CDS-PP, vendidas a preços de saldo a empresas que depois premiaram os negociadores do Estado com altos cargos e mordomias –, para além do que representou de perda de património colectivo e fonte de rendimento, limita, durante meio século, a intervenção do Estado português no que diz respeito à acessibilidade dos seus aeroportos e ao seu desenvolvimento.

Como complementa o director do “Expresso”, «a ANA, essa, vai ser uma vaca leiteira francesa até 2063. Mas nada temei: quando aqueles que agora estão na escola primária forem ministros, recuperaremos os negócios».

O inimputável SIRESP

Também o concurso do conhecido SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Segurança), desencadeado em 2005 pelo governo de Santana Lopes já depois de demitido (com a justificação de ter carácter de urgência…), atravessou vários governos PS, PSD e CDS-PP com denúncias e protestos, passando de 538 milhões de euros para 485 milhões, cortando exigências à empresa constituída para o negócio pelo notável grupo, BPN, BES e PT, cujos dirigentes estão agora todos a contas com a justiça…

Aparentemente, nem metade disso valia, segundo alguns peritos, para além de desempenhar um papel estratégico que devia impedir a sua privatização.

Ora o SIRESP é agora, também, uma «”vaca leiteira” francesa» (da Altice), já com um curriculum invejável:

Depois de ter falhado na Cimeira da NATO (2010), na visita do Papa (2010), nos incêndios florestais de 2011, 2012, 2013 e 2016, e nas tempestades de 2013 e de 2016, conseguiu finalmente alcançar as primeiras páginas por ter continuado a falhar na tragédia dos fogos de 2017.

No ano passado, o habitualmente sorridente primeiro-ministro, António Costa, rosnou e mostrou os dentes à Altice e à PT, ameaçando com multas (o ministro do PSD, Miguel Macedo, já o tinha feito depois da tempestade de 2013), acrescentando a firme intenção de assumir o controlo público do SIRESP.

Mas, depois desse «segurem-me que se não eu bato-lhes!...», nada aconteceu.

«SIRESP escapa ao pagamento de multas por falhas nos incêndios», refere o Público de 13 de Outubro deste ano.

Razões? Segundo o próprio Ministério da Administração Interna, «não foram recolhidas evidências do incumprimento dos níveis de serviço contratualmente estabelecidos». Foi tudo cumprido.

Podemos então ficar descansados: a empresa a quem foi atribuído um contrato para assegurar comunicações de emergência, voltou tragicamente a falhar, cumprindo plenamente os termos contratuais estabelecidos!

Quanto ao controlo público do SIRESP (e depois do Conselho de Ministros ter atribuído, em Abril, mais 15,65 milhões de euros à empresa para reforço das comunicações, medida depois chumbada pelo Tribunal de Contas), a Altice acabou por comprar mais uma fatia de acções ficando a ter a maioria, deixando o Estado com 33% e o enorme poder de nomear dois dos sete administradores!

Os duramente «castigados» CTT

Deixemos agora os aeroportos e as comunicações de emergência e façamos uma breve passagem pelos correios.

Privatizados em 2013 e 2014 pelo PSD/CDS-PP e transformados em banco, os CTT deixaram de ter a vocação prioritária de correios. As cartas chegam demasiado tarde, as encomendas também, as distribuições diminuem, os postos fecham, os trabalhadores são despedidos, os protestos multiplicam-se, o país refila, e só o presidente da administração vai dizendo, com um ar ponderado e sério, que está tudo cada vez melhor, como mostram as estatísticas.

Como diria Mark Twain, «os factos são teimosos mas as estatísticas são mais flexíveis»…

Recusada a proposta do PCP e do BE de renacionalização e perante a teimosia dos factos, a entidade reguladora, ANACOM, decidiu pôr uma cara zangada e considerou que «os CTT incumpriram em 2017 dois indicadores da qualidade de serviço».

Os indicadores em causa são demoras de encaminhamento do correio azul no continente (cerca de dois milhões de cartas de correio azul demoraram mais de um dia útil a serem entregues) e no correio transfronteiriço intracomunitário (4,5 milhões de cartas foram entregues fora do prazo).

Por isso, a ANACOM, revoltada com essa desregulação, resolveu castigar exemplarmente os CTT que ousaram cobrar dinheiro aos cidadãos por compromissos que depois não cumpriram, sabe-se lá com que prejuízos.

Assim sendo, e «tendo em conta que a actualização dos preços implementada pelos CTT para este ano tinha sido de 4,5%,», e após calcular rigorosamente uma «média ponderada», a ANACOM decidiu que o aumento passasse a ser «apenas» de 4, 415% !...

Ponderando ainda melhor a média do aumento já devidamente ponderado (e, diga-se de passagem, muito acima da inflação), a ANACOM decidiu ainda que o duro abatimento de 0,085 pontos percentuais no aumento, teria uma aplicação no mínimo de 3 meses (!) porque, como dizia a minha avó, «o que é de mais parece mal!».

Voltamos pois a ficar descansados quanto aos destinos da nação que, se evitou o negro abismo para onde o governo PSD-CDS-PP a estava a arrastar, ainda continua longe dos amanhãs que cantam.

Entretanto, do Brasil, nosso país irmão, tão sacrificado e enganado, volta a chegar-nos a lúcida voz de Chico Buarque com «a coisa aqui está preta!».2.

Por cá, Chico, a coisa não está tão preta assim. Pelo menos isso, conseguimos evitar. Mas ainda falta o tal «cheirinho de alecrim»…

Notas:
1.Versos finais da letra original da canção, gravada em Portugal por ter sido censurada no Brasil. Depois do 25 de Novembro de 1975, com a Revolução Portuguesa à defesa, o cantor viria a escrever uma nova versão, em 1978, concluindo a letra com os versos «Manda novamente/Algum cheirinho de alecrim».
2.Do verso «mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta», da canção «Meu caro amigo», de Chico Buarque (1976).

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