Martinho Júnior, Luanda
1- Se me perguntarem hoje pelo
estado do mundo em pleno século XXI da globalização e da revolução das novas
tecnologias, tenho desde logo uma proposta a fazer: comecemos então a avaliação
pelo Haiti e pelos componentes do CARICOM.
Justifico-o pelas mais diversas
razões, todas elas de natureza singularmente caótica:
Por que as assimetrias globais
redundam de acumulações de terríveis injustiças que se foram acumulando desde o
passado histórico e antropológico, particularmente desde o século XV e XVI;
Por que até as “potências
médias” foram tendo o papel de subservientes para com os “fortes” e
arrogantes para com os“fracos”, servindo às mil maravilhas como “correias
de transmissão” para os processos antropológicos reflectores do degrau em
degrau da “ascensão elitista do domínio” sobre todos os outros;
Por que em nome da civilização, a
barbárie continua, século após século, antropocêntrica, egoísta, exclusivista e
incapaz de equacionar planeta e humanidade como uma só responsabilidade
equânime e comum;
Por que a leitura dos processos
de domínio evidencia que hoje se coloca o sul na mesma posição de submissão
colonial dos séculos anteriores, esvaziada apenas dos encargos de mando e
administração dos territórios que só davam prejuízo, servindo-se sem
contemplações, mas recorrendo à profusão de meios e de novas tecnologias, dos
mais diversos expedientes de enriquecimento possíveis por via da assimilação e
da formatação para a prossecução do seu poder hegemónico e retrógrado, alienando
a esmagadora maioria da humanidade da situação de submissão a que continua a
ser condenada.
Haverá apego à lógica com sentido
de vida mais transparente e evidente que nos pequenos estados insulares das
Caraíbas, em especial no Haiti?
Não é sobre eles que recaem parte
dos ónus das imensas dívidas acumuladas pelos poderosos para com o resto da
humanidade?
2- O espelho histórico e
antropológico que é visível nos ambientes humanos sujeitos à insularidade do
Caribe, é prova insofismável que em relação ao sul, o norte “civilizado” jamais
encontrou capacidades correspondentes às obrigações de respeito para com a
humanidade e para com o planeta, antes gerou linhas divisórias de “apartheid” e
persistente alienação e formatação, chegando ao extremo de, sem vergonha, ali
onde não havia separação por via do mar, se assumirem inequivocamente como
construtores inveterados de barreiras, de obstáculos e de muros, numa dimensão
jamais antes experimentada, nem nos tempos da muralha da China.
A barreira de Trump, que está a
ser construída do leste na costa do Atlântico, ao oeste na costa do Pacífico,
ao longo de toda a fronteira dos Estados Unidos com o México prolongando a
barreira física e geográfica do mar do Caribe, isola a sul o espaço físico dos
processos dominantes que se autoproclamaram de hegemónicos e permitem que
físico-geograficamente todo o sul votado à ultraperiferia própria dum
qualquer “pátio traseiro”, em especial as pequenas nações insulares
daquela imensa região, seja alvo preferencial de todo o tipo de intervenções,
ingerências, assimilações, alienações e formatações.
É nessa tão contraditoriamente
tumultuosa bacia do Caribe, que para além da separação que as águas permitem, a
linha divisória entre o norte e o sul se tornou mais que evidente e onde as
pequenas nações insulares, que sobretudo mais não são que depósitos de
descendentes de escravos trazidos à força desde o continente africano, estão à
mercê enquanto ultraperiferia secularmente submetida, dos processos dominantes
impostos sobre quem não tem escolha nem saída para as mais básicas e legítimas
aspirações de liberdade, para além da constante luta pela sobrevivência em
condições tão sacrificadas, penosas, adversas e indignas.
As pequenas nações insulares
membros do CARICOM, mais que as pequenas repúblicas que compõem a cintura
adelgaçada da América Central (as “repúblicas bananas”), são
acantonamentos e antros de pobreza, por que quem domina impede qualquer
veleidade de encontrar plataformas e meios para se quebrarem as barreiras
físicas e humanas que as separa da dignidade civilizacional que em pleno século
XXI deveria prevalecer por todo o globo e o Haiti, a parte ocidental da única
ilha das Caraíbas dividida em dois estados, é disso evidência maior!...
É o sul que de há séculos está
sempre em dívida com o norte e jamais houve dívida alguma do norte para com o
sul, reduzido a fornecedor de matérias-primas cujos preços só o norte estipula
ou estimula em suas próprias moedas e a fornecedor de excedentes de mão-de-obra
barata angariada no plasma da sobrevivência de suas depauperadas e caóticas
sociedades.
…Por isso, se me perguntarem pelo
estado do mundo, respondo com toda a sensibilidade que processo de assimilação
algum conseguiu confundir, iludir, formatar ou alienar, com toda a humilde
responsabilidade e respeito que cabe a cada cidadão do mundo globalizado face a
uma humanidade de mais de 1.000 milhões de seres, (mas tão assimétrica ao ponto
de se disseminarem impunemente tsunamis de “apartheid”), propondo o
desafio da radiografa antropológica e histórica do Haiti, desde que Colombo
chegou à Hispañiola!
3- A sobrevivência no Haiti, de
há mais de três décadas a esta parte, não tem sido só sacudida pelos mais
terríveis terramotos (como o de 12 de Janeiro de 2010) que se possam imaginar,
mas também pelos mais telúricos processos sociopolíticos, ainda que os homens
ávidos de civilização estejam praticamente nus e impotentes face à avalanche
plasmada de barbárie que escorrega desde o norte hegemónico e insensível que
está tão próximo e tem sido tão oportuna quão poderosamente
intervencionista!...
Num texto sob o título “El
levantamiento popular en Haití es consecuencia de la agresión imperialista
contra Venezuela”,um corajoso e esclarecido autor, Kim Ives, dá conta dos
acontecimentos recentes no Haiti, das opções em aberto no ambiente
sociopolítico do país e de suas raízes distendidas desde finais do século XVIII
até aos nossos dias.
O Haiti está equidistante
físico-geograficamente de Miami e de Caracas e se suas elites pendem para as
vassalagens estimuladas por Washington, sintomaticamente a partir de Miami,
aqueles que na massa de 80% de pobres (abaixo da“linha da pobreza”) ganharam
consciência crítica da situação de contínua submissão do país, estão sem dúvida
muito mais próximos de Havana, de Santiago de Cuba e de Caracas, por que a
iniciativa da missão PETROCARIBE foi nesse sentido determinante para a
identidade das opções!
Kim Ives detalha:
“Entre 1990 y 2006 Washington
castigó al pueblo haitiano con dos golpes de Estado (1991, 2004) y dos
ocupaciones militares extranjeras -gestionadas por la ONU- por haber elegido a
Aristide dos veces (en 1990 y 2000).
En 2006 el pueblo haitiano había
logrado alcanzar una especie de empate, al elegir como presidente a René Préval
(un aliado de Aristide en sus inicios).
En su primer día en el cargo, el 14 de mayo de 2006, Préval firmó el acuerdo de Petrocaribe, lo que molestó mucho a Washington.
Después de dos años de lucha,
Préval finalmente logró acceder al petróleo y al crédito venezolano, pero
Washington hizo lo necesario para castigarlo también.
Después del terremoto del 12 de
enero de 2010, el Pentágono, el Departamento de Estado y Bill Clinton, junto
con algunos subalternos de la élite haitiana, prácticamente tomaron el control
del gobierno haitiano, y durante el proceso electoral que tuvo lugar entre
noviembre de 2010 y marzo de 2011, destituyeron al candidato presidencial de
Préval, Jude Célestin, y presentaron al suyo, Michel Martelly.
Entre 2011 y 2016, el grupo Martelly siguió desviando, despilfarrando y perdiendo la mayor parte del capital, conocida como el Fondo del Petróleo, que había mantenido a Haití a flote desde su creación en 2008.
Martelly también utilizó el dinero para ayudar a su protegido, Jovenel Moise, a hacerse con el poder el 7 de febrero de 2017.
Desafortunadamente para
Moise (que llegó al poder justo después de Trump), pronto se convertiría en uno
de los daños colaterales de la escalada de la guerra de Washington contra
Venezuela.
Trump intensificó inmediatamente las hostilidades contra
Haití ya estaba atrasado en sus
pagos a Venezuela, pero las sanciones de Estados Unidos hicieron imposible (o
les dieron una excusa de oro para no hacerlo) cumplir con sus facturas de
petróleo en Petrocaribe, y el acuerdo de Petrocaribe con Haití realmente
terminó en octubre de 2017.
La vida en Haití, que ya era extremadamente difícil, se volvió insostenible.
Ahora que se cerró el grifo del
crudo venezolano, el Fondo Monetario Internacional (FMI) -agente del trabajo
sucio de Washington- le dijo a Jovenel que tenía que subir el precio del gas,
lo que intentó hacer el 6 de julio de 2018.
El resultado fue una explosión
popular que duró 3 días y anunció la revuelta de hoy”…
4- Precisamente na mesma altura
que a administração de Donald Trump leva a cabo a intensificação da pressão
subversiva e desestabilizadora sobre a legitimidade bolivariana na Venezuela,
pondo em causa os caminhos de aprofundamento da democracia, explode no Haiti a
revolta popular contra o corrupto governo avassalado do presidente Jovenel
Moise, um dos que reconheceu Guaidó como presidente da Venezuela às ordens de
Trump!
Kim Ives relata-nos assim os
últimos episódios:
…“Más o menos al mismo tiempo, un
movimiento de masas comenzó a plantear la pregunta de qué había pasado con los
4.000 millones de dólares en ingresos petroleros venezolanos que Haití había
recibido en la década anterior.
Una multitud cada vez mayor de
manifestantes preguntó: Dónde está el dinero de PetroCaribe?
El Fondo PetroCaribe debía
financiar hospitales, escuelas, carreteras y otros proyectos sociales, pero la
población no ha visto casi nada.
Dos investigaciones del Senado en
2017 confirmaron que la mayoría de los fondos habían sido despilfarrados.
La gota que colmó el vaso fue la traición de Jovenel Moise contra los venezolanos cuando su solidaridad había sido ejemplar.
El 10 de enero de 2019, durante
una votación de la
Organización de los Estados Americanos (OEA), Haití votó a
favor de una moción apoyada por Washington para declarar a Nicolás Maduro
ilegítimo, a pesar de haber obtenido más de dos tercios de los votos en las
elecciones de mayo de 2018.
Los haitianos ya estaban furiosos por la corrupción generalizada, hambrientos a causa del aumento de la inflación y el desempleo, y frustrados por años de falsas promesas, violencia y humillación militar extranjera. Pero esta traición espectacularmente cínica de Jovenel y sus amigos, que intentaban obtener la ayuda de Washington para salvarlos de una situación que los ponía cada vez más en peligro, fue la gota que colmó el vaso.
Sorprendido y aturdido por la falta de perspectivas (y sus propias disputas internas), Washington está ahora horrorizado por el previsible colapso del pútrido edificio político y económico que ha construido en Haití en los últimos 28 años, desde el primer Golpe de Estado contra Aristide en 1991 hasta el último golpe electoral que llevó a Jovenel al poder en
5- O estado do mundo reverte de
facto para um abismo e no Haiti está-se presente a mais um telúrico processo
humano face ao monstro da globalização neoliberal e revertente das injustiças e
das desigualdades secularmente instaladas e estimuladas, que pode uma vez mais
conduzir a um banho de sangue no gueto que constitui a parte ocidental da
Hispañiola!
Para o Haiti tem havido um
castigo constante desde a independência de bandeira, quando a revolução no seu
apogeu conquistava o direito dos escravos à liberdade e à autodeterminação: a
sujeição a que o país tem sido submetido, ainda que a consciência crítica tenha
sido alimentada sempre pela terrível e contraditória situação de pobreza e
devassidão própria da opressão poderosa do norte que está tão próximo e deita
mão de todo o tipo de intervenções, ingerências e manipulações!
Se Gaza é um gueto provocado
pelos falcões de Israel no Médio Oriente Alargado, o Haiti é um dilecto gueto
para os falcões da hegemonia globalizante que se dispõem a continuar
imediatamente a sul, desde Washington e Miami, no seu“pátio traseiro”, a
Doutrina Monroe, a fim de injectar suas diletas políticas neoliberais!
A “democracia
representativa”, segundo os obstinados padrões de Washington, que em época de
potencialidades propiciadas pela revolução tecnológica procura em retrógrada
exclusividade favorecer apenas as oligarquias e elites afins aos processos de
domínio capitalista neoliberal em proveito de sua tentacular hegemonia, está a
entrar em irreversível colapso desde logo na ultraperiferia económica e
financeira imediatamente a sul, pelas razões humanas mais sensíveis, que tocam
antropológica e historicamente, nas raízes em que se assumiu o próprio Haiti ao
rebentar com as grilhetas da escravatura colonial!
A sul, perante uma globalização
hegemónica que se reserva a uma exclusividade de tal ordem que manipulando a
democracia oprime os povos, a neocolonização obriga até por razões que se
prendem afinal à própria sobrevivência, a um novo rebentar de grilhetas!...
É precisamente esse o significado
mais profundo da situação que está disjuntivamente também na ordem do dia na
Venezuela: ou prevalece uma dócil mas poderosa oligarquia avassalada que só
serve para o saque que a partir do norte é imposto, como um pérfido tentáculo
sociopolítico, ou a sensibilidade bolivariana em busca de diálogo, de consenso,
de legitimidade democrática participativa e protagonista, de socialismo, de
soberana identidade popular e dum desenvolvimento que traga mais felicidade e
coerência distributiva para com os povos, vai, ainda que pouco a pouco,
conseguir prevalecer!
Martinho Júnior - Luanda, 6 de
Março de 2019
Imagens referentes ao Haiti:
- Ruínas do Palácio Presidencial,
símbolo do poder nacional, após o último terramoto que atingiu a capital
Port-au-Prince;
- “Reconstrução” quadro
dum pintor haitiano que expõe na tela a continuada aspiração de liberdade dos
descendentes dos escravos na Hispañiola;
- Cartaz que simboliza o anátema
da corrupção levada a cabo por uma elite alienada, retrógrada, ingrata e
servil, incapaz de se identificar com as mais legítimas aspirações à felicidade
da massa de deserdados que maioritariamente compõem a população do Haiti;
- A bandeira da Venezuela
Bolivariana que é erguida nas últimas manifestações que têm eclodido no Haiti,
é erguida por aqueles que reconhecem a mão amiga estendida pelo Comandante Hugo
Chavez quando instituiu e colocou em prática a missão PETROCARIBE;
- A bandeira dos Estados Unidos
que é queimada nas últimas manifestações no Haiti por aqueles que sentem na
própria carne os efeitos da submissão a que estão condenados a partir dum norte
cuja hegemonia se faz sentir também pelo comportamento racista conforme aos
mais hediondos padrões de “apartheid” que só a barbárie pode conceber.
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