segunda-feira, 11 de março de 2019

Recuo dos direitos humanos em França | A República em marcha-atrás


Remy Herrera [*]

Artigo (escrito no fim de janeiro de 2019) que serviu de base a um relatório sobre as violações dos direitos humanos em França entregue pelo Centro Europa – Terceiro Mundo (CETIM) de Genebra no Conselho dos Direitos do Homem da Organização das Nações Unidas para a sua sessão de fevereiro-março de 2019 [documento que pode ser consultado no site da ONU] - Cota ONU: A/HRC/40/NGO/56

1. De há meses a esta parte, a França entrou numa zona de forte turbulência. A virulência dos conflitos sociais há muito que é uma característica importante e marcante da vida política deste país, um dado histórico duma nação que se construiu, também e sobretudo, depois de 1789, na base duma revolução de dimensão universal e cujos traços – juntamente com as conquistas sociais de 1936, 1945 ou 1968 – se mantêm ainda hoje impressas na memória coletiva e nas instituições, quaisquer que tenham sido as tentativas para as apagar. No entanto, em breve se completarão 40 anos em que a França – e com ela, as outras economias capitalistas do Norte, sem exceção – se encontra imobilizada no espartilho mortífero de políticas neoliberais depredadoras. Estas não podem ser interpretadas de outra maneira senão como uma extraordinária violência social dirigida contra o mundo do trabalho. Os seus efeitos de destruição – dos indivíduos, da sociedade, mas também do ambiente – propagam-se graças à cumplicidade do Estado com os poderosos do momento. Ainda por cima, são agravados pela sujeição ao conteúdo anti-social dos tratados da União Europeia, embora os cidadãos franceses tenham dito, no referendo de 2005, que não a queriam, e que lhes foi imposta numa negação da democracia. Foi mais uma violência suplementar, contra todo um povo. É nesta perspetiva particular, e no contexto geral duma crise sistémica do capitalismo globalizado, que se explicam as vagas de revoltas populares que se amplificaram no decurso das últimas décadas: as greves de 1995, os motins dos subúrbios de 2005-2007, as manifestações dos anos 2000 e 2010… Na hora presente, o sentimento de mal-estar e o descontentamento são generalizados. A partir do fim de outubro de 2018, a mobilização dos "coletes amarelos" representa uma das expressões disso, mas esbarra na pior recrudescência de violências policiais desde a guerra da Argélia. Perante as diversas contestações que reclamam sobretudo justiça social, as autoridades optaram por responder com mais repressão, ao ponto de fazer recuar, de modo extremamente preocupante, os direitos humanos.


O estado de urgência, ponto de partida da escalada repressora 

2. O momento da mudança para esta escalada repressora é facilmente identificável: é o estado de urgência, decretado no território metropolitano a 14 de novembro de 2015 (na sequência dos atentados terroristas que haviam atingido o país na véspera), e depois no dia 18 de novembro, nos departamentos ultramarinos. Não pretendemos aqui, obviamente, minimizar as ameaças das atividades terroristas da extrema-direita do Islão político – da Al-Qaeda ao Daesh. Mas convém sublinhar que a política de segurança, adotada a partir de 2015, foi simultaneamente a ocasião de obrigar o povo francês a aceitar restrições drásticas dos seus direitos civis e políticos, que ultrapassam a exigência de reação aos simples riscos terroristas. Depois de ter sido renovado cinco vezes seguidas, o estado de urgência foi levantado a 1 de novembro de 2017, mas o essencial das disposições excecionais que o mesmo previa passou a adquirir força de lei: detenções e interpelações preventivas, perímetros de proteção, fixação individual de residência, controlos nas fronteiras, etc., passaram a ser autorizados no quadro da "lei que reforça a segurança interna e a luta contra o terrorismo", de 30 de outubro de 2017. A partir daí, observa-se em França, o desvio inquietante deste imponente arsenal jurídico de exceção, que teve como consequência fazer recuar as liberdades públicas, em especial os direitos de exprimir as opiniões, de livre reunião, ou de manifestação pacífica, mas também os direitos sindicais, e até o direito à integridade física, todos eles postos seriamente em perigo.

3. Homens e mulheres, que participaram recentemente em manifestações em França, foram sem dúvida testemunhas daquilo que tem sido denunciado já há meses por organizações de defesa dos direitos humanos franceses ou internacionais: um número desproporcionado de intervenções das forças da ordem, excessivamente violentas – recorrendo mesmo, por vezes, a armas de guerra. Tornou-se assim sistemático o uso de granadas lacrimogéneas e canhões de água de alta pressão, contra manifestantes pacíficos; muito frequentes, os tiros à altura de homem de lançadores de balas de defesa (LBD e outras armas ditas "de letalidade limitada"), a utilização de granadas de atordoamento ou de dispersão, a prática de cerco para impedir o encontro com outros manifestantes, interpelações aleatórias e arbitrárias, intimidações verbais, provocações gratuitas, ou mesmo agressões físicas. Nas ruas da capital foram colocados veículos blindados, polícias a cavalo, brigadas cinófilas… Várias vezes, foram infligidos tratamentos degradantes a manifestantes, incluindo a menores. Aconteceu com frequência que pessoas fossem atingidas com bastões ou mantidas em detenção sem terem praticado nenhum ato repreensível. Foi confiscado material de socorro a "médicos de rua", pacíficos, que acompanhavam os desfiles e socorriam os feridos… Factos que chocaram os franceses. Era o que se pretendia, para acabar com a revolta deles. Tais violências policiais são totalmente inaceitáveis e violam as normas internacionais no que se refere aos direitos humanos em vigor.

Primeira etapa: a repressão dos movimentos sociais e dos sindicatos 

4. Desde a eleição para a presidência da República de Emmanuel Macron – ex-associado-gerente do banco de investimentos Rothschild, depois ministro da Economia do presidente François Hollande e autor das leis epónimas impondo a flexibilização do mercado de trabalho – o mundo sindical voltou a mobilizar-se. Multiplicaram-se as manifestações e greves, em especial nos transportes públicos (SNCF, Air France…), na energia (gás e eletricidade), no setor automóvel (Peugeot, Renault), nas telecomunicações (Orange), na grande distribuição (Carrefour), nos serviços de saúde (hospitais públicos, lares de pensionistas, segurança social), no ensino (liceus, universidades), na cultura (museus), na justiça (advogados, magistrados), na recolha do lixo e até na auditoria financeira e no Tribunal de Contas. Estes diversos movimentos sociais, muito seguidos, duraram durante toda a primavera de 2018. A atitude do poder foi intensificar a repressão, que afeta espetacularmente os estudantes (evacuações dos campus ), os militantes ecologistas que ocupam zonas a defender (ZAD) e, antes deles, os manifestantes que se opõem às leis de flexibilização do mercado de trabalho.

5. Evidentemente, esta espiral repressiva atingia já os sindicatos há vários anos, violando o direito ao trabalho. Multiplicaram-se os obstáculos que entravam as atividades sindicais: discriminações salariais contra os sindicalistas, despedimento abusivo de grevistas, pressões exercidas através de ameaças ou sanções disciplinares, restrições dos direitos sindicais ou do direito à greve, ou mesmo criminalização da ação sindical (como na Goodyear, na Continental ou na Air France).

Além disso, recentes reformas governamentais do código de trabalho penalizam ainda mais os movimentos sociais: encurtamento do prazo de arbitragem no tribunal do trabalho e instituição de um teto para as indemnizações no caso de despedimento abusivo, limitação do papel das instâncias representativas do pessoal e redução dos seus meios, mecanismo de rotura das convenções coletivas, contornando os planos de salvaguarda do emprego ou favorecendo a saída dos mais velhos, inversão da hierarquia das normas, colocando o acordo da empresa acima das convenções de trabalho e da lei, definição do perímetro nacional para o despedimento económico que permite a demissão de assalariados de filiais francesas (quando a casa-mãe faz benefícios à escala nacional).

Segunda etapa: a repressão dos "coletes amarelos" 

6. O presidente Macron escolheu "não mudar de posição". Desprezando o sofrimento e as expetativas das classes trabalhadoras, o seu governo exacerba as políticas neoliberais e, para isso, afunda-se cada vez mais na via da violência social e da repressão policial. O resultado é de pesadelo, indigno de um país que se pretende democrático e tolerante. Desde o início da mobilização dos coletes amarelos, já ocorreram 11 mortes acidentais. Ficaram feridas mais de 2000 pessoas. Destas, pelo menos uma centena foram feridas gravemente – médicos declararam estados de traumatismos classificados como "ferimentos de guerra" (mãos arrancadas, cegueira, desfiguração, fraturas múltiplas e mutilações diversas…), devidas nomeadamente a tiros de LBD ou a estilhaços de granadas, visando frequentemente manifestantes pacíficos. Várias pessoas ainda hoje se encontram em coma. E que dizer do choque psicológico sofrido por jovens adolescentes tratados como terroristas pela polícia, forçados a ajoelhar-se, de cabeça baixa, mãos atrás da nuca, empilhados em furgões, em celas?

7. Para onde vai este poder que marcha contra o seu povo e desencadeia contra ele uma tal violência? No dia 1 de dezembro, por exemplo, foram atiradas 7940 granadas lacrimogéneas, 800 granadas de dispersão e 339 granadas do tipo GLI-F4 (munições explosivas), 776 cartuchos de LBD, e ainda 140 mil litros de água lançada por canhões. Para só considerar o período de 17 de novembro de 2018 a 7 de janeiro de 2019, um cálculo provisório – e certamente não exaustivo – registaram-se 6475 detenções e 5339 pessoas presas preventivamente. Em todo o território nacional, os tribunais já pronunciaram mais de mil condenações. Embora a maior parte das sanções sejam trabalhos de interesse geral ou outras do mesmo tipo, muitas delas são penas de prisão. Contam-se 153 mandados de captura (implicando o encarceramento), 519 convocações por agentes da polícia judiciária e mais 372 em audiências de correção. Em Paris, 249 pessoas foram julgadas em julgamento imediato, 58 condenadas a penas de prisão efetiva, 63 a penas de prisão suspensa. No departamento francês de La Réunion, as penas médias de prisão para os coletes amarelos locais são de oito meses de prisão efetiva. A 10 de janeiro de 2019, cerca de 200 pessoas ligadas a estes acontecimentos continuavam presas em França.

A legitimidade das reivindicações populares 

8. As reivindicações dos coletes amarelos correspondem, em muitos aspetos, às do mundo de trabalho. Exigem a melhoria imediata e concreta das condições de vida, a revalorização do poder de compra das receitas (salários, pensões, abonos sociais…), o reforço dos serviços públicos, a participação direta do povo nas decisões relativas ao seu futuro coletivo. Ou seja, a instituição efetiva em especial dos direitos económicos, sociais e culturais, assim como o direito do povo de decidir do seu futuro. Reclamando sobretudo justiça social, respeito pelos direitos humanos e democracia económica e política, estas reivindicações são profundamente legítimas e encontram um grande eco favorável na população.

9. A mãe de toda a violência, que deve cessar urgentemente e contra a qual o povo se vê obrigado a defender-se – como lhe sugere a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, no preâmbulo da Constituição francesa – é a que gera a imposição de medidas neoliberais iníquas, implacáveis, anti-sociais e antidemocráticas; a que, no silêncio dos ajustamentos de preços dos mercados capitalistas, faz morrer de frio os sem-abrigo, leva ao suicídio os agricultores endividados, destrói indivíduos e as suas famílias, privando-os de empregos, cortando-lhes a eletricidade, expulsando-os das suas casas; a que obriga os reformados, por falta de meios, a deixarem de aquecer a sua habitação ou as crianças a saltar uma refeição; a que destrói toda a solidariedade, fecha as escolas, as maternidades ou os hospitais psiquiátricos, mergulha no desespero os pequenos comerciantes e artesão, subjugados sob os impostos, condena os assalariados ao trabalho sem conseguirem ganhar para as despesas de um mês. A verdadeira violência reside neste sistema extraordinariamente injusto e insustentável. Perante isto, montras de bancos ou de supermercados partidas por alguns indivíduos isolados ou desesperados, embora condenáveis, não podem servir de justificação para as violências das forças da ordem.

10. Perante o atrás exposto, o CETIM [Centro Europa – Terceiro Mundo] exorta o governo francês a cessar imediatamente a repressão sobre os manifestantes e a honrar os seus compromissos internacionais em matéria dos direitos humanos e do direito ao trabalho, nomeadamente: 

Anular as leis atentatórias da liberdade e as leis que entravam o direito ao trabalho, em conformidade com os dois Pactos internacionais relativos aos direitos do homem (civis, políticos, económicos, sociais e culturais), assim como as Convenções da OIT, ratificadas pela França; 
Renunciar a criminalizar os movimentos sociais em geral, e o movimento dos coletes amarelos em particular; 
Permitir um inquérito independente sobre os abusos praticados pelas forças da ordem durante as manifestações dos coletes amarelos e apresentar à justiça os seus autores

11. O CETIM requer igualmente ao Conselho dos Direitos do Homem que ative os seus mecanismos apropriados a fim de realizar um inquérito neste país sobre as violações de que são vítimas os manifestantes pacíficos. 

[*] Investigador do CNRS, Centre National de la Recherche Scientifique 

O original encontra-se em www.cetim.ch/wp-content/uploads/Decl-escrita_gilets-jaunes.pdf . 

Tradução de Margarida Ferreira

Este documento encontra-se em http://resistir.info/ 

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