Um
tribunal lisboeta condenou, por participação em motim, duas pessoas que fizeram
parte da manifestação de afrodescendentes de 21 de janeiro. Porque, diz a
decisão, estavam ali e houve desacatos. É capaz de ser um precedente perigoso.
Fernanda Câncio | Diário
de Notícias | opinião
Ficámos
a saber no dia 7 de março que todas as pessoas - cerca de duas
centenas, de acordo os testemunhos e a própria PSP - que estiveram na
manifestação de 21 de janeiro, convocada por afrodescendentes para protestar
contra a intervenção policial no Bairro da Jamaica, cometeram o crime de
participação em motim.
Para
tal, de acordo com a argumentação da juíza Sofia Alves, bastou terem lá estado.
Veja-se esta passagem da sentença: "Mais se provou que os arguidos e
os demais manifestantes que saíram do Marquês de Pombal contra a indicação da polícia
aceitaram a eventualidade da criação de perigo para bens jurídicos. A
prova de tal facto decorre do comportamento do grupo de manifestantes, como
descrito pelas testemunhas agentes da PSP, e adveio ainda da testemunha Tiago
Fernandes [também agente da PSP] que esclareceu que após o primeiro arremesso
de pedras contra a polícia, na Praça do Comércio, alguns indivíduos abandonaram
a manifestação mas grande parte seguiu. Ou seja, o grupo de manifestantes, nos
quais se incluem os arguidos, aceitou e conformou-se com a eventualidade da
criação de perigo para bens jurídicos ou patrimoniais, como já havia ocorrido
previamente, perigo esse que se concretizou com o arremesso de pedras. (...) Como
decorreu das declarações das testemunhas (...) agentes da PSP, a vontade e
atuação dos manifestantes dirigia-se contra a ação da polícia, que foi o que
motivou o arremesso de pedras."
Note-se
que este raciocínio dá como provado que todos os manifestantes - seriam cerca
de 50 aquando da saída da Praça do Comércio -- participaram num motim,
considerando-se adquirido (como não interessou ao tribunal nem é explicado na
decisão) que todos assistiram ao alegado arremesso de pedras, na Praça da
Comércio, contra a polícia.
E
o mesmo em relação aos que saíram do Marquês de Pombal (onde o cortejo seria já
de 200 pessoas, que se lhe foram juntando), por alegadamente o fazerem contra
as ordens da PSP. Entre essas pessoas estão portanto algumas das que foram
ouvidas em tribunal como testemunhas - caso do realizador João Salaviza, que se
juntou aos manifestantes na Avenida da Liberdade, a subiu com eles até ao
Marquês e a desceu também acompanhando-os, tendo afirmado quer aos media quer
ao tribunal que nunca viu ninguém a arremessar pedras, sendo surpreendido (como
outras pessoas entrevistadas pelo DN) pela carga policial e pelos disparos
que a acompanharam, assim como pelas detenções a que assistiu e que filmou.
Em
audiência, Salaviza, que ao DN descreveu a manifestação como tendo "muitas
mulheres, até uma com um carrinho de bebé" referiu "a atitude
racista da polícia" e insultos dirigidos por esta a manifestantes - por
exemplo quando um agente se dirigiu a duas raparigas como "suas filhas da
puta vão para o passeio". Também o professor universitário Miguel Batista,
que assistiu ao final da manifestação, contou a forma imprópria e insultuosa como foi
abordado pela PSP: "O que é que estás aqui a fazer? Pertences a esta
manifestação?" Terá respondido "não, não pertenço. Estava só a
observar", posto o que o agente lhe disse: "Então sai já daqui antes
que te parta os cornos." Ambos, Salaviza e Batista, são
"brancos" - uma informação que no contexto de uma manifestação
maioritariamente negra pode ter importância: será que se o professor fosse
negro o agente lhe perguntaria se "fazia parte", ou passava
diretamente ao "partir os cornos?"
A
mesma questão se levanta quanto a Salaviza, que de acordo com a sentença além
de ter participado num motim (pelo que cabe perguntar por que motivo não se
determinou extração de certidão no que lhe respeita), ao filmar os
acontecimentos esteve a evidenciar "um comportamento de instigação contra
a polícia." Isto se aplicarmos ao realizador a mesma lógica usada para
caracterizar o comportamento de um dos arguidos: "Adotou um
comportamento de instigação contra a polícia; estava próximo das pessoas a
deter e a filmar ostensivamente tendo-lhe sido dito diversas vezes para se
afastar, tendo este sempre dito que podia estar onde quisesse."
Aliás,
sendo referido por uma das testemunhas, o advogado Pedro
Rita, que ia a passar e assistiu a duas detenções, que esse arguido foi detido
apenas por estar a filmar - de acordo com o testemunho dos polícias, que fez fé
em juízo, a detenção ocorreu por os ter insultado, apelidando-os de
"filhos da puta", quando o instaram a parar de filmar - e
reconhecendo os agentes ao tribunal que ordenaram em dois casos o fim da
captação de imagens, é curioso constatar que essa atuação não suscitou ao
tribunal qualquer dúvida sobre a sua legalidade.
É
outro precedente espantoso desta decisão: considerar que alguém que filme uma
intervenção policial em
plena Avenida da Liberdade pode não só ser objeto de ordem
policial para parar de filmar como a persistência no ato é
"ostensiva" e "instigação contra a polícia". Só faltou
mesmo dizer que é crime de desobediência não parar de filmar quando a polícia
manda, ou não circular quando esta deseja.
A
decisão da juíza Sofia Alves vai ser objeto de recurso. No entretanto
aconselha-se-lhe - e a todo o efetivo da PSP - a leitura da tese de mestrado do
aspirante a oficial de polícia Fernando Rocha de Brito, "Legitimidade da captura de imagem pelo cidadão de
elementos policiais em serviço", de 2016.
Ou
podem só, para poupar tempo, ler a conclusão: "A ação de polícia na sua
globalidade -- resolução policial de um qualquer problema na via pública,
operação policial, policiamento desportivo (...) concretização de uma detenção,
fiscalização de um veículo -- poderá ser registada através de gravação de imagem,
sem que haja lesão ao bem jurídico imagem dos elementos policiais (...). Por
conseguinte, não existe legitimidade para concretizar qualquer intervenção
no âmbito das medidas de polícia, somente pelo facto de um cidadão proceder ao
registo de imagem da atividade policial." Que haja alguém a conhecer, e a
querer dar a saber, a lei e a Constituição.
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