domingo, 19 de maio de 2019

Portugal | Virtù – ou atirar dinheiro sobre a ética


A minha querida amiga Raquel Varela escreve num post no FB a propósito dos salários dos professores e direitos associados a serem ressarcidos do que não ganharam durante os anos de crise


“Surpreende-me que se fale sobre tudo nestes dias e nem uma palavra sobre o essencial: há algum lugar no mundo que tenha uma boa educação sem professores bem pagos? Não. Há algum lugar no mundo onde se possa viver de forma civilizada sem boa educação? Não. Se a carreira não for reconhecida a maioria dos professores vai estar a ensinar os nossos filhos sabendo que daqui a 10, 20 anos, ou 30 anos vai estar a receber menos de 1300 euros por mês e terá uma reforma inferior a 1000 euros. Ou seja, estamos a hipotecar não só o futuro dos professores mas de todas as gerações que entram na escola e que não vão ter à sua frente pessoas motivadas, empenhadas, desejosas de ensinar, mas o contrário.” - Raquel Varela

Ao contrário do que o texto de Raquel Varela pode fazer crer Portugal faz parte dos países da OCDE com maior percentagem de despesas em educação pública em percentagem do PIB.


Portugal integra o grupo de países com despesas em educação pública entre os 3% e os 3,5% de que fazem parte, entre os europeus: Áustria, Holanda, Suíça, Letónia e França. As despesas em educação de Portugal são percentualmente superiores às da Alemanha, Espanha, Grécia e Itália, todos abaixo dos 3%. São idênticas à de países com economias muito desenvolvidas como o Canadá e a Coreia.



Dados da Pordata sobre o número médio de professores/aluno no ensino básico, 1º e 2º ciclos em 2016:

Portugal – 12,8;
Alemanha – 12,1;
Espanha – 13;
França – 18,7;
Holanda -11,7;
Inglaterra -15,1;
Suécia – 12,4.

Em resumo, Portugal tem uma percentagem do PIB em despesa em educação pública ao nível de países europeus mais desenvolvidos e nalguns casos maior. Tem um rácio professor-aluno idêntica aos seus parceiros europeus, ou melhor. Os salários dos professores portugueses são dos mais altos quando comparados com o salário médio nacional. Apesar destas condições Portugal não tem uma “boa educação”. As causas dos resultados medíocres do sistema educativo, medidos em capacidade de inovação e de valor acrescentado dos produtos portugueses, não se devem pois a falta de despesa e de investimento, nem aos baixos salários dos professores, nem à sua quantidade.

A tese da Raquel Varela parte do princípio de que o dinheiro gera qualidade e riqueza. Basta ir a Mafra para concluir que não. O ouro do Brasil transformado naquele imenso calhau não tornou Portugal um Estado onde os cidadãos passaram a saber mais, a estarem motivados a fazer melhor, a criar mais riqueza, a preparar um futuro mais risonho. Pelo contrário, fortaleceu a ignorância e a crendice, levando os portugueses a acreditar que aquela edificação construída à custa de trabalho escravo aqui e no Brasil produziu o efeito miraculoso de emprenhar a rainha da altura, de dar um herdeiro ao rei da época e de enclausurar, bem comidos e bem bebidos, entre rezas e cânticos, como monges, umas centenas ou milhares de portugueses aptos para o trabalho, mas mais motivados à lazeirice conventual do espírito e do corpo.

A tese do dinheiro para resolver incapacidades e impotências é desmentida pela História e pela natureza. O que produz qualidade é o esforço, o talento para superar dificuldades, a organização, o reconhecimento da importância de uma dada actividade pela sociedade.

Dois dos mais caros sistemas de educação do mundo moderno, o americano e o inglês, têm produzido resultados de baixíssima qualidade. Vejam-se as suas elites políticas nos últimos 50 anos. Se o melhor que o sistema de educação dos caríssimos colégios e universidades americanas e inglesas gerou é o que tem passado pelo Capitólio de Washington, ou por Westminster, o que podemos dizer é que foi dinheiro deitado à rua, tal como o de Mafra.

No mundo desenvolvido actual, os profissionais mais bem pagos são os administradores das grandes empresas financeiras, bancos e seguradoras. Os grandes desastres, as grandes crises, incluindo a que levou o governo português a congelar salários e tempos de serviço aos seus funcionários, incluindo os professores, a quem Raquel Varela acredita que o dinheiro lhes melhorará o desempenho, foram causados por esses funcionários com carreiras sempre descongeladas e muito bem remuneradas.

Atirar dinheiro aos carreiristas não parece garantir qualidade. Os conselhos de administração do BANIF, do BPN, do BES eram muito bem pagos, até retroactivamente. O mesmo para os administradores do Lehaman Brothers, ou da seguradora AIG, cobertos de dinheiro da cabeça aos pés.

O desempenho profissional é, antes de tudo, uma questão ética. Fazer bem, cumprir horários, preparar-se, melhorar são questões éticas. Atirar dinheiro para cima de problemas éticos é alimentar a corrupção dos aproveitadores. É delapidar recursos. Se a sociedade reconhecer o desempenho dos seus professores, o desempenho dos seus funcionários em geral, estará disponível para os recompensar e não para se sentir extorquida. Deixará de sentir que está a pagar bofe por bife, como julgo ser o sentimento mais comum hoje perante esta ópera bufa do 942.

A questão da melhoria de um sistema de formação e desempenho humano é sempre, antes de técnica e financeira, uma questão ética.

Aumentar os salários dos músicos de uma orquestra pode permitir melhores férias aos músicos, mudança de carro, mas não melhora a orquestra, nem contribui para a educação musical da sociedade.

Os trabalhadores das várias artes e ofícios têm, obviamente, direito a uma remuneração que lhes permita uma vida digna. Mas não é disto que se trata nesta treta da “recuperação de direitos”, mas sim em receber o que, em determinadas circunstâncias, o “patrão” não esteve em condições de pagar num momento passado.

A reivindicação do 942 não é em si injusta – é sim ofensiva da ética que cimenta a vida em sociedade e, a prazo, conduz à derrota de quem aceita pagar para se libertar da ira dos reclamantes.

A reivindicação dos 942, como outras reivindicações por mais dinheiro das novas tropas sindicais pode ser apreciada pelo que sobre os mercenários escreveu Maquiavel:

“As forças mercenárias são perigosas. São ambiciosas, sem disciplina, infiéis, insolentes para com os amigos, mas acovardam-se diante dos inimigos, (…) e o príncipe apenas retarda a própria ruína na medida em que retarda enfrentá-las. Deste modo, o Estado é espoliado por elas na paz, e durante a guerra pelos inimigos. (Os mercenários) querem unicamente manter as suas vidas e receber os seus salários.”

Atirar mais dinheiro a soldados que se preocupam antes de tudo com o dinheiro não melhora nenhum exército.

Existe uma outra palavra que, antes do 942 dos professores ou da greve cirúrgica dos enfermeiros, antes do dinheiro, devia ser considerada pelos seus chefes sindicais e respectivos apoiantes, também de Maquiavel: Virtù. Que pode ser definida como a condição assumida ou imposta, necessária para que, dentro de um Estado (ou sociedade organizada), alguns dos seus elementos não sejam o lobo dos outros, Lupus est homo homini lupus. Para que na sociedade não impere a lei da selva.

Foto: Lusa

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