Thierry Meyssan*
Uma cimeira dos conselheiros de
segurança nacional norte-americano, israelita e russo foi anunciada em
Jerusalém. Trata-se de desmontar o imbróglio à volta do Eixo da Resistência, de
garantir a segurança de todos os Estados do Médio-Oriente e uma suserania
partilhada dos Estados Unidos e da Rússia sobre todos os actores, entre os
quais Israel.
Uma cimeira dos três Conselheiros
de Segurança Nacional norte-americano, israelita e russo terá lugar em
Jerusalém, em Junho 2019. Este acontecimento inédito já deu lugar a
«revelações» e a «desmentidos» sobre aquilo que deverá ser discutido. A quase
totalidade dos comentadores glosa a partir de ideias falsas que repetem em
coro. Precisamos de os rectificar antes de avaliar o que está em jogo nesta
cimeira.
O jogo das Grandes Potências na
região
Durante a Guerra Fria, a
estratégia norte-americana de contenção (containement) conseguiu afastar a
influência soviética no Médio-Oriente. Após o colapso da URSS, a Rússia deixou
esta região e só aí voltou aquando da guerra ocidental contra a Síria.
A Rússia está presente no Levante
(exceptuando durante o período 1991-2011) desde a época da Czarina Catarina II,
a qual, a pedido dos habitantes, enviou a sua frota para defender Beirute. A
sua política visa, antes de mais, proteger o berço do cristianismo (que é
Damasco e não Jerusalém), fundamento da cultura russa. Ao fazê-lo, a Rússia
estendeu a sua influência para o Mediterrâneo Oriental e conseguiu chegar às
águas quentes do Oceano Indico.
Em 2011, a Rússia foi o único
estado a distinguir as revoluções coloridas do Magrebe (as «Primaveras Árabes»)
das guerras contra a Líbia e a Síria. Os Ocidentais, que têm a sua própria
interpretação destes acontecimentos, ainda não se esforçaram para entender a a
leitura feita pela Rússia. Não se trata aqui de determinar quem tem razão e/ou
quem está errado —isso é um outro assunto [1]—,
mas admitir que existem duas narrativas totalmente diferentes dos factos. Deve
notar-se que os Ocidentais pensam que Moscovo não digeriu a maneira como eles
violaram a resolução que visava proteger as populações civis na Líbia.
Reconhecem assim que não foram os Russos, mas o imperialismo ocidental que
criou o problema que enfrentamos hoje em dia.
Com base na sua própria análise,
a Rússia começou por opor o seu veto às resoluções ocidentais sobre a Síria no
Conselho de Segurança. Simultaneamente, ela tem, a pedido sírio, realizado
negociações com Damasco com vista à colocação de tropas de manutenção da paz da
Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO) na Síria. Finalmente,
Washington e Moscovo (Moscou-br) reuniram-se em Genebra, na presença de nações
ocidentais e na ausência dos actores médio-orientais, para estabelecer uma
suserania partilhada sobre o Médio-Oriente. Foi em Junho de 2012. Esta
lua-de-mel durou apenas alguns dias. Ela foi quebrada pela França, agindo por
conta da Secretária de Estado Hillary Clinton.
Passados 7 anos, Moscovo
reivindica o que lhe é devido. Com efeito, foi a Rússia —e não a OTSC— quem se
envolveu militarmente na Síria e, ao lado do Exército sírio e do Hezbolla,
derrotou os jiadistas —e jamais Washington e os seus aliados, os quais, pelo
contrário, os armaram [2]—.
Ela reclama-o em Jerusalém porque um milhão de russófonos são cidadãos
israelitas (israelenses-br) e um de entre eles, Avigdor Lieberman, acaba de
fazer cair, por duas vezes seguidas, o governo de Netanyahu [3].
Esta evolução é difícil de
admitir por aqueles que permaneceram do lado da aliança Estados Unidos/Israel
que caracterizou a era Bush Jr. Ora, desde a derrota do Daesh (E.I.) os
governantes israelitas dirigiram-se muitíssimas mais vezes a Moscovo do que a
Washington.
O jogo das potências regionais
face a Israel
Há uma ideia feita segundo a qual
as forças do «Eixo da Resistência» (Palestina-Líbano-Síria-Iraque-Irão)
estariam dedicadas à aniquilação dos Israelitas, tal como os nazistas o foram à
dos judeus. É um copia-e-cola grotesco.
Na realidade, o Hezbolla é na
origem uma rede da Resistência xiita à ocupação israelita do Líbano. Ele foi
sucessivamente armado pela Síria e, após a retirada da força de paz síria do
Líbano em 2005, pelo Irão. Jamais teve como objectivo «lançar os judeus ao
mar», antes, pelo contrário, continua a afirmar a sua intenção de estabelecer a
igualdade na Lei para todos. A ocupação israelita do Líbano foi uma realidade
que foi muito para lá da vontade do governo israelita, o qual foi ultrapassado
pela iniciativa do General Ariel Sharon em tomar Beirute. Foi também o caso da
Colaboração de Milícias Cristãs e Drusas Libanesas, incluindo as de Samir
Geagea e de Walid Jumblatt.
Da mesma forma, a Síria reagiu ao
expansionismo israelita primeiro defendendo-se, depois indo em socorro das
populações palestinianas. Isso é perfeitamente legítimo, sabendo-se que a
Palestina e a Síria actuais formavam uma única entidade política antes da
Primeira Guerra Mundial [4].
Ninguém contesta, nem mesmo os Estados Unidos, que Israel não parou nos últimos
setenta anos de mordiscar territórios aos seus vizinhos e, aliás, continua a
fazê-lo.
Desde o início da Guerra Fria, os
Estados Unidos, em conformidade com a sua política de contenção dos Soviéticos,
tinham perfeita consciência deste expansionismo israelita que perturbava a
estabilidade da região. Armaram a Síria para que ela pudesse resistir-lhe —não
atacar— e armaram identicamente outras forças, entre as quais o Iraque [5].
Foi o Secretário de Estado norte-americano, John Foster Dulles, e apenas ele,
quem criou o «Eixo da Resistência». Assim, ele garantia que a Síria e o Iraque
não recorreriam à União Soviética para se defenderem e obter, assim, a sua
assistência militar.
A Administração de Dwight
Eisenhower sabia que Israel era o fruto da vontade de Woodrow Wilson e de David
Llyod George [6],
mas considerava-o como um cavalo louco que era necessário, ao mesmo tempo,
proteger e domar.
Washington junta-se, portanto, às
ideias britânicas : o tratado de assistência militar entre Damasco e Teerão,
depois, em 1958, o Pacto de Bagdade permitindo a criação do CENTO (Central
Treaty Organization—equivalente regional da OTAN). Entretanto, o contexto
modificou-se e os actores também mudaram, mas a sua motivação continua a mesma.
O caso do Irão é o principal
problema hoje em dia. Com efeito, a maioria dos seus dirigentes não aborda esta
questão de maneira política, mas, sim religiosamente. Uma profecia xiita
assegura que os judeus tornarão a refazer um Estado na Palestina, mas que ele
será rapidamente destruído. O Guia da Revolução Islâmica, o Aiatola Ali
Khamenei, garante este texto como canónico. Ele desfia periodicamente essa
contagem regressiva e afirma, assim, que Israel desaparecerá em 6 anos. A
crispação de posições, no Irão em torno desta profecia e em Israel em torno da
lei «Israel, Estado-nação do povo judeu» (2018), é a fonte da continuação deste
conflito que um pouco de inteligência permitiria desbloquear. Foi isto que
Donald Trump e Jared Kushner tentaram fazer, e foi aí que eles falharam: se o
desenvolvimento económico pode apagar a questão das reparações (aos Palestinos-
ndT), nenhum progresso será possível sem fazer evoluir as representações do
mundo que têm os judeus, os árabes e os persas.
O que é o «Eixo da Resistência»?
Os responsáveis religiosos
iranianos utilizam muitas vezes a expressão «Eixo da Resistência» para designar
a aliança face a Israel. No entanto nenhum tratado formaliza este Eixo. Os seus
dirigentes jamais realizaram uma cimeira (cúpula-br) para se concertarem.
Desde a invasão norte-americana
do Iraque, em 2003, as forças deste Eixo foram-se dividindo lentamente, de tal
modo que hoje os seus conflitos internos são mais importantes do que o seu
combate externo.
Em 2003, o chefe religioso
iraquiano xiita Mohammad Sadeq al-Sadr foi assassinado. Com razão ou sem ela,
os seus partidários culpam como responsável o Grande Aiatola Ali al-Sistani. Este
é um iraniano vivendo no Iraque, onde dirige os seminários xiitas.
Progressivamente a comunidade xiita iraquiana dividiu-se entre os pró-Iranianos
de al-Sistani e os pró-Árabes do filho do falecido, Moqtada al-Sadr. Este
cortou sucessivamente com Damasco e com Teerão, em 2017, e foi para Riade para
junto do Príncipe Mohamed ben Salman.
Em 2006, aproveitando-se da sua
vitória local nas eleições legislativas dos Territórios Palestinos, o Hamas
realizou um golpe de Estado contra a Fatah e proclamou-se autónomo na Faixa de
Gaza [7].
Em 2012, a
sua direcção política, que vivia no exílio em Damasco, mudou-se subitamente
para Doha, enquanto o Catar tratava de financiar os jiadistas contra a Síria. O
Hamas declarou-se, então, como «Ramo palestiniano dos Irmãos Muçulmanos», um
partido político interdito na Síria. Os seus homens e agentes da Mossad
israelita entraram na cidade síria de Yarmouk (campo de refugiados palestinos
na periferia da capital- ndT) para aí assassinar os seus rivais marxistas da
FPLP-Comando Geral. O exército sírio cercou a cidade e o Presidente palestino,
Mahmoud Abbas, deu-lhe o seu apoio.
É absurdo, pois, que os
Ocidentais queiram destruir o «Eixo da Resistência», que idealizaram e ajudaram
a criar, apenas porque perderam o controle dele. Basta-lhes esperar, ele irá
desfazer-se por si só.
Os Iranianos são amigos fieis, no
entanto têm culturalmente a tendência de embarcar os amigos nos seus problemas.
Jamais os Sírios expulsarão os Iranianos que os protegem do expansionismo
israelita e a quem devem ter-se aguentado no início da guerra (2011-14). Mas,
se os Iranianos fossem reais amigos dos Sírios, eles retirar-se-iam
militarmente desse país deixando o lugar para a Rússia, de modo a que os
Estados Unidos possam reconhecer a legitimidade do governo de Bashar al-Assad.
Em vez disso, usam a presença das suas tropas para provocar Israel disparando foguetes
para o seu território a partir da Síria.
Os três conselheiros de segurança
nacional
John Bolton (EUA), Meir
Ben-Shabbat (Israel) e Nikolaï Patrouchev (Rússia), os três Conselheiros de
Segurança Nacional, têm as mesmas funções, mas não o mesmo grau de experiência.
Bolton está convencido da
superioridade ontológica do seu país sobre todos os outros. Ele tem uma
experiência de relações internacionais que adquiriu, em primeiro lugar, durante
as negociações de desarmamento e sobretudo quando era Embaixador no Conselho de
Segurança (2005-06). Muito embora tome iniciativas extravagantes, é bem capaz
de recuar quando pensa que está errado. É, aliás, porque tem a capacidade de
encaixar pessoalmente os erros do seu campo que o Presidente Trump o tem
mantido neste posto.
Meir Ben-Shabat é um homem de fé,
persuadido, por seu lado, de pertencer a um povo eleito mas amaldiçoado. Não é
um diplomata, mas um perito da contra-espionagem. No entanto, quando ele
dirigia o Shin Bet, mostrou uma real sofisticação tanto para lutar contra o
Hamas, como para o manipular e eventualmente negociar com ele. O seu excelente
conhecimento das múltiplas forças do Médio-Oriente permite-lhe instantaneamente
apreender aquilo que tem possibilidade de durar no tempo e o que será apenas
efémero.
Por fim, Nikolai Patrushev é um
senhor do alto funcionalismo público russo. Dos três, ele é, certamente, o que
têm a visão mais apurada do tabuleiro de xadrez mundial. Quando sucedeu a
Vladimir Putin à cabeça do FSB, teve que enfrentar tentativas de aliciamento
dos seus directores pelos Estados Unidos e Israel. No fim, retomou essa máquina
em mãos com rédea curta. Depois, enfrentou a desestabilização da Ucrânia pelos
Estados Unidos e pela União Europeia, o que se saldou pela adesão da Crimeia à
Federação da Rússia. Ele não negociará um dossier em troca de outro, antes,
pelo contrário, velará para que todas as decisões sejam coerentes.
Estes três estrategas vão ter que
definir os contornos de uma distribuição de cartas, que os diplomatas, em
seguida, deverão negociar. O seu papel é de imaginar um acordo viável a longo
prazo, enquanto que o dos diplomatas será de compensar as perdas dos perdedores
para lhes tornar este acordo aceitável.
* Intelectual francês,
presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas
análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana
e russa. Última obra em francês: Sous
nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).
Na foto: Nikolaï Patruchev e John
Bolton encontraram-se em Jerusalém, na presença de Meir Ben-Shabbat.
Notas:
[1]
Eu exponho a minha visão das coisas em Sous
nos yeux, éditions Demi-Lune (2017).
[2]
“Milhares de milhões
de dólares de armas contra a Síria”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 18 de Julho de 2017.
[3]
“Que sabe Avigdor
Lieberman ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 5 de
Junho de 2019.
[4]
O então presidente sírio Adib Chichakli era membro do PSNS (Partido Social
Nacionalista Sírio) e militava, pois, a favor da reconstituição da
Grande Síria, com todas as suas minorias. Devido a isso aceitava que o
Protectorado Britânico da Palestina se convertesse num Estado binacional
(o que era o projecto da ONU), mas não podia aceitar que se dividisse em
dois
Estados mono-étnicos (conforme a iniciativa de Genebra e a Conferência de
Annapolis).
[5] Syria
and the United States. Eisenhower’s Cold War in the Middle
East, David W. Lesch, Westview Press (1992)
[6]
“Quem é o inimigo?”,
Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Agosto de 2014.
[7]
Lembremos que ao contrário da Fatah, o programa do Hamas não visa lutar contra
o imperialismo na Palestina, mas, antes em criar um califado no conjunto do
mundo muçulmano.
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