Avança no mundo a MMT, teoria
libertadora sobre finanças e poder. Ela sugere: Estados e sociedades podem
emitir moeda quase sem restrições — e promover o Comum e a redistribuição de
riquezas. Quais suas bases históricas e conceituais?
Ellen Brown | Outras Palavras | Tradução: Felipe
Calabrez | Imagem: William Gropper
Os cânones da chamada ciência económica parecem viver uma crise terminal. As divergências internas à
disciplina não são, é claro, novidade. O que tem ocorrido, no entanto, é que os
preceitos da ala dita “mainstream” — vale dizer, a abordagem mais aceita nos
departamentos norte-americanos e de língua inglesa, e que goza de maior
prestígio académico e no mundo financeiro – têm sofrido uma crítica
devastadora. Alguns chegam a vaticinar a morte da macroeconomia.
Uma das frentes críticas que mais
tem se destacado é a que ficou conhecida como MMT (Modern Monetary Theory, ou
Teoria Monetária Moderna). A MMT solapa as bases da teoria monetária ao
afirmar, resumidamente, que os Estados soberanos na cunhagem de sua própria
moeda (o Brasil, entre tantos outros) não enfrentam restrições financeiras.
Essa afirmação, longe de se restringir a controvérsias meramente teóricas, pode
produzir efeitos revolucionários nas políticas públicas dos Estados nacionais.
Ela subverte o raciocínio fiscalista hoje predominante em grande parte do mundo
ocidental cujos fracassos se acumulam há anos. No Brasil, aliás, eles aparecem
agora com clareza ainda maior…
“Outras Palavras” tem dado espaço
a esse debate, por compreender sua importância e seu potencial transformador.
Por isso publicamos a tradução de outro texto instigante — agora de Ellen
Brown, pensadora estadunidense que dirige o Public Banking Institute.
Brown resgata o processo pelo
qual o governo dos EUA construiu um sistema de endividamento público que drena
o dinheiro da sociedade e o transfere para um grupo seleto de negociadores e
compradores de títulos públicos. Seu ponto central é: como tem soberania monetária
o governo poderia simplesmente financiar-se utilizando o Banco Central (no caso
norte-americano, denominado Federal Reserve, ou FED). No limite, o Estado não
precisa do dinheiro do contribuinte para se financiar. A cobrança de impostos
entra aqui como reguladora do nível de atividade económica, e, portanto,
controladora do nível de preços.
No entanto, a emissão de moeda
pelo Estado, que poderia transformar as políticas públicas, está bloqueada há
décadas. Um forte lobby financeiro instituiu regras que impedem tal medida,
deixando o governo refém do crédito privado. Trata-se da Revolução do poder dos
banqueiros de Wall Street, nos diz a autora.
Esse debate se faz urgente no
Brasil. De acordo com a secretaria do Tesouro Nacional, doze instituições (nove
bancos e três corretoras) atuam no mercado primário e secundário de títulos
públicos. Um mercado que movimenta centenas de biliões ao ano e consome fatia
expressiva do orçamento público, apenas com o pagamento dos juros.
O Brasil, repetem governo e
grande imprensa com uma insistência fatigante, está à beira de um colapso
fiscal e precisa cortar gastos de toda ordem, incluindo aposentadorias,
investimentos em infraestrutura, saúde e educação, preservando tão somente suas
despesas financeiras. Ora, e se o governo utilizasse seu Banco Central para
financiar todas essas demandas urgentes? Descambaríamos para uma hiperinflação,
mesmo com toda essa capacidade ociosa na economia? A MMT é taxativa em sua
reposta: Não!
Então porque o governo não o faz?
— poderia indagar o leitor. A resposta a essa questão fica sugerida com a
seguinte pergunta: O que seria dos ganhos financeiros das grandes instituições
que aplicam em títulos públicos para “financiar” o governo se ele passasse a se
financiar cunhando a própria moeda?
É verdade que as regras que regem
a relação entre Banco Central e Tesouro Nacional no Brasil vedam o
financiamento do Tesouro via Banco Central. Mas quem são os interessados na
criação e manutenção dessas regras?
Brown nos conta sobre o caso
norte-americano. Qualquer semelhança com o caso brasileiro não há de ser mera
coincidência. (Felipe Calabrez)
A dívida federal dos EUA mais do
que dobrou desde a crise financeira de 2008, passando de US$ 9,4 trilhões (R$
37 triliões) em meados de 2008 para mais de US$ 21 triliões (R$ 82,9 triliões)
em meados de 2018 e mais de US$ 22 triliões (R$ 86,9 triliões) em abril de
2019. Essa dívida nunca é paga. O governo apenas mantém o pagamento dos juros,
cujas taxas estão subindo.
O Fed (sigla de Federal Reserve,
o Banco Central norte-americano) anunciou planos de elevar as taxas até 2020
para níveis “normais” – uma meta de 3,5% para títulos federais – e de vender
cerca de US$ 1,5 trilião (R$ 5,9 triliões) em títulos federais. Isso aumentará
ainda mais a montanha de dívida federal nas mãos do mercado. E, ao contrário do
Fed, os novos compradores desses títulos estarão embolsando os juros,
aumentando a conta a ser paga pelos contribuintes.
Se o Fed seguir com seus planos,
as projeções são de que, até 2027, os contribuintes dos EUA gastarão US$ 1
trilhão (R$ 3,9 triliões) por ano apenas em juros sobre a dívida federal. Isso
seria suficiente para financiar o plano de infraestrutura de triliões de
dólares do presidente Donald Trump a cada ano, e é uma transferência direta de
riqueza da classe média para os ricos investidores detentores da maioria dos
títulos.
De onde virá esse dinheiro?
Impostos escorchantes, privatização generalizada de bens públicos e eliminação
de serviços sociais não serão suficientes para cobrir a conta.
Não é preciso endividar-se com os
rentistas
A ironia é que os Estados não
precisam ter uma dívida com os detentores de títulos. Os EUA, por exemplo, têm
sido financeiramente soberanos desde que o presidente Franklin Roosevelt
desvinculou as emissões domésticas de dólar do padrão-ouro, em 1933. Isso foi
reconhecido por Beardsley Ruml, presidente do Federal Reserve Bank de Nova
York, em uma apresentação em 1945 perante a American Bar Association. ,
“Impostos para obter receita são obsoletos”.
“A necessidade de o governo
tributar para manter tanto sua independência quanto sua solvência é verdadeira
para os governos estaduais e locais”, disse ele, “mas não é verdade para um
governo nacional”. O governo agora estava livre para gastar o quanto fosse
necessário para cumprir seu orçamento, com base em crédito emitido por seu
próprio banco central. Isso poderia acontecer até que a inflação de preços
indicasse um enfraquecimento do poder de compra da moeda.
Então, e somente então, o governo
precisaria cobrar impostos — não para financiar o orçamento, mas para contrabalançar
a inflação, contraindo a oferta monetária. O principal objetivo dos impostos,
disse Ruml, era “a manutenção de um dólar que tivesse poder de compra estável
ao longo dos anos. Às vezes, esse propósito é declarado como “evitar a
inflação”.
O governo poderia ser financiado
sem impostos, recebendo crédito de seu próprio banco central; e como não havia
mais necessidade de ouro para cobrir o empréstimo, o banco central não
precisaria pedir emprestado. Poderia apenas criar o dinheiro em seus livros contábeis.
Essa percepção é um princípio básico da Teoria Monetária Moderna: o governo não
precisa pedir emprestado ou tributar, pelo menos até surgirem sinais de alta de
inflação. Pode apenas criar o dinheiro necessário, gerando um débito em sua
conta no Fed.
A “Revolução de Poder” dos
banqueiros
Poderia fazer isso em teoria, mas
algumas leis precisariam ser mudadas. Atualmente, o governo federal é obrigado
[tanto nos EUA quanto no Brasil e na maior parte dos países ocidentais] a ter o
dinheiro em sua conta antes de gastá-lo. Depois que o dólar saiu do padrão-ouro
em 1933, o Congresso poderia ter mandado o Fed simplesmente imprimir dinheiro e
emprestá-lo ao governo, tirando os bancos da jogada. Mas o baronato financeiro
de Wall Street pressionou por uma
emenda ao Federal Reserve Act, proibindo o Fed de comprar títulos diretamente
do Tesouro, como havia feito no passado.
Segundo Marriner Eccles,
presidente do Federal Reserve de 1934
a 1948,
a proibição de permitir que o governo contratasse
empréstimos de seu próprio banco central foi escrita na Lei Bancária [Banking
Act] de 1935, a
pedido dos negociantes de valores mobiliários. Uma revisão histórica no site do
New York Federal Reserve cita Eccles afirmando: “Eu acho que as verdadeiras
razões para escrever a proibição do [Banking Act] … podem ser atribuídas a
certos negociantes de títulos do governo que naturalmente tinham seus olhos nos
negócios que poderiam ser perdidos se a compra direta fosse permitida ”.
O governo era obrigado a vender
títulos através dos intermediários de Wall Street, e o Fed só podia comprar
através de “operações de mercado aberto” conduzidas pelo Comité de Mercado
Aberto. O deputado Wright Patman, presidente do Comité de Bancos e Moedas da
Câmara de 1963 a
1975, qualificou a sanção oficial do Federal Open Market Committee (FOMC), nas
leis bancárias de 1933 e 1935, como a transferência do “poder do dinheiro” aos
bancos. O FOMC estabeleceu um mecanismo pelo qual o dinheiro era criado através
de vendas de títulos, no que era essencialmente um mercado manipulado. Patman
disse: “O ‘mercado aberto’ é, na realidade, um mercado fortemente fechado”.
Somente alguns poucos negociadores de títulos (dealers) tinham direito a fazer
lances nos títulos que o Tesouro disponibilizava para leilão a cada semana. O
efeito prático, disse ele, era pegar dinheiro do contribuinte e entregá-lo a
esses negociadores.
Alimentando-se da economia real
Esse subsídio maciço a Wall
Street foi objeto de depoimento de Eccles ao Comité da Câmara sobre Operações
Bancárias e Moeda, de 3 a
5 de março de 1947. O deputado Patman perguntou a Eccles, presidente do Banco
Central: “Agora, desde 1935, para os bancos públicos comprarem títulos do
governo, eles têm que passar por um intermediário, está correto? ”Eccles
respondeu afirmativamente. Patman então se lançou em uma advertência profética,
afirmando: “Eu me oponho a que o governo dos Estados Unidos, que possui o
privilégio soberano e exclusivo de criar dinheiro, pague banqueiros privados
pelo uso de seu próprio dinheiro. (…) Insisto que é absolutamente errado que
esta comissão permita que esta condição continue e onere os contribuintes desta
nação com uma carga de dívidas que não poderão liquidar em cem ou duzentos
anos.”
A verdade dessa afirmação é
dolorosamente evidente hoje, quando os EUA têm uma dívida de US$ 21 triliões que não pode ser reembolsada. O governo apenas continua rolando e pagando juros
aos bancos e detentores de bónus, alimentando a economia “financeirizada”, na
qual o dinheiro ganha dinheiro sem produzir novos bens e serviços. A economia
financeira tornou-se um parasita que se alimenta da economia real, levando os
produtores e trabalhadores a se endividar cada vez mais.
Nos anos 1960, Patman tentou
nacionalizar o Fed. O esforço fracassou, mas seu comité conseguiu forçar o
banco central a repassar seus lucros para o Tesouro após deduzir seus custos. A
proibição contra empréstimos diretos pelo banco central ao governo, no entanto,
permanece em vigor. O poder do dinheiro ainda está com o FOMC e os bancos.
Um modelo pelo qual não se pode
mais pagar
Hoje, o modelo de crescimento da
dívida atingiu seus limites, como até o Bank for International Settlements, o
“banco central dos bancos centrais” da Suíça, reconhece. Em seu relatório anual
de junho de 2016, o BIS disse que os níveis de endividamento estavam muito
altos, o crescimento da produtividade era muito baixo e o espaço para a manobra
política era muito estreito. “A economia global não pode se dar ao luxo de
confiar mais no modelo de crescimento impulsionado pela dívida que a trouxe
para a atual conjuntura”, alertou o BIS.
Mas as soluções propostas pelo
BIS representam a continuidade das políticas de austeridade impostas há muito
tempo aos países que não podem pagar suas dívidas. Ele prescreveu “políticas
prudenciais, fiscais e, acima de tudo, estruturais” — “reajustes estruturais”.
Isso significa privatizar ativos públicos, cortar serviços e elevar impostos,
sufocando a própria produtividade necessária para pagar as dívidas das nações.
Essa abordagem tem sido tentada repetidamente e levada ao fracasso, como
pudemos notar mais recentemente na devastada economia da Grécia.
Enquanto isso, de acordo com o
presidente do Fed de Minneapolis, Neel Kashkari, a regulação financeira
reduziu, desde 2008, as chances de outro resgate do governo apenas
modestamente, de 84% para 67%. Isso significa que ainda há uma chance de 67% de
outra grande crise sistémica, e esta pode ser pior que a anterior. Os grandes
bancos estão ainda maiores; os bancos locais, menores; e os níveis globais de
dívida estão mais altos. A economia tem mais espaço para cair. Os modelos dos
reguladores são obsoletos, voltados para uma forma bancária ultrapassada, que
há muito tempo foi abandonada.
Nós precisamos de um novo modelo,
desenhado para servir às necessidades do público e da economia real, em vez de
maximizar os lucros dos especuladores às suas custas.
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