Valter Hugo Mãe* |
Jornal de Notícias | opinião
Quase invariavelmente
ressentidas, todas as sociedades anseiam perigosamente por certa sangria.
Ainda que nos organizemos como
gente pacífica, a verdade é que existe em cada um a vontade inconfessável de
ver o vizinho pagar por todos os erros que lhe reconhecemos, numa sede de
vingança que sirva para prémio do quanto nos sentimos penar, do quanto nos
achamos merecedores de especial reconhecimento. Não creio que seja um traço que
especifique os portugueses. Julgo ser algo que acontece em todo o mundo,
resultado da condição falha da humanidade, uma condição frustrada de todas as
cidadanias. Vivemos como quem espera por uma justiça que se abata sobre a
cabeça dos terríveis outros. Vivemos como quem se convence de que terríveis são
os outros.
Por estes dias, os terríveis
outros barafustam nas gasolineiras antecipando a greve. Enchem bidões imensos,
à revelia da lei e da compaixão. Os gasolineiros admitem tudo. Observamos com a
imaginação a funcionar. Bom seria que estourasse tudo, como se comentará em
todos os cafés o assombro maravilhado de dificultar o abastecimento das
ambulâncias e dos táxis. Há um prazer estranho naqueles que encheram o depósito
em comparar as desgraças e o desespero de outrem. Quanto maior se preveja a
greve mais se sente o bizarro entusiasmo, como se houvesse a necessidade de ver
o pior para comprovar nossas incansáveis teses de que a humanidade, ou a
sociedade, é uma porcaria.
A greve começa amanhã, a folia da
greve já tem uns dias. Na gasolineira onde vou, em esperas, insultam-se uns e
outros aludindo a estados de exceção. Não é permitido encher bidões em tempos
de normalidade mas, ao anúncio da escassez, vale cada um por si, porque a
necessidade de cada um é sempre maior do que a dos outros. Um senhor diz que as
ambulâncias não vão poder andar, outro responde que esse é um problema do
Governo. Alguém repara em mim e pede: escreva sobre esta tristeza. Somos feios,
porcos e maus.
A greve dos motoristas de
matérias perigosas é contra o patronato e contra o Governo, antes de ser também
contra os cidadãos já os cidadãos desempenham esse papel. Os cidadãos são uns
contra os outros. Por mais escola que tenhamos, é o que se vê. A generosidade
começa na abundância. Durante a escassez há apenas uma caridade pontual, a
humanidade acaba. Adia-se, se tivermos ainda esperança.
* Escritor
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