Em manifesto, 102
executivos-chefes de megacorporações prometem refrear a própria voracidade e
não pensar apenas nos lucros. Revisão dos dogmas neoliberais ou jogada de
marketing? Joseph Stiglitz e Ladislau Dowbor comentam
Joseph Stiglitz | Outras
Palavras | Tradução: Simone Paz
Será exagerado dizer que o
capitalismo está à procura de novos rumos? As grandes corporações atuam no
espaço planetário, onde não há governo, regulação ou regras do jogo. As maiores
simplesmente não pagam imposto, ou recolhem 0,05% dos lucros como a Apple. Os
desastres ambientais e sociais estão se generalizando, mas para as corporações
trata-se de “externalidades”. A desigualdade atinge níveis explosivos, mas os
bancos vão bem. Em paraísos fiscais temos 200 vezes mais recursos financeiros
do que o a Conferência Mundial sobre o Clima decidiu, e mal consegue, levantar.
Fraudes em medicamentos, alimentos que generalizam a obesidade, inclusive
infantil, trambiques em emissões de veículos, agrotóxicos e antibióticos nos
alimentos — é um clima de vale-tudo.
A indignação está se
generalizando, e 181 corporações (gigantes como Amazon, JPMorgan, Apple etc.)
decidiram que o credo que valia desde os anos 1980, com Milton Friedman, de que
as empresas devem pensar apenas nos lucros, não é suficiente. Os impactos
ambientais e sociais que provocam fazem parte das suas responsabilidades. Após
40 anos de neoliberalismo irresponsável, há novos caminhos? É saudável
recebermos a notícia com ceticismo, a cosmética corporativa tem longa tradição.
Mas também é fato que pelo jeito as corporações estão sentindo o calor da
irritação social. Stiglitz faz a proposta essencial: novas leis e regras devem
ancorar essas boas intenções corporativas. (Ladislau Dowbor)
Nas últimas quatro décadas, a
doutrina prevalecente nos EUA tem sido a de que as corporações devem
potencializar os valores para seus acionistas — isto é, aumentar os lucros e os
preços das ações — aqui e agora, não importa o que aconteça, sem se preocupar
com as consequências para os trabalhadores, clientes, fornecedores e
comunidades. Logo, a declaração que
defende um capitalismo consciente e que foi assinada este mês por
quase todos os membros da Business Roundtable causou
um grande alvoroço. Afinal de contas, trata-se dos executivos-chefes das
companhias mais poderosas dos EUA, dizendo aos norte americanos que o mundo dos
negócios é muito mais do que apenas balanços patrimoniais. E isso é uma baita
virada de jogo, não é mesmo.
Milton
Friedman, o teórico do livre mercado e ganhador do Prêmio Nobel de
Economia, influenciou não somente espalhando a doutrina da supremacia dos
acionistas, mas também garantindo que fosse inscrita na legislação
estadunidense. Ele chegou a declarar “há
somente uma responsabilidade social nos negócios: usar seus recursos e
comprometê-los em atividades que aumentem seus lucros”.
A ironia está no fato de que logo
após Friedman ter promovidos tais ideias, e mais ou menos na época em que elas
se popularizavam e consagravam nas leis da administração corporativa — como se
fossem baseadas em teorias econômicas sólidas — Sandy Grossman e eu, num
conjunto de artigos do final dos anos 1970, demonstramos como o capitalismo
acionário não melhorava o bem-estar social.
Isto é obviamente verdadeiro
quando há tantas “externalidades” relevantes, como a mudança climática, ou como
quando as corporações contaminam o ar que respiramos e a água que bebemos. E
isto é ainda mais verdadeiro quando nos empurram produtos prejudiciais à saúde,
como bebidas açucaradas que colaboram com a obesidade infantil, ou analgésicos
que desatam uma epidemia de vício em opioides, ou quando exploram os
vulneráveis, como é o caso da Trump University e tantas outras instituições de
ensino superior norte-americanas com fins lucrativos. E também é real quando
lucram exercendo o poder de mercado, como tantos bancos e empresas de
tecnologia fazem.
Mas é ainda mais verdadeiro de
modo geral: o mercado consegue fazer com que as empresas não enxerguem no longo
prazo e não invistam suficientemente em seus trabalhadores e comunidades. Por
isso, é um alívio que líderes corporativos, que supostamente deveriam ter uma
visão profunda e interna do funcionamento da economia, finalmente tenham visto
a luz e se atualizado com a economia moderna, mesmo tendo demorado mais de 40
anos para perceber isso.
Mas será que esses líderes
empresariais pregam essa mudança de verdade, ou seria somente uma declaração
num gesto retórico, em face de uma reação popular contra o tão disseminado mau
comportamento? Há razões para acreditar que eles estão sendo mais do que apenas
um pouco dissimulados.
A principal responsabilidade das
corporações é o pagamento de impostos, e entre os signatários da nova visão
empresarial estão mega-evasores de impostos, incluindo a Apple, que, de acordo
com suas contas, continua utilizando paraísos fiscais, como Jersey. Outros
deles, apoiaram a nova política de impostos proposta em 2017 por Donald Trump.
Ela reduz os impostos para corporações e bilionários, elevará os impostos para a
maioria das famílias de classe média e fará com que milhares percam seus
seguros de saúde — num país com o nível de desigualdade mais elevado, os
piores resultados na área
da saúde, e a menor
expectativa de vida, entre os principais países economicamente
desenvolvidos. E embora esses líderes de mercado defendam que o corte de
impostos traz mais investimento e melhores salários, os trabalhadores acabam
recebendo apenas uma ninharia. A maior parte do dinheiro acaba sendo utilizada
para recomprar ações, o que serve para, basicamente, alinhar os bolsos dos
investidores e dos executivos-chefes com esquemas de incentivo e valorização
das ações.
Um senso de responsabilidade
sincero e verdadeiro faria com que líderes de corporações aceitassem
regulamentações mais fortes para proteger o meio ambiente e para melhorar a
saúde e segurança de seus empregados. Algumas
poucas companhias automobilísticas (Honda, Ford, BMW e Volkswagen) têm
feito isso, defendendo regras mais firmes do que as impostas pelo governo
Trump, já que o presidente atual trabalha no desmonte do legado ambiental
construído por Barack Obama. Há inclusive executivos de empresas de bebidas
não-alcóolicas que parecem estar envergonhados pela sua influência na obesidade
infantil, a qual costuma levar à diabetes, pois eles sabem disso.
Porém, embora muitos
executivos-chefes queiram fazer o correto (ou tenham familiares e amigos que se
preocupam com essas questões), eles sabem que têm concorrentes que não. Deveria
existir condições equitativas, que garantissem que empresas conscientes não se
vissem prejudicadas por aquelas que não têm preocupação alguma. É por isso
também que muitas corporações desejam e pedem normas contra as propinas, e
querem regras que protejam o meio ambiente, além da segurança e saúde nos
locais de trabalho.
Infelizmente, muitos dos grandes
bancos cujo comportamento irresponsável provocou a crise financeira global de
2008 não estão nesse grupo. Mal havia secado a tinta da legislação da reforma
financeira da Lei Dodd-Frank, em 2010 — a qual endureceria as normas, com o
intuito de evitar a recorrência das crises — quando os bancos começaram a
trabalhar para revogar algumas das medidas-chave. Entre eles, estava o JPMorgan
Chase, cujo diretor é Jamie Dimon, presidente atual do Business Roundtable.
Considerando as políticas norte americanas, tão pautadas pelo dinheiro, não
surpreende o fato de que os bancos tenham esse êxito todo. Uma década após a
crise, alguns bancos ainda lutam contra ações judiciais movidas por aqueles que
foram prejudicados em vista de seu comportamento irresponsável e fraudulento.
Eles esperam que seus grandes bolsos permitam-lhes permanecer na disputa mais
do que quem os processa.
A nova postura dos diretores mais
poderosos dos EUA é, obviamente, bem vinda. Mas teremos que esperar para ver se
se trata somente de mais um golpe publicitário, ou se eles realmente estão
sendo verdadeiros. Enquanto isso, precisamos de uma reforma legislativa. O
pensamento de Friedman não só deu aos executivos-chefes uma desculpa perfeita
para fazerem tudo o que sempre quiseram, como também conduziu leis de
governança corporativa que deram suporte e incorporaram o capitalismo acionário
na estrutura legal dos EUA e na de tantos outros países. Isso precisa mudar, de
modo que as corporações não só possam, como sejam obrigadas a considerar as consequências
de seu comportamento sobre os demais colaboradores.
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