quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Portugal | Furacão Lorenzo. Nos Açores as tempestades só dizem até já


Às três da madrugada, eram cinco as ocorrências registadas, agora o número já ultrapassa as 120 e são 39 os desalojados. A reportagem durante as horas que antecederam a chegada do furacão Lorenzo e, agora que o pior passou, na sua despedida. Será? Nos Açores as tempestades nunca dizem adeus, apenas até já

Melissa Canhoto tem 34 anos e está há nove em São Miguel. Nasceu nos Estados Unidos, na Califórnia, mas tem “toda a família” nas Flores – “pai, mãe, primos, tios”. “Falei agora com os meus pais e está muito escuro mas nada diferente de um dia normal de inverno nas Flores”, dizia-nos pouco depois das 20h dos Açores desta terça-feira, mais uma hora em Portugal continental. Melissa e a irmã, que mora em Aveiro, estão preocupadas com os pais e à partida tinham razão para isso: o “Lorenzo” chegaria madrugada dentro e embora viesse no nível 1 na escala que mede a intensidade dos furacões, chegou a ser 5 (o máximo) mas oscilou regularmente entre o nível 3 e 4 nos dias que antecederam a sua chegada ao arquipélago português.

O pai de Melissa tem apenas 8% de visão e a mãe tem “problemas de locomoção”. “Mesmo com estas dificuldades estiveram a preparar tudo ontem para a chegada do furacão, estiveram na limpeza do quintal e a reforçar as janelas com trancas”, conta, orgulhosa, a filha.

Na ilha em frente, o Corvo – a mais pequena do arquipélago, com cerca de 450 habitantes -, Rosa é figura conhecida: é ela que prossegue a tradição das típicas barretas do Corvo, o produto mais genuíno da ilha, que lhe foi ensinado pela sua mãe, falecida já este ano, e que tem no cineasta e músico Gonçalo Tocha, por exemplo, um dos seus mais reconhecidos promotores. O contacto na terça-feira foi diferente e Rosa já sabia que o motivo era o “Lorenzo”: “O dia foi tranquilo. Neste momento [22h dos Açores] o vento já dá ares da sua graça, mas por enquanto nada de preocupante. Vamos esperar pelo período entre as 04h e as 08h”.


“A MALTA É SUPER RIJA”, MAS…

Pouco depois das 23h, o direto da RTP/Açores a partir da ilha das Flores não deixava margem para dúvidas: o “Lorenzo” já se fazia sentir, em concreto na intensidade do vento e na perturbação que este causou no direto. Melissa reconhece que as imagens não foram reconfortantes: “Falei com um amigo que tem os pais na freguesia de Ponta Delgada das Flores e também já sentem o vento. Como está cá em São Miguel, também ele está preocupado”. Rosa, no Corvo, dizia que a essa hora as rajadas iam nos 80 km por hora, mas isso, para corvina, “não é nada”. “A malta aqui é super rija. Se fosse este vento, não havia problema. Vamos ver se sempre chega aos 200 por hora que falam”. Por esta altura, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) avançava que o centro do furacão – o local onde a pressão atmosférica é mais baixa – iria passar a 100 km das Flores cerca das 06h. Os portos dos grupos Central (Pico, Faial, São Jorge, Graciosa e Terceira) e Ocidental (Flores e Corvo) já se encontravam encerrados, e nisto a transportadora aérea açoriana SATA já havia cancelado para hoje mais de 20 ligações interilhas e pelo menos um voo entre Lisboa e a Horta e vice-versa. Em São Miguel, das ilhas menos afetadas, era ainda assim evidente que algo de diferente se passava, com rajadas pouco comuns de vento.

AS OCORRÊNCIAS, O “PERÍODO CRÍTICO” E O PRIMEIRO ADEUS

Primeiro, às 03h, foi Carlos Neves, da Proteção Civil, a falar em cinco ocorrências. Duas horas depois, foi a secretária regional da Saúde, que tem nos Açores a tutela a área, a indicar 15 ocorrências e dois desalojados, na ilha de São Jorge. Na delegação do IPMA de Ponta Delgada, a meteorologista Vanda Costa prepara-se, pouco antes das 06h, para entrar em direto para a RTP. Há dez anos na profissão, a açoriana de Santa Maria conta que o “trabalho maior” da entidade “é mesmo o da preparação, quando as pessoas querem estar devidamente informadas” sobre eventos como o “Lorenzo”. Nisto, são 06h30 e há “cortes de energia e na rede móvel” nas Flores e no Corvo e mais de 50 ocorrências, diz Carlos Neves, que voltou ao contacto com os jornalistas na ilha Terceira. Posteriormente, o mesmo responsável haveria de avançar que o mar levou parte do molhe e um edifício de apoio do porto das Lajes das Flores. E nisto são 08h e as ocorrências superam as 80, maioritariamente árvores ou ramos caídos, mas também desalojamentos vários – metade das ocorrências estavam ainda em resolução. Agora, a contagem já supera as 120 ocorrências e os 39 desalojados.

A noite vai longa e o “período crítico” é até às 09h do arquipélago. O presidente do Governo Regional dos Açores, Vasco Cordeiro, acompanha a partir das Flores toda a operação, tendo estado em contacto direto com o Governo da República sobre a situação – os restantes membros do executivo encontram-se desde terça-feira espalhados pelas outras oito ilhas, acompanhando os trabalhos junto das equipas de socorro locais.

O “Lorenzo” vai dar ainda trabalho aos açorianos até perto da hora de almoço. Posteriormente, o fenómeno dirige-se, ao que tudo aponta, para o Reino Unido. Mas, como diz o cancioneiro do arquipélago, “nestas ilhas de bruma, onde as gaivotas vão beijar a terra”, furacões e tempestades nunca dizem verdadeiramente adeus, apenas até já. Este já lá vai, dirão hoje de tarde a florentina Melissa e a corvina Rosa.

Pedro Primo Figueiredo, serviço especial da Agência Lusa para o Expresso | Foto: Rafael Marchante // Lusa

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