Eles esvaziaram a democracia,
para afirmar a soberania dos mercados. E espalharam ressentimentos, ao
concentrar riquezas. Surgiu um Frankenstein — a quem recorrem, sempre que seus
super privilégios são ameaçados…
Daniel Zamora e Niklas Olsen
| em Jacobin| Outras
Palavras | Tradução: Felipe Calabrez | Imagem: Frankenstein do filme de
1910, dirigido por J. Searle Dawley.
No turbulento ano de 1968, o
economista de Chicago e vencedor do Prémio Nobel George J. Stigler apontou
algumas idéias sobre como introduzir o “sistema de preços” no processo da
democracia. Stigler era um dos amigos mais próximos de Milton Friedman e fazia
parte de seu “pensamento coletivo” neoliberal desde o início. Os dois homens
participaram do primeiro encontro da sociedade Mont Pèlerin em 1947, um dos
eventos fundadores do movimento neoliberal. Nas décadas seguintes, os dois
economistas de Chicago fizeram contribuições vitais para o que, segundo a
cientista política Wendy Brown, tornou-se o objetivo principal da agenda
neoliberal mundial: “a economização de todas as características da vida”, um
projeto que buscava substituir, pelo sistema de preços, as formas mais
políticas de tomada de decisão coletiva.
George Stigler propôs um modo
específico para essa “economização”. Ele já havia fornecido modelos de custo /
benefício para, por exemplo, investigar a taxa “ideal” de acidentes de carro ou
perguntar se seria mais vantajoso bombardear o Japão “continuamente” ou
“descontinuamente” em tempos de guerra. Desse ponto de vista, não devemos
também ver a própria democracia como um sistema que tem um “custo”, e precisa
ser “gerido” da maneira mais eficiente? O custo de eleições periódicas, pensava
Stigler, era geralmente muito alto e “perturbador”, com todas as suas
“campanhas desnecessárias”. Ao contrário de uma empresa privada, os termos de
emprego dos representantes eleitos eram limitados no tempo. “Os custos de
‘recontratar’, argumentou, seriam excessivos e supérfluos, se os eleitores
estivessem satisfeitos com seus “funcionários”. Talvez surpreendentemente, o
“abandono de eleições periódicas” tenha se tornado para Stigler uma maneira
mais racional de organizar a representação política, aproximando-a mais da
“vida económica ordenada”. Era sempre “dispendioso descobrir, examinar e
treinar um novo trabalhador, e o trabalhador acha caro descobrir, explorar e
mudar para um novo emprego ”, prossegue Stigler. Por que não, como no setor
privado, “adotar a regra da posse indefinida?” Com um mandato presidencial
entendido como um simples contrato de trabalho, um presidente poderia
permanecer no poder enquanto seus empregadores – leia-se cidadãos – o quisessem
lá. Stigler propôs que os eleitores pudessem convocar uma eleição por meio de
uma petição exigindo que um décimo do eleitorado assinasse. Nos termos
demográficos de hoje, isso representaria, no Brasil, mais de 15 milhões de
eleitores.
Além disso, para evitar um
excesso de eleições (a democracia “excessiva” poderia facilmente degenerar em
totalitarismo), Stigler acrescentou que “os peticionários de uma nova eleição
pagariam seus custos ao Estado”. Essa “introdução do sistema de preços” no
processo democrático permitiria “torná-lo responsivo aos desejos do eleitorado
e aos custos das eleições”. A implementação de tal sistema implicaria, é claro,
uma contenção muito estrita de política e da democracia, dificultando a
organização de eleições; considerando o “custo” de uma eleição, somente os
ricos ou as empresas teriam recursos para contestar os funcionários eleitos. A
“Política”, no sentido clássico, seria, para entender a expressão de Hayek,
“destronada”, tornando a grande maioria dos cidadãos incapazes de moldar a
ordem social coletivamente.
Após seu estudo anterior sobre o
neoliberalismo (Undoing the Demos, 2015), o mais novo livro da teórica
política Wendy Brown, In the Ruins of Neoliberalism (Nas Ruínas
do Neoliberalismo, editora Politeia), enfoca esse esforço neoliberal para
desmantelar o político e o social, e como esse projeto lançou as bases para a
ascensão da política antidemocrática no Ocidente.
O Frankenstein do Neoliberalismo
Muita coisa aconteceu entre a
publicação destes dois livros, no entanto. A história, como Marx escreveu certa
vez, nunca segue uma evolução linear, mas é sempre feita de desacelerações e
acelerações. Para um teórico político, os quatro anos que separam esses dois
estudos parecem mais com um século. Trump e o Brexit constituem duas das
novidades mais notáveis da política
contemporânea desde o triunfo político do neoliberalismo. À luz desses
desenvolvimentos, Wendy Brown tenta entender como o que ela chama de
“racionalidade neoliberal” preparou o terreno para o surgimento dessas “forças
antidemocráticas”. Indo além e até revisando alguns de seus argumentos
anteriores, ela examina mais de perto como o “modo neoliberal da razão” gerou
algo que é realmente “radicalmente diferente da utopia neoliberal de uma ordem
liberal inegalitária na qual indivíduos e famílias seriam pacificados
politicamente pelos mercados. “Brown tenta explicar como, embora os proponentes
centrais do neoliberalismo provavelmente não tenham imaginado ou visado nosso
presente político e económico, suas ideias e reformas funcionaram como um
excelente “fertilizante” para nutri-lo. Portanto, Trump, cuja regra apela ao
niilismo, fatalismo e ressentimento, e se apoia em uma aliança antidemocrática entre
“tradicionalistas empresariais e tradicionalistas moral-religiosos”, não deve
ser entendido como a criação pretendida pelo neoliberalismo, mas sim seu
“Frankenstein”.
Baseando-se parcialmente em Family
Values, o brilhante estudo de Melinda Cooper sobre a aliança conservadora
neoliberal-social, Wendy Brown mostra como, na obra de Hayek, a moral e o
mercado constituem, juntos, os fundamentos da liberdade, sendo ambos
“organizados espontaneamente e transmitidos pela tradição, e não pelo poder
político”. Os sinais descentralizados e impessoais do mercado substituem a
deliberação política coletiva, e a moral tradicional constitui um substituto
apropriado para a “sociedade concebida como busca comum organizada”. Ambas são
“ordens espontâneas”, e não propósitos “projetados” que nos colocariam na
ladeira escorregadia da “democracia ilimitada”. No neoliberalismo, a moral
funciona como uma alternativa útil ao social e ao político, desviando os
desafios das desigualdades e das hierarquias, tradicionais, que podem distorcer
o bom funcionamento dos mercados.
Brown admite que seu foco inicial
no impulso à “economização” falhou em abordar como o violento ataque do
neoliberalismo contra a própria noção de “sociedade” ou de “política”
reformulou nossas sociedades. “Desmantelar a sociedade” e “destronar a
política” constituem nesse contexto os dois componentes centrais do projeto
“moral-político” que abriram o caminho para o que Brown chama de “retorno do
recalcado”. Ao usar os mercados e a moral para apagar a própria noção de
soberania popular e justiça social, o neoliberalismo provocou o surgimento de
uma forma “enfurecida” de regra maioritária, caracterizada pelo nacionalismo de
extrema-direita e pelo fundamentalismo religioso, livre de qualquer forma de
normas civis e alimentada pelo ressentimento. Trump, portanto, pode não ter
sido “causado” pelo neoliberalismo, mas foi produzido nas “ruínas” dele. De
seus restos irromperam essas ferozes “forças sociais e políticas a que os
neoliberais outrora se opuseram, subestimaram e deformaram com seu projeto de
desdemocratização”.
O relato estimulante de Wendy
Brown, no entanto, sofre com seu foco no neoliberalismo conservador dos anos
80, subestimando a contribuição da esquerda para a aceitação, desenvolvimento e
disseminação do neoliberalismo. Embora ela ocasionalmente pareça reconhecer que
a noção de “social” e uma certa concepção de deliberação política desapareceram
da esquerda também durante esse período, esse tema desempenha um papel marginal
em sua narrativa. E, no entanto, sabemos pela história intelectual de Daniel
Rodgers do final do século XX como, ao menos nos EUA, a esquerda contribuiu
para uma mudança no pensamento: ideias tradicionais de preocupações e
instituições coletivas foram substituídas por uma maneira de pensar mais
fraturada e individualizada sobre a sociedade, que enfatizava escolha, agência
e desempenho, e passou a confiar na metáfora do mercado. Nancy Fraser também
apontou o desaparecimento da social-democracia ao estilo do New Deal e sua
substituição por um “neoliberalismo progressista” que especificamente “esvaziou
os padrões de vida da classe trabalhadora e da classe média”, ao mesmo tempo em
que promovia as correntes “mainstream” de novos movimentos sociais (feminismo,
anti-racismo, multiculturalismo e direitos LGBTQ), por um lado, e setores
empresariais “simbólicos” e de serviços de ponta (Wall Street, Vale do Silício
e Hollywood), por outro . ”Essa convergência entre esquerda e direita se
desenrolou em vários terrenos do pensamento e prática políticos que são
ignorados em Nas ruínas do neoliberalismo.
O consumidor derrota o cidadão
Parte do problema no relato de
Wendy Brown é seu entendimento restritivo de como o neoliberalismo entendeu sua
relação com a “soberania popular”. Em seu relato, parece essencialmente um
projeto conservador. Mas ela não reconhece que ele englobava uma visão
alternativa da boa sociedade que poderia ser facilmente apropriada para uma
perspectiva progressiva. Mais importante ainda, a tentativa neoliberal de
reduzir as noções tradicionais de democracia acompanhou a invenção de uma nova
noção de “democracia de mercado” (enquadrada com positiva e supostamente
superior, que se inspirou na idéia de soberania do consumidor. Ao traçar um
paralelo direto entre a escolha no mercado e nas urnas, os neoliberais
retratavam o “voto” diário dos consumidores soberanos no mercado como uma
solução superior para garantir a representação e a participação em processos
sociopolíticos para o cidadão individualmente. Esta é uma solução que
supostamente permite a escolha individual sem limites pela vontade da maioria e
procura limitar e, em última instância, substituir as instituições tradicionais
da democracia política por aquelas que promovem a dinâmica do capitalismo de
mercado.
Nas palavras de Milton Friedman:
Quando você vota diariamente no
supermercado, obtém exatamente o que pediu e o mesmo acontece com todos os
outros. A urna produz conformidade sem unanimidade; o mercado, unanimidade sem
conformidade. É por isso que, tanto quanto possível, é desejável usar as urnas
apenas para as decisões em que a conformidade é essencial.
Juntamente com outras noções que
apelam à liberdade pessoal (pense no “empreendedor de si mesmo”), a soberania
do consumidor proporcionou ao neoliberalismo apelo popular e legitimidade. O
ponto central aqui foi, obviamente, a ideia de que a boa sociedade deve ser
criada por meio de de mecanismos de mercado, e não das instituições e
mecanismos tradicionais do Estado de Bem-estar Social.
Hoje, essa ideia também é
amplamente difundida na esquerda – não apenas porque esta falhou em desenvolver
uma alternativa ao neoliberalismo, mas também porque abraçou ativamente e
ajudou a disseminar as “ideias progressistas” do neoliberalismo, como a
aplicação da soberania do consumidor em vários contextos sociais.
Na disciplina de economia da era
pós-guerra, estudiosos de esquerda e centristas como Kenneth Arrow e Anthony
Downs contribuíram tanto quanto Milton Friedman e George Stigler para as novas
tendências de elevar a soberania do consumidor à única norma segundo a qual o
bem-estar social pode ser medido, retrabalhando o ideal da democracia política
tradicional, interpretando-a através de metáforas do mercado e desafiando o
papel do Estado como tomador de decisão coletivo e planejador social.
Na política, os partidos de
centro-esquerda nos anos 1990 não apenas seguiram os passos de seus
antecessores neoliberais, privatizando empresas estatais para ampliar a escolha
individual, mas deram um passo adiante ao reformar o próprio setor público,
modelando-o de acordo com o mercado, retratando o cidadão como seu “cliente”,
reformulando assim a democracia política como um mecanismo de escolha entre
produtos ou bens disponíveis.
No campo da crítica cultural,
foram intelectuais de amplo espectro político, incluindo Tom Wolfe, Marshall
McLuhan, Jürgen Habermas e Roland Barthes, que, na década de 1960, romperam com
uma longa tradição de se preocupar com os efeitos deletérios do consumo de
massa e começaram a ver a dinâmica do mercado sob uma luz mais positiva, enfatizando
os elementos de prazer, jogo e troca simbólica como a essência de uma cultura
de consumidor vibrante e potencialmente libertadora e individualizante.
Comercializando a igualdade
Outro resultado da adoção do
pensamento de mercado pela esquerda tem sido uma notável comercialização da
igualdade. De fato, a santidade do mecanismo de preços para os neoliberais não
era, como Wendy Brown sugere, anti-igualitária per se; de fato, gradualmente
encontraria muitos defensores dentro da esquerda. Contra uma visão na qual
instituições sociais e deliberação política seriam colocadas no centro da ideia
de igualdade, através da socialização da riqueza e de generosos serviços
públicos ou previdência social, surgiu uma nova perspectiva, centrada em
maneiras de redistribuir a riqueza, preservando o sistema de preços como a
ferramenta central para alocar recursos na sociedade. Em meados dos anos 1950,
como argumentou o historiador Peter Sloman para o contexto britânico, algo que
poderia ser chamado de “liberalismo redistributivo do mercado” deslocou
lentamente abordagens da justiça social focadas em “negociação salarial, seguro
contributivo e serviços sociais” em favor de um visão em que “a pobreza e a desigualdade
são melhor aliviadas por transferências de renda do que por intervenção direta
nos mercados de trabalho e produtos”. Uma nova geração de economistas,
incluindo pessoas como Anthony Atkinson, que basicamente criou o campo da
desigualdade em economia, passariam a ver as políticas sociais baseadas no
serviço público como formas menos eficientes de combater a pobreza do que os
pagamentos diretos por transferência.
Ao contrário do que Wendy Brown
sugere, o próprio Milton Friedman não foi inicialmente hostil à igualdade. Suas
principais críticas, até o final dos anos 1950, não se referiam ao fato da
redistribuição per se, mas às ferramentas usadas para alcançá-la. Ele
admitiu ter “fortes inclinações igualitárias”, mas pensou que “a principal
falha da filosofia coletivista” “não está em seus objetivos”, mas em “meios”.
“A falha em reconhecer a dificuldade do problema económico da eficiência” diz
Firedman, “levou à leitura de que se deve descartar o sistema de preços sem que
se colocasse um substituto adequado, e à crença de que seria fácil fazer melhor
com um planeamento central”.
Esse deslocamento não era apenas
uma questão técnica, no entanto. A mudança de uma visão para outra implicou não
apenas uma mudança na compreensão da igualdade, mas também a importância
atribuída à política na formação da ordem social. Embora as instituições
sociais e os serviços públicos sejam submetidos a deliberação pública e
representem uma maneira de a sociedade moldar coletivamente seu próprio
destino, reduzir a política social à transferência de renda “esvazia” a
igualdade de qualquer tipo de deliberação coletiva. Preserva a igualdade como
horizonte moral, mas a restringe como espaço político. Essa mudança obviamente
fez parte do programa de “neoliberalismo progressivo” da Terceira Via na década
de 1990. Os blairitas [Nota: em alusão a Tony Blair, primeiro ministro
britânico que defendeu a terceira via como plataforma política] estavam, em
certa medida, preocupados com a redistribuição – embora geralmente limitados à
redução da pobreza, em vez de um ataque mais amplo à desigualdade –, ao mesmo
tempo em que promoviam a expansão dos mercados em nível global e introduziam a
reforma do setor público inspirada na Nova Gestão Pública [New Public
Management, paradigma administrativo que se inspira na lógica do setor
privado]. Ambos foram promulgados em nome da soberania do consumidor,
juntamente com promessas de liberdade e autonomia individuais.
Como Wendy Brown corretamente
observa, parte desse sucesso provavelmente se deve a como o neoliberalismo foi
capaz de limitar radicalmente nossa concepção de normatividade e coerção. No
período pós-guerra, os economistas foram extremamente eficazes em popularizar a
idéia (inventada pela primeira vez nos anos 1930 pelo economista neoliberal Lionel
Robbins) da economia como uma ciência “sem valor” que deveria apenas nos
informar sobre as escolhas que temos, em vez de “normativamente” decidir por
nós. A economia teve que se distanciar de qualquer noção de “bem viver” ou
filosofia moral, de qualquer telos aristotélico compartilhado.
Coerção e normatividade, nessa configuração, são essencialmente um problema de
qualquer política que tente definir normas ou instituições coletivas com o
objetivo de implementar coisas como “direitos sociais”. O papel da economia
seria essencialmente, como Friedman colocou, maximizar a “liberdade efetiva” –
entenda-se “escolha dos indivíduos”. Embora essa redefinição tenha se tornado
uma excelente oportunidade para a direita conservadora para, como sugere Brown,
enxergar princípios (e leis baseados neles) de igualdade e inclusão como
políticas corretivas tirânicas”, teve também seu efeito sobre a esquerda. Seja
no abraço da Terceira Via à “igualdade de oportunidades” contra a “igualdade de
condições” ou, no campo da teoria social e política, visível na virada
antiestatista tomada pela Nova Esquerda no final dos anos 1960.
Uma esquerda anti-Estado
No “destronamento da política” de
Hayek, estudiosos como Michel Foucault, Pierre Clastres, Antonio Negri ou, mais
recentemente, James C. Scott pareciam ter encontrado uma maneira de “cortar a
cabeça do rei”. Fortemente crítica da “velha esquerda ”, da defesa do pleno
emprego “centrada no trabalho ”, da“ biopolítica da previdência social” ou da
concepção de mudança social centrada no Estado, essa esquerda intelectual
encontraria afinidades eletivas com os sinais descentralizados e impessoais do
mercado como uma maneira alternativa para pensar em poder e resistência. Na
busca de maneiras alternativas de conceitualizar a mudança social fora do
modelo de soberania – ou seja, fora do domínio da maioria e da conquista do
poder do Estado –, às vezes viam, junto com os neoliberais, o Estado como o
principal ou pior tipo de coerção.
Se, no início dos anos 1920, o
advogado e economista Robert Lee Hale havia legitimado o New Deal,
argumentando que a coerção era uma parte constitutiva da vida económica do
capitalismo, não se limitando a ações propositais e deliberadas de uma
instituição, nos anos 1970 vários teóricos sociais dentro da esquerda seriam
incapazes de fornecer uma teoria da coerção que também abordasse o
funcionamento do mercado. Podemos encontrar um retrato esclarecedor de como as
instituições de Previdência Social moldam nossa relação conosco em Foucault; e
de como “ver como um Estado” leva à padronização em massa, em Scott. Mas nenhum
desses autores foi capaz de nos fazer pensar de maneira substantiva sobre como
coerção e normalização não são apenas produtos de instituições centralizadas e
simplesmente não desaparecem com o desaparecimento dessas instituições. De
fato, eles moldaram implicitamente uma estrutura intelectual na qual o mercado
parece menos uma maneira pela qual as normas são impostas do que um espaço mais
eficaz para subvertê-las.
O próprio Friedman não tinha
descrito o mercado como um genuíno “sistema de representação proporcional”,
protegendo as preferências das minorias através de sua “ausência de coerção”?
No mercado, ele argumentou, “cada homem pode votar”, “pela cor do laço que
deseja e obtê-lo; ele não precisa ver que cor a maioria deseja e, em seguida,
se é minoria. “Produzindo conformidade sem unanimidade, o mercado também
poderia ser um espaço menos coercitivo para experimentos em estilos de vida
alternativos. Isso geralmente assumia a forma de modos alternativos de consumo,
oferecendo maneiras de promover a “mudança social” por meio de escolhas
individuais e éticas.
Implícita e explicitamente, parte
da esquerda participou da divulgação dessa falsa dicotomia. O Estado de
Bem-estar do pós-guerra era altamente normativo e visava moldar a estrutura
familiar em torno do ganha-pão masculino e do operário fordista. Mas, por
definição, e talvez essa seja uma das principais tarefas intelectuais para nós
hoje, todas as políticas – estatistas ou neoliberais – são normativas. Se
decidirmos conceder a todos uma renda básica em vez de assistência médica
gratuita, substituiremos uma certa normatividade (que define certos assuntos
através de certos “direitos sociais”) por outra (que faz da “escolha
individual” no mercado a prioridade). O mercado não levou a uma sociedade menos
normativa, mas apenas àquela em que o domínio da normatividade era ainda mais
desigual.
O abandono, por parte da
esquerda, do projeto de imaginar e construir instituições coletivas dedicadas à
criação da boa sociedade é um componente crucial da nossa situação atual. É no
vazio deixado pelo “neoliberalismo progressista” que prosperam os trunfos do
mundo. Em outras palavras: se Wendy Brown tem razão em apontar o fracasso do
neoliberalismo em se livrar do político e do social, ela captura apenas metade
da imagem.
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