Miguel Guedes | Jornal
de Notícias | opinião
O episódio protagonizado por
Ferro Rodrigues, repreendendo André Ventura pela excessiva utilização das
palavras "vergonha" e "vergonhoso" em plena Assembleia da
República (AR), é um exemplo do que não deve ser feito para sinalizar maus
comportamentos e desmascarar fraudes.
O processo de vitimização é uma
alavanca de protagonismo para qualquer demagogo. O presidente da AR, com toda a
sua elevação e experiência política, sabe-o. Até porque essa percepção decorre
da natureza das suas funções e das razões que o levaram a ser eleito. Daí que
tenha faltado a Ferro Rodrigues, naquele momento de visível irritação, a
moderação que todos os democratas têm que apresentar como cartão de visita no
combate aos populistas: inteligência, "timing" e alguma dose de
contenção.
Não é fácil. Cada vez mais, uma
das questões do debate em democracia passa por saber lidar com questões tão
dramáticas como a demagogia extremista, o recrudescimento do fascismo, o
negacionismo das alterações climáticas ou os crescentes episódios de racismo de
cor ou de género. Para além da carta, é fundamental que atentemos ao envelope.
A indústria de fake news ao serviço dos piores interesses da história não quer
saber da condenação da humanidade. Pelo contrário, alimenta-se e multiplica-se
pela desinformação, mentira e sentimento de pertença das futuras vítimas. A
incapacidade do sistema em cuidar das suas franjas, ostracizando-as para uma
periferia política onde não encontram respostas senão no discurso populista da
"vergonha", não pode ser potenciada pela vontade de repreender
moralmente um mentiroso. Não há moral que se ensine a um demagogo.
Ao contrário de Ferro Rodrigues,
António Costa já parece ter percebido. A forma como confrontou Ventura com
sentido de humor e relativização, expondo-o às suas próprias contradições, pode
ser usado como manual de utilização de gelo no inferno. Fosse a Comunicação
Social e a opinião pública tão escrutinadora às mentiras de Ventura como foi
para com a roda à Livre de Joacine, saber-se-ia que não há memória de tanta mentira
em tão pouco tempo. Em meia dúzia de meses, de "Basta" a
"Chega", o deputado dá literalmente sumiço ao programa político pelo
qual foi eleito, defende coisas radicalmente diferentes relativamente ao SNS
num abrir e piscar de olhos, dá a cara por valores opostos aos que defendeu na
sua tese de mestrado, retira aproveitamento político sem qualquer pudor de uma
manifestação das forças de segurança, está envolvido numa eventual fraude de
assinaturas na constituição do seu próprio partido e lida com acusações de
ilegalidades pelos seus fundadores, usa truques venenosos na AR sobre a questão
dos coletes policiais, lança atoardas ridículas sobre os "precários do
Governo", não explica de onde veio tanto dinheiro para uma campanha com
tão baixo orçamento e tanta propaganda nas ruas. Só com informação crítica se
combate a falta de vergonha quando nos servem tanta mentira, vazio e veneno.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
*Músico e jurista
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