Quatro meses depois dos protestos
que abalaram projeto neoliberal, direita tenta contraofensiva: leis severas,
prisões em massa, soda cáustica sobre manifestantes. Mas maioria, que já perdeu
o medo, aposta na Constituinte — e segue nas ruas
É
possível que estejamos assistindo à queda de um regime, ao fim da democracia
representativa. É possível que tenhamos dado um passo para além da
pós-democracia e já nos encontremos em uma espaço político murado. A democracia
liberal, que nunca foi muito democrática, e hoje todo o Chile já sabe disso, se
transforma em novas estruturas para proteger aquilo que sempre cuidou: o regime
oligárquico instalado há mais de 40 anos.
O sistema político dos últimos 30
anos, aquela democracia de baixa intensidade útil para os anos de transição da
ditadura à ordem de mercado binominal, não foi capaz de dar uma resposta
política às demandas atuais da população. Aquele regime incorporou e
internacionalizou a crise social como uma crise política. Não uma crise de governo,
mas de toda a estrutura política, desde suas bases enraizadas nos poderes
financeiros, extrativistas e comerciais – com a Penta [holding que lucra, entre
outros, com a Previdência Social no Chile] e a SQM [maior produtora de lítio do
mundo] na ponta do iceberg neoliberal – ao governo da vez e toda a casta de
parlamentares, inclusive seus satélites e parasitas. Uma classe que se fechou
em si mesma.
A história no Chile avança
apavorada. E a política, que não é o político, convenhamos, solta suas âncoras
para frear seus privilégios. Sem vergonha alguma, como se fechasse os olhos em
um cinismo sem limites, se pode negar e mentir diante daquilo que é mais
evidente. É isso o aconteceu nos últimos dez dias. O Senado rechaçou uma
legislação sobre a água como bem público e manteve a propriedade do recurso
como ativo comercial e, na semana seguinte, aprovou mais cadeia para os
manifestantes em suas diversas expressões, como a lei antissaques e
antibarricadas.
Sebastián Piñera anunciou uma guerra
após o estrondoso outubro. E está cumprindo sua advertência. Sem responder
nenhuma das reivindicações sociais, sua única ação é na área policial. As
violações aos direitos humanos, denunciadas por várias organizações como a
Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e a ONU, aumentam sob proteção do
governo e de todo o aparato institucional, como o Poder Judiciário, o
Parlamento e os meios de comunicação, imbricados com os interesses políticos e
económicos.
Nesses dias houve situações
gravíssimas como carabineros [polícia chilena] que usaram líquidos irritantes
[como soda cáusticas] contra os manifestantes e sequestros de ativistas por
civis, incidentes só denunciados através das redes sociais e que não foram
condenados ou explicados por nenhuma autoridade.
O Chile avança com rapidez, ou
talvez já esteja em anomia política. Uma classe política obcecada pela defesa
de seus privilégios e de seus financiadores, e um povo cada dia mais vulnerável
e violentado. A cada dia, somam-se mais feridos, mutilados e encarcerados — que
já são milhares — sem que nenhuma autoridade se importe. Anomia e também
polarização. Uma classe dominante fundida com as bases e redes do poder e uma
população nas ruas e nos territórios cada dia mais sozinha e abandonada.
No dia 14 de novembro, essa
classe política buscou uma saída para a crise social com um chamado ao processo
Constituinte. Tudo isso está em marcha para o plebiscito inicial em 26 de
abril. Um plano básico, que ninguém sabe muito bem como terminará, e já mostra
suas debilidade. Não apenas é pouco, ou nulo, o interesse despertado pelo
processo na população mobilizada, como também em quem o convocou.
O acordo Constituinte foi um
pacto entre a classe política com o apoio e a bênção de outros poderes na
sombra. Um consenso entregue à cidadania, mas basicamente um acordo entre
aliados. Hoje, a pouco meses do processo, a direita negou sua assinatura. Aqueles partido que nasceram à sombra da ditadura voltaram a suas origens e já
anunciaram que votarão contra a ideia de uma nova Constituição. A direita
chilena, oligárquica, conservadora e pinochetista defende o que é seu, aquela
Constituição e normas que consagraram a mercantilização do país, a concentração
da riqueza e o empobrecimento de todas as classes subalternas. Se há crise
social e reivindicações, se resolve com ordem.
Anomia, autoritarismo e perda
gradual e persistente dos direitos civis. A repressão desatada e permanente se
soma a perseguição de ativistas e dirigentes sociais, projeto de lei para
limitar o direito a se reunir, acusações com bases falsas, falhas tendenciosas,
notícias insidiosas, críticas infundadas e ofensas a líderes sociais feitas por
grandes meios de comunicação. Uma clima de polarização que não oferece saída.
Uma classe entrincheirada na defesa do modelo de mercado e seus privilégios e
um povo com sua paciência nos limites.
Esse ambiente político, de
negação e incompetência, é uma convocação a todos os demônios. Por certo, os do
autoritarismo e do fascismo, mas também os que podem convocar uma população por
tantos anos e gerações humilhada, difamada e desesperada.
Não há muro em vila e cidade
chilena que não esteja alinhada com reivindicações sociais, não há ruas ou
estradas em que não se tenha levantado uma barricada. Uma população que perdeu
o medo é também um povo preparado para a luta. Para todas as formas de luta.
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