Greve geral alastra-se,
transborda sindicatos e coloca em xeque o governo Macron. Ao defender
aposentadorias, manifestantes rechaçam lógica da mercantilização. Adesão vasta
e radicalidade sugerem: pode vir aí novo desafio à ditadura financeira
Gabriel Rockhill, no RED – Radical
Education Department | Tradução: Antonio Martins para Outras Palavras
O trabalho e o capital estão
rangendo os dentes na França. À medida em que uma greve aberta lançada
em 5 de dezembro para combater uma contrarreforma neoliberal do sistema de
aposentadorias continua a se expandir, o governo do presidente Emmanuel Macron
esforça-se para defender as vantagens que a mudança traria para os mais ricos
(ainda que tenha sido forçado, há pouco, a apresentar o que chama de um “compromisso” com
a liderança sindical). Para compreender em profundidade a natureza e
importância da batalha, ele precisa ser situada em relação à história recente
do movimento dos Coletes Amarelos, e com o contexto geral da luta de classes
contemporânea.
Macron, um ex-dirigente de banco,
chegou ao poder em 2017, como um suposto baluarte do centro, contra a extrema
direita da Frente Nacional. Seu governo precisa, portanto, ser compreendido
como parte de um movimento mais amplo, que pressiona a política eleitoral para
a direita. Sua “reforma” do sistema de aposentadorias traduz-se em medidas como
o aumento da idade mínima para aposentadoria (de 62 para 64 anos) e a redução
do valor dos benefícios (calculados com base na média dos salários recebidos em
toda a vida laboral do trabalhador – inclusive os mais baixos). Dissolvem-se os
42 diferentes programas de aposentadoria hoje existentes, reduzidos a um
sistema único, que diminui de forma aguda os benefícios de muitos
trabalhadores). Os distintos programas atuais, que incluem vantagens com a
aposentadoria antecipada, foram resultado de lutas árduas dos empregados em
funções perigosas ou extenuantes. Em termos práticos, a mudança proposta seria,
portanto, pesaris sobre as costas dos trabalhadores – obrigados a trabalhar
mais anos, com menos vencimentos e segurança –, poupando de impostos as
corporações e os mais afortunados (o governo Macron é conhecido por ter
abolido, em 2017, o imposto francês de solidariedade, que incidia sobre os
ricos).
Forçado pela greve, o primeiro
ministro Édouard Philippe anunciou há dias que o governo pretende retirar
temporariamente a elevação da idade mínima para aposentadoria. Mas o fez
mantendo o resto da contrarreforma e impondo um corte orçamentário de 12
bilhões de euros no sistema de aposentadorias. Não se trata de um compromisso real
e sim de um ato de teatro político para apresentar o governo como aberto à
negociação, atrair a liderança sindical para uma armadilha e qualificar os
grevistas como intransigentes, irracionais e antidemocráticos). Além disso,
quando se vê a proposta em suas entrelinhas, fica clar que ela não altera quase
nada do plano originalo. Como explicou
Damien Bernard, “o texto da lei governamental estabelece um “equilíbrio
etário de longo prazo”, que permitirá, no sistema de aposentadoria baseado em
pontos, elevar a idade de aposentadoria de acordo com a expectativa de vida,
mas também os parâmetros orçamentários inerentes ao sistema, que levam a uma
redução geral das aposentadorias diante do orçamento”.
Os trabalhadores do Sistema
Nacional de Estradas de Ferro (SNCF) e da rede de transportes públicos de Paris
(RATP), que têm direito a planos de aposentadoria “especiais”, estão à frente
da greve. O movimento já é o mais longo “período
contínuo de ativismo na história da empresa estatal de ferrovias”.
Diversas centrais sindicais – inclusive as duas maiores, CGT e CFDT – aderiram.
Também pararam trabalhadores públicos e privados dos setores de transportes,
educação, saúde, saneamento, cultura, energia e comunicações. Trens e metrôs de
todo o país estão quase paralisados. Muitos voos foram cancelados. As oito
maiores refinarias de petróleo da frança pararam as atividades. Mais de cem
escolas e universidades foram fechadas – em muitos casos, com ocupações. Mais
de 1,5 milhão de pessoas já saíram às ruas em protestos. Com aprovação
popular de 61%, já é agora “a maior
greve geral desde maio de 1968, quando toda a economia foi paralisada
por estudantes e trabalhadores, numa vasta revolta contra o governo”.
Esta greve aberta desenvolve-se
no contexto do movimento dos Coletes Amarelos, que começou no outono francês de
2018 e cresceu nos calcanhares de outros movimentos sociais importantes – entre
eles as grandes mobilizações pelo aniversário
de maio de 1968 (em 2018) e o movimento Noites
Despertas [Nuits Dobout], em 2016. Construído por fora dos sistemas
clássicos de representação, como os partidos políticos e os sindicatos, o
movimento dos Coletes Amarelos introduziu formas
de luta inovadoras e combativas e ambições políticas ampliadas – bem
além dos confins estreitos de “reivindicações” circunscritas. Muitos Coletes
Amarelos [Gilets Jaunes] participam da greve de agora, e diversos
analistas referiram-se ao fenômeno como giletjaunização. Há, de fato,
um processo de autonomia ampliada, solidariedade expandida e radicalização, no
qual os trabalhadores organizam-se por si mesmos, rompendo as fronteiras entre
múltiplos setores. Há também uma escalada das lutas além das demandas imediatas
para anular a contrarreforma. Nas palavras lúcidas de
Yves Saintemarie, um aposentado e participante da greve, “não é só uma questão
de aposentadorias. Tem a ver com as pessoas vivendo em pobreza e precariedade.
Sou um Colete Amarelo e um sindicalista e é indispensável que nossas lutas
convirjam. Precisamos derrubar um governo que nos mata”.
Na greve, os trabalhadores
bloqueiam vias e fecham lugares turísticos. Os bombeiros esguicharam prédios
governamentais em protesto. Os petroleiros articularam um bloqueio de 96 horas
das instalações de combustíveis, o que impediu que produtos entrassem ou
saíssem das refinarias, terminais petroleiros e tanques, e cortou o transporte
de derivados de petróleo em todo o país. Os trabalhadores em energia
restabeleceram o suprimento para bairros pobres, com valores reduzidos,
enquanto cortavam, simultaneamente, a eletricidade de prédios estatais,
estações de polícia, shopping centers e sedes de corporações. Membros do Ballet
de Paris aderiram à greve e organizaram uma performance pública de Lago
dos Cisnes na véspera do Natal, para expressar solidariedade. Tais atos
criativos, e outros semelhantes, dão corpo à postura de ação direta, “organize
você mesmo”, que se espalhou enquanto se desenrolava o movimento dos Coltes
Amarelos. Elas também demonstram a importância dos bloqueios e do controle das
redes de transportes e energia pelos movimentos sociais contemporâneos.
O governo Macron tem razões de
estar amedrontado com a greve, devido a uma história relativamente recente de
mobilizações bem sucedidas. Em 1995, foram necessárias apenas três semanas para
que uma greve forçasse o primeiro ministro Alain Juppé a desistir de suas
propostas de cortes. O recuo enfraqueceu de modo significativo o presidente
Jacques Chirac e seus trunfos para impor as contrarreformas neoliberais da
época. Se o movimento atual conseguir bloquear a contrarreforma das
aposentadorias, será muito mais difícil para Macron impor outras políticas
neoliberais. Não surpreende, portanto, que as respostas do governo aos
protestos estejam totalmente afinadas com a natureza dupla da dominação
pseudo-democrática sob o capitalismo global. De um lado, retórica política
falsa; de outro, recusa a mudar de rumo e uso da repressão brutal do Estado.
Esta estratégia dual, que busca manter hegemonia entre os setores acomodados da
população enquanto despeja repressão sobre os demais, é uma constante em seu
governo, como ilustra o uso de violência incessante contra
os Coletes Amarelos.
O ataque de Macron contra as
aposentadorias é, evidentemente, apenas um passo amais em sua investida contra
os serviços sociais, para impor a agenda do capitalismo transnacional. Sob o
grotesco eufemismo de “austeridade”, o projeto consiste em implementar
políticas que concentram a riqueza entre os já favorecidos, transferindo mais
custos da reprodução social para os trabalhadores e intensificando a
exploração. Macron é somente um implementador tecnocrático a mais, no palco
global, como claramente ilustra uma declaração
recente do comissário europeu Therry Breton. Este empresário
milionário, ex-ministro das Finanças da França, explicou que a Comissão
Europeia considera o projeto de Macron “necessário” – assim como outras
contrarreformas no continentes. Quis dizer que outros países europeus deveriam
ser submetidos ao mesmo tipo de medidas antilaborais.
A crise de credibilidade do
governo Macron está, portanto, conectada com uma crise de legitimidade mais
ampla, que atinge um sistema internacional de governos pseudo-representativos,
agindo em favor da oligarquia financeira. Como explicou William I. Robinson em
livros como Global
Capitalism and the Crisis of Humanity [Capitalismo Global e a Crise da
Humanidade] a elite globalizada buscou estabelecer um consenso neoliberal
na era da globalização. Ela foi bem sucedida, em integrar os escalões
superiores da sociedade e seus intelectuais orgânicos, por meio de recompensas
materiais e ideológicas. Mas o sistema global de acumulação capitalista minou
as bases de uma dominação hegemônica mais vasta, ao retirar das classes
populares a base material necessária para seu consentimento. Neste aspecto, o
largo descontentamento com o “governo dos ricos” de Macron é indicativo da
crise de legitimidade da elite tecnocrática global.
A greve francesa é parte de uma
série de movimentos radicais que varre o globo – do Chile e Haiti ao Líbano, à
Índia e muito além. Alguns analistas identificaram estes levantes como um novo
ciclo de luta revolucionária, que revigora e desenvolve as batalhas das ocupações
de praças de uma década atrás. Embora uma análise completa desta sequência
revolucionária esteja muito além dos objetivos deste artigo, os movimentos na
França precisam ser compreendidos como parte de um processo planetário das
classes subalternas. A ilegitimidade do domínio capitalista torna-se cada vez
mais aparente. A desigualdade e a destruição da biosfera avançam como nunca. As
apostas são muito altas é há muitas similaridades táticas entre os movimentos.
Elas incluem, não só na França, organização autônoma por fora das formas
tradicionais de representação política e econômica; expansão das redes de
solidariedade além das estruturas estabelecidas, das vocações particulares e
dos status de emprego de cda um; ações focadas, protestos
“selvagens”, dias de luta e bloqueios – agora, mais numerosos que as ocupações
de praças públicas; e uma radicalização combativa que confronta diretamente o
Estado e o poder das corporações.
A situação da França deveria,
portanto, ser entendida como parte de uma luta transfronteiras contra a elite
global que nos domina. Se um governo apoiado pelas corporações for capaz de
esmagar a dissidência, ou se a liderança sindical contentar-se em aceitar
concessões menores, que já parecem ser possíveis, isso poderá representar um
retrocesso mais grave das lutas sociais. Se a greve continuar a se expandir e
desenvolver, e lançar seus olhos contra o “governo que nos mata”, vitórias
importantes estarão no horizonte. Eles poderão contribuiu para a luta
internacional contra um mundo cada vez mais desigual.
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