Miguel Guedes | Jornal
de Notícias | opinião
Espanta-me a facilidade com que
algumas pessoas ainda se espantam. E esta perplexidade cresce com o espanto que
tantos mostram pela vacuidade dos discursos oficiais de Ano Novo. Parece mesmo
um milagre a entrar pelo natal da porta dos fundos mas não duvidem: a plácida
expectativa de alguns relativamente às alocuções políticas de fim de ano é a
prova científica e material de que ainda há seres humanos crentes. Esqueçam as
igrejas. É nos sofás adventistas dos últimos dias que gente adulta espera pela
reaparição da boa nova no discurso de fim de ano de Marcelo Rebelo de Sousa,
simulando serem capazes de nele lerem o horóscopo político para 2020. É
inquietante e mágico em simultâneo. Mas tomem boa nota: se é incompreensível em
2019, será absolutamente inaceitável repetir o espanto em 2020. Já seria santa
ingenuidade.
Se consideraram assinalável o
grau de ternura da mensagem do presidente da República, imaginem o que aí vem
na mensagem de 2020, um mês antes das eleições presidenciais marcadas para
Janeiro de 2021. Toda uma peça delico-doce cravejada com um "mix" de
ansiedade pelo futuro, um bem próprio na antecâmara de um acto eleitoral,
enquanto brinda com António Costa, resgatando-lhe o apoio em troca da ajuda em
navegar com o equilíbrio institucional dispensado pelo primeiro-ministro após
legislativas. Episódios de contrariedade. Fruto dos anos de equilíbrio
artificial da geringonça e do calendário eleitoral 20/21 que lhe atira os votos
do PS para o regaço qual rosas em voo milagre, Marcelo terá mesmo que esperar
mais dois anos para soltar o animal político em Belém. O presidente da
República pode admirar a unanimidade do povo mas não se revê na unanimidade
política. Após tantos anos de banho forçado em águas tépidas, como serão as
mensagens festivas no segundo mandato presencial de Marcelo entregue à
liberdade da sua natureza? Esperemos, então, pela boa nova ou pelo homem novo.
Sendo assim, gozemos a paz. E a
saúde, claro está, essa nova urgência nacional redescoberta. Brindemos à
estabilidade. E não deixemos a natureza das coisas assumir o seu lugar, porque
ainda não é tempo da montanha ir a Maomé. A profecia de paz para 2020 está viva
e recomenda-se. Mas saibamos acolher a ideia de que tudo é relativo e de que há
mais desejos em 12 passas do que verdades no minuto final. Leio notícias de que
as crianças em São Tomé e Príncipe bebem mais álcool do que leite e nem por
isso São Tomé é um paraíso para vegans. Estejamos todos cientes de que o
caminho tem pedras e de que até o Papa Francisco acabou o ano de 2019 a bater
na mão de uma crente. A natureza é diabólica.
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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