sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Portugal | A paz, segundo Marcelo


Miguel Guedes | Jornal de Notícias | opinião

Espanta-me a facilidade com que algumas pessoas ainda se espantam. E esta perplexidade cresce com o espanto que tantos mostram pela vacuidade dos discursos oficiais de Ano Novo. Parece mesmo um milagre a entrar pelo natal da porta dos fundos mas não duvidem: a plácida expectativa de alguns relativamente às alocuções políticas de fim de ano é a prova científica e material de que ainda há seres humanos crentes. Esqueçam as igrejas. É nos sofás adventistas dos últimos dias que gente adulta espera pela reaparição da boa nova no discurso de fim de ano de Marcelo Rebelo de Sousa, simulando serem capazes de nele lerem o horóscopo político para 2020. É inquietante e mágico em simultâneo. Mas tomem boa nota: se é incompreensível em 2019, será absolutamente inaceitável repetir o espanto em 2020. Já seria santa ingenuidade.

Se consideraram assinalável o grau de ternura da mensagem do presidente da República, imaginem o que aí vem na mensagem de 2020, um mês antes das eleições presidenciais marcadas para Janeiro de 2021. Toda uma peça delico-doce cravejada com um "mix" de ansiedade pelo futuro, um bem próprio na antecâmara de um acto eleitoral, enquanto brinda com António Costa, resgatando-lhe o apoio em troca da ajuda em navegar com o equilíbrio institucional dispensado pelo primeiro-ministro após legislativas. Episódios de contrariedade. Fruto dos anos de equilíbrio artificial da geringonça e do calendário eleitoral 20/21 que lhe atira os votos do PS para o regaço qual rosas em voo milagre, Marcelo terá mesmo que esperar mais dois anos para soltar o animal político em Belém. O presidente da República pode admirar a unanimidade do povo mas não se revê na unanimidade política. Após tantos anos de banho forçado em águas tépidas, como serão as mensagens festivas no segundo mandato presencial de Marcelo entregue à liberdade da sua natureza? Esperemos, então, pela boa nova ou pelo homem novo.

Sendo assim, gozemos a paz. E a saúde, claro está, essa nova urgência nacional redescoberta. Brindemos à estabilidade. E não deixemos a natureza das coisas assumir o seu lugar, porque ainda não é tempo da montanha ir a Maomé. A profecia de paz para 2020 está viva e recomenda-se. Mas saibamos acolher a ideia de que tudo é relativo e de que há mais desejos em 12 passas do que verdades no minuto final. Leio notícias de que as crianças em São Tomé e Príncipe bebem mais álcool do que leite e nem por isso São Tomé é um paraíso para vegans. Estejamos todos cientes de que o caminho tem pedras e de que até o Papa Francisco acabou o ano de 2019 a bater na mão de uma crente. A natureza é diabólica.

*Músico e jurista

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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