Em saudação à “Iª
CONFERÊNCIA SOBRE A HISTÓRIA DOS ÓRGÃOS DE INFORMAÇÕES E SEGURANÇA DO ESTADO”…
Martinho Júnior, Luanda
Em humilde gratidão por todos os
que tornaram possível abrir essa página, que contraria frontalmente teorias que
consideravam que o neoliberalismo impunha o “fim da história”, ou pior
ainda, a sua “lavagem” para que se contassem “lendas e
narrativas” de seu estrito interesse e conveniência…
Numa gratidão especial ao
companheiro Mário Motta que aceitou este colaborador desconhecido que assinava
Martinho Júnior, no Página Um e no Página Global…
Em camaradagem e solidariedade
para com todos os que acreditaram que um dia ao menos a história, aquela
história contada pela boca e pela escrita dos que a viveram na linha da frente,
abrindo o rumo duma Pátria ávida de vida e de futuro, haveria que se contar…
Em incentivo para que essa saga
se alargue e a recolha de dados se abra com dedicação e amor a todo o espaço
nacional, sem deixar de mobilizar o tecido humano que a si próprio, afinal, tem
tanto para (re)descobrir, redescobrindo a lógica com sentido de vida que advém
do movimento de libertação em África…
Em honra a tantos heróis anónimos
da Pátria Angolana…
Relembro este texto escrito a 25
de Abril de 2011 e publicado dois dias depois pelo Página Global Blogspot…
Confesso que vivi!
A minha gratidão a todos aqueles
que possibilitaram viver dessa maneira!
OS HERÓIS ANÓNIMOS DA PÁTRIA
ANGOLANA
Martinho Júnior, Luanda
BURGUESES
Não me dão pena os burgueses
vencidos. E quando penso que vão
a dar-me pena,
aperto bem os dentes e fecho bem
os olhos.
Penso em meus longos dias sem
sapatos nem rosas.
Penso em meus longos dias sem
abrigos nem nuvens.
Penso em meus longos dias sem
camisas nem sonhos.
Penso em meus longos dias com
minha pele proibida.
Penso em meus longos dias.
- Não passe, por favor. Isto é um
clube.
- A relação está cheia.
- Não há vaga no hotel.
- O senhor saiu.
- Deseja uma mulher.
- Fraude nas eleições.
- Grande baile para cegos.
- Caiu o Prémio Maior em Santa
Clara.
- Lotaria para órfãos.
- O cavalheiro está em Paris.
- A senhora marquesa não recebe.
Enfim, toda recordação.
E como toda recordação,
que droga me pede você para
fazer?
Além disso, pergunte-lhes.
Estou seguro
de que também recordam eles.
(“Burgueses”, Nicolas Guillen,
poeta cubano, revolucionário e universal -
Tradução de Gilfrancisco
Santos)
Felizmente são muitos os heróis
anónimos da Pátria Angolana e mesmo assim, perdidos na multidão que se faz
Povo, eles são a reserva estratégica e segura do movimento de libertação, do
MPLA e são, com os olhos secos, com sua resistência feita de convicções, de
princípios, de comportamentos, de atitude e de consciência cívica, aqueles que
esperam e ao mesmo tempo aqueles por quem se espera, porque se a paz tivesse
alma, eles seriam suas partículas essenciais simultaneamente pujantes, viçosas,
solidárias, humildes e rebeldes… intemporais…
Sim, porque é preciso um misto de
humildade e de rebeldia para a paz: exigir mil vezes a dádiva de si próprio,
com amor, dignidade, solidariedade e espírito de justiça, para que alguma vez
seja exigido um pouco que seja dos outros… não há outra forma de mobilizar um
país, uma nação, um Povo do que pelo exemplo… nem houve outra forma de
mobilização para o movimento de libertação que não passasse por aí: com o
exemplo dos nossos maiores…
Também é preciso exigir-se que
essa rebeldia conscientemente aceite, seja uma renúncia aos caminhos do poder,
torne-se num “não poder”, não num contra poder, por que se impõe por aquilo que
“é”, não por aquilo que se “tem” por vezes da forma mais ignóbil e sempre da
forma mais efémera, mesmo que assim seja distante dum lugar onde se concentram
todos os holofotes, mesmo os que foram montados para cegar os incautos… e eles
em Angola são tantos: nascem do chão e em catadupas chegam de fora…
Admiro a filosofia dos Zapatistas
do México precisamente por isso: para eles o Comandante é o Povo e os chefes
são quanto muito Sub Comandantes.
Os patriotas e os cidadãos são-no
e sentem-no como o foram e se sentiram Amílcar Cabral, Agostinho Neto, o Che,
por que se tornam com seu exemplo intemporais…
Os patriotas são a contradição
vital para com os mercenários.
Alguns deles, pouco a pouco
apartam-se do mundo dos vivos, por que mais nada têm para dar no apogeu da
idade, deram tudo, renunciaram materialmente a tudo e passaram a ter um direito
maior: hoje seu corpo exige mais chão do que aquele chão que em sua vida
errante mas vertical seus pés pisaram.
Foram íntegros, honestos,
solidários, forjaram o sentido da vida, foram e são os homens do grande
resgate, do resgate da escravatura, do colonialismo, do fascismo, do
“apartheid” e do que hoje e adiante se verá: tinham e têm sede de liberdade, de
justiça, de democracia (não aquela que é mediatizada com tanto lucro) e de paz
social!
Mesmo dentro das fileiras,
aqueles que se renderam e passaram-se para as mercenárias fileiras, dizem para
se distanciarem dessa “peste”, por que eles são “comunistas” (é tão fácil
julgar os outros impondo-lhes os rótulos de conveniência)… mas eles em sua
defesa reclamam apenas: foi aqui e durante as últimas seis décadas a
universidade da vida, foi com anti fascistas e com o movimento de libertação
que nos fizemos árvore, foi com ele que nos afirmamos como homens, como
patriotas e reconhecendo sempre que, a passagem pela vida enquanto indivíduos,
era para honrar a vida, com respeito por si próprio, pela Mãe Terra e
plenamente identificados na solidariedade com os resgates em benefício do seu
Povo e de todos os Povos oprimidos, aqueles disseminados sobretudo nas
latitudes e longitudes da antiga (será mesmo antiga?) rota dos escravos…
Entre esses heróis anónimos da
Pátria Angolana componente de humanidade, tive a felicidade de encontrar alguns
companheiros angolanos e outros de outras nacionalidades, que pertenceram a
organismos da defesa e segurança, onde foram colocados pelo MPLA, antes da
independência, na primeira República e nas que se lhe seguiram, por que Angola
tem um caminho, que nunca foi um caminho fácil, um caminho pejado de
obstáculos, de “zigue zagues”, de “quedas na máscara”, de “recuos
estratégicos”, enfim de riscos, de incompreensões, de sacrifícios inglórios com
algumas pequenas vitórias e tantas, tantas derrotas, mesmo ao dobrar da esquina
mais próxima…
De um deles recolhi a seguinte
história que lhe pedi para publicar, respeitando a ocultação de seu nome e de
outros; eis o seu
DEPOIMENTO:
“Os organismos da Segurança do
Estado fizeram a 29 de Novembro de 2010, ano do começo da iniciativa tolerância
zero, 35 anos, tantos quanto a República de Angola.
De entre as muitas iniciativas os
SISE procuraram recolher depoimentos de muitos dos antigos membros da Segurança
do Estado, o que me parece ser uma iniciativa construtiva, para se continuar
nos tempos mais próximos, pois as novas gerações precisam de saber e avaliar o
que antes foi feito e muito em particular o que de essencialmente patriótico
foi feito.
De minha parte, há muitas coisas
que recordo dessa universidade da vida, uma universidade sem diploma, nem
outros pergaminhos, coisas duma escola de modéstia e de modestos que me parece
incontornável, plenamente identificada com a edificação da independência, da
soberania e do Estado Angolano e, de entre elas, entre aquelas que ao
estabelecerem pontes até aos nossos dias e até sempre me parecem exemplares,
recordo o rigor com que nos primeiros anos da República Popular de Angola os
oficiais da Segurança do Estado colocaram na defesa do Estado também pela via
da defesa do seu património, por respeito e responsabilidade ética e cívica
para com os bens do Povo Angolano.
No património, nos bens e
equipamentos do nosso Estado ninguém tocava por que eram reconhecidos como bens
do Povo Angolano!
Como nos poderíamos identificar
com o Povo Angolano se não soubéssemos respeitar os bens disponíveis no âmbito
das atribuições do nosso Estado?
Os oficiais com consciência
revolucionária, com espírito cívico, com ética e moral, faziam tudo para
consolidar o Estado sabendo de antemão que as enormes potencialidades
disponíveis em Angola não se poderiam tornar em armadilha para algo que estava
acima de qualquer riqueza mundana: a riqueza de participar num processo único
de resgate de séculos de opressão, séculos que passaram pela escravatura, pelo
colonialismo, pelo fascismo e pelo apartheid, até se chegar àqueles dias
épicos, com cabeça fria, coração ardente e as mãos limpas perante o nosso Povo,
de todos os Povos da África Austral e do Mundo.
O Presidente Agostinho Neto
decidiu logo em 1976 dar início ao processo de combate ao tráfico de diamantes,
pois esse tráfico prejudicava a economia da República Popular de Angola e a
construção duma sociedade alicerçada no equilíbrio, na busca pela justiça social…
Nessa altura foram detectados e
neutralizados, nas suas acções, muitos traficantes, uns de origem europeia,
outros de origem africana, angolanos incluídos.
Era regra para os oficiais da
Segurança do Estado coligir tudo o que estivesse integrado nesse tráfico, desde
os diamantes até aos valores em bens, equipamentos e numerário disponíveis para
as operações dos traficantes, entregando aos organismos competentes que os
arrecadavam de acordo com os conceitos de respeito pelo património público e aquele
tornado público, incluindo logicamente tudo que se apreendia.
Pelas minhas mãos, confesso que
vivi, passaram desde logo riquezas incalculáveis, riquezas essas que levaram o
caminho próprio dos homens dignos que éramos.
Chegaram-se a apreender veículos,
barcos e até aviões, por exemplo, os teco teco da empresa de táxis aéreos que
dava pelo nome de ALAR…
Na operação levada a cabo em que
foi detido um velho traficante, que então morava no bairro de Alvalade, entre
as apreensões contou-se mais de trinta mil contos na moeda ainda em vigor,
(ainda não existia Kwanza, apesar da tomada da banca e o Escudo Angolano, moeda
colonial, ainda tinha validade).
Recebi ordem para se entregar
essa apreensão em dinheiro, na sua totalidade.
Os caixotes com o dinheiro
desembarcaram assim directamente na então DISA e a quantia foi suficiente para
se pagar o primeiro salário de todo o efectivo dessa Instituição, de Cabinda ao
Cunene.
Foi esse o primeiro salário de
todo o colectivo da DISA, o primeiro salário que contribuiu para compensar
alguns de muitos anos de dádiva e penúria voluntariamente aceite nos trilhos da
luta de libertação!
Todos nós, os revolucionários e
os honestos, sentimo-nos empolgados com as orientações recebidas e com a
prática tão consequente e pedagógica que estávamos a ter, que nos marcaria para
toda a vida.
Alguns daqueles que foram caindo
em tentações, com o tempo foram tendo dois caminhos: ou fugiam de Angola, ou
então eram detectados e neutralizados nas suas acções, de forma a que os
castigos administrativos fossem exemplo para os demais, como eram exemplo as
boas práticas.
Eu poderia ter sido um dos
primeiros ricos deste país se tivesse traído de alguma forma os ideais e os
princípios do movimento de libertação e a construção da República Popular de
Angola, mas a impossibilidade de tentação para com as riquezas do Estado
Angolano perdurou precisamente assim até 1986, ano em que se decidiu alterar o
carácter das Instituições do Estado Angolano, se alteraram as opções de tantos…
e eu, não por acaso pioneiro da luta contra o tráfico de diamantes, nesse ano
de charneira fui preso, julgado e condenado a prisão maior em Bentiaba, num
processo que de uma maneira ou de outra atingiu em cheio tantos dos quadros da
nossa Segurança de Estado!... a história nos absolverá!...
Hoje alguns comentam em voz baixa
e entre outros comentários depreciativos que me abstenho aqui de evocar: eles
foram burros, não souberam aproveitar!…
De facto se não o expressam,
esses alguns pensam e por isso agem de maneira contrária aos procedimentos dos
oficiais revolucionários que deram a sua contribuição honesta, modesta mas tão
consequente para o hastear de nossas bandeiras e propiciar heranças de vida às
gerações vindouras!
Não os invejo com meus olhos de
paz a esses alguns (quantos deles tornados hoje em senhores e excelências) na
sua soberba, ostentação, opulência e arrogância, por que não é com o egoísmo
próprio desse tipo de gente, sem responsabilidade ética e sem solidariedade,
que se constrói um Estado democrático digno e uma Pátria de cidadãos
exemplares!
Por isso hoje, tendo em atenção a
preocupação pela necessidade de tolerância zero, não posso deixar de lembrar o
que se aprendeu nessa universidade que foi desde logo as FAPLA e a Segurança do
Estado: a prova de vida pela honestidade e a modéstia é a riqueza inestimável,
produtiva e fundamental para se ousar alimentar a sede de Pátria e de
Humanidade!
Numa era em que o acesso aos
diamantes é para muitos o passo ideal para integração em novas elites,
pretende-se fazer esquecer que foi com aqueles burros que se construíram os
caboucos da Angola daquela época e de sempre!
Por isso acho ainda hoje que, para
que haja tolerância zero, devemos tudo fazer para não sermos contaminados como
o foram, o são e o serão, o novo tipo de burgueses que responde de forma tão
mercenária aos estímulos de cobiça e riqueza que chegam em catadupa de fora!”
ANOTAÇÃO FINAL:
Creio que se torna cada vez mais
premente escrever a história de Angola com todas as suas extraordinárias
envolvências por mais ignoradas que elas ainda sejam, bem como a história de
suas Instituições.
Depoimentos como esse parecem-me
ter bastante conteúdo humano, histórico e pedagógico: é necessário dar
continuidade aos resgates históricos e não conduzir, agora que é possível a
ausência de tiros, o regresso a qualquer tipo de barbárie (é por vezes tão subtil
e “sem fronteiras” a manipulada barbárie neocolonial).
Julgo que com essa aceitação de
necessidade se marca a diferença nesta encruzilhada em que nos encontramos,
precisamente quando se acentua, quantas vezes através de electrónicas
ingerências externas, um propositado quão manipulado conflito de gerações.
Em Angola, que se dê prioridade
ao homem, que se cultive nele e com ele efectivamente o “ser”, por que o país é
tão escandaloso, sob o ponto de vista geológico e material, que é muito, muito
fácil o “ter”, ainda mais no momento em que há tantos Diogo Cão que vão
chegando de todos os pontos cardeais e colaterais da Terra atraídos pelas
“minas de Salomão”: nem que se tenha de se amarrar o navegante ao mastro, para
ouvir o canto das sereias, sem lhes cair na tentação!
Trinta e sete anos depois do 25
de Abril, há resgates que mais que nunca são comuns aos povos (e eu refiro-me
aqui em particular aos povos componentes da CPLP), que têm indeléveis marcas
socioculturais e aspirações ideológicas e políticas que cada vez mais se
aproximam e inter relacionam!
Não desperdicemos as respostas
adequadas aos desafios que se nos colocam, com cidadania responsável,
participação e a rebeldia de quem reconhece que a liberdade, ou é para criar
oportunidades solidárias para todos, ou não o é!
*Martinho Júnior em Abril, que em
Angola é o mês da Juventude
Imagem: quadro de Malangatana
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