O acordo assinado por Washington
foi estabelecido para tentar mitigar o mútuo desgaste de guerra. Permite à
Administração Trump usar eleitoralmente a promessa de fazer regressar os “boys”
a casa.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
Consta dos anais diplomáticos dos
finais dos anos sessenta do século passado que os Estados Unidos reconheceram a
sua derrota militar no Vietname a partir do momento em que cederam perante as
partes vietnamitas na discussão sobre o formato da mesa de conversações em
Paris – que, na prática, reconheceu o Governo Revolucionário Provisório do
Vietname do Sul. Cinquenta anos depois, a assinatura de um acordo com os talibã
em Doha, no Qatar, é a confissão da derrota norte-americana na sua mais longa
guerra, a do Afeganistão. Uma derrota que não é apenas dos Estados Unidos mas
também da NATO – logo dos próprios governos que integram a aliança.
Em Portugal, como de costume,
assobia-se para o lado e prefere saudar-se o hipotético fim de uma guerra que,
na prática, não é o fim de uma guerra mas um esforço dos agressores para salvar
o que for possível, de maneira a garantir a continuação da presença num país
que é chave para influir na Ásia Central. O Pentágono, aliás, não esperou mais
do que escassas horas para explicar isso mesmo ao bombardear um suposto
«esconderijo» talibã na província de Helmand e garantindo a seguir, no mais
puro léxico atlantista, que se tratou «de um ataque defensivo».
O acordo com os talibã, a que se
juntam os «anexos secretos» cuja existência já foi confirmada pela parte
norte-americana, é uma confissão de derrota militar, a que o secretário da
Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper, preferiu chamar eufemisticamente
«impasse estratégico». Muitos estarão ainda lembrados que, em Outubro de 2001,
George W. Bush e a sua corte prometeram cumprir em escassos dias os objectivos
prometidos com a invasão do Afeganistão: liquidar Bin Laden, destroçar os
talibã e instaurar «a democracia» no país.
Dezoito anos e alguns meses
depois, os Estados Unidos têm 13 mil soldados no terreno, sem contar com os
efectivos dos outros países da NATO e os mercenários das empresas de segurança
contratadas. Os talibã controlam maior percentagem de território do que em
2001. A «democracia» assenta na fraude e na corrupção e está reduzida à
capital, Cabul. As forças militares e de segurança afegãs criadas, financiadas
e treinadas pela NATO são um fiasco quando enfrentam as dos talibã. Grande
parte do país foi devastado e nada foi reconstruido. A única coisa que
floresceu entretanto, e muito, foi o tráfico de heroína produzida a partir do
ópio afegão.
Uma trégua bilateralmente
conveniente
O acordo assinado por Washington
com o grupo que, nos seus primeiros tempos, era conhecido como o dos
«estudantes de teologia», uma organização armada islâmica associada à etnia
pashtun – dominante no Afeganistão – e que emergiu do magma mujahedin criado pela
CIA para combater os soviéticos, foi estabelecido para tentar mitigar o mútuo
desgaste de guerra. Em primeira instância, permite à Administração Trump usar
eleitoralmente a promessa de fazer regressar os boys a casa – na
realidade apenas um terço dos efectivos, 4400 em 13 mil – e dentro de um ano e
meio; além disso, funcionando efectivamente como «trégua», poderá permitir uma
acentuada quebra nas baixas militares e mercenárias, além de um significativo
abrandamento do clima cáustico na comunicação social em relação ao arrastamento
da guerra sem quaisquer perspectivas de solução militar. No imediato, o acordo
serve para tentar retirar o fracasso militar afegão dos temas quentes do
período eleitoral norte-americano.
Nada disto disfarça que o acordo
seja, de facto, aquilo que é: uma confissão de derrota dos Estados Unidos sem
discutir sequer – ao que se saiba – o formato da mesa utilizada em Doha.
Em termos gerais, o acordo
estabelece uma trégua durante a qual decorrerão «negociações intra-afegãs»
sobre o futuro do país. Um período em que virão ao de cima as contradições
entre zonas de influência tribais, étnicas e paramilitares sendo que não está
excluída a possibilidade de o Hezb-i-Islami (Partido Islâmico), apoiado pela
Arábia Saudita e o Paquistão, entrar em confronto armado com os talibã.
O Irão foi «esquecido»
Outro aspecto que torna o acordo
de Doha um arranjo transitório e parcial é o facto de ter ignorado em absoluto
a componente iraniana do problema afegão, quanto mais não seja pelo facto de o
Irão acolher 3,5 milhões de refugiados do Afeganistão.
Uma omissão que não decorre
apenas no antagonismo cego de Washington em relação ao Irão: tem igualmente a
ver com o objectivo norte-americano de estancar a crescente influência russa e
chinesa sobre os talibã e o Afeganistão – cuja principal porta de entrada é
Teerão. Daí que o acordo de Doha tenha implícita uma redução irreal dos
assuntos afegãos ao binómio Estados Unidos-talibã, ou seja, na tradicional
perspectiva norte-americana, uma tentativa de Washington para «comprar» o seu
principal inimigo militar e convertê-lo em instrumento de influência – como
aconteceu durante os anos noventa.
Um dos «anexos secretos» cujo
conteúdo tem transpirado confirma que a negociação de «vantagens mútuas» é uma
das componentes do processo bilateral. Estabelece que a CIA tem permissão para
fazer negócios em áreas controladas pelos talibã; por outras palavras, a
agência pode continuar a superintender o grandioso maná da cultura de ópio,
produção e tráfico de heroína com o qual financia as suas operações
clandestinas através do mundo. A produção de ópio e a quota de participação do
Afeganistão no tráfico de heroína têm aumentado de maneira permanente e até
exponencial desde o início da invasão da NATO, em 2001, segundo relatórios
oficiais das Nações Unidas.
A moeda de troca para convencer
os talibã poderá ser o investimento norte-americano no desenvolvimento pacífico
do Afeganistão – com repercussões no controlo sobre a Ásia Central – através de
projectos de integração internacional recentemente criados em Washington para
tentar rebater as acções chinesas e russas no âmbito da Iniciativa Cintura e
Estrada (ICE) de Pequim e da Organização de Cooperação de Xangai, que agrega as
duas potências e na qual o Irão tem estatuto de observador – podendo tornar-se
membro permanente em breve. Um Afeganistão pacificado como base de influências
sobre a Ásia Central e zona de passagem das novas rotas comerciais entre o
Oriente e o Ocidente são perspectivas naturais, mas a muito longo prazo e ainda
periclitantes, do acordo assinado em Doha.
As duas partes signatárias estão
visivelmente a tactear terreno, cientes de que as perspectivas de evolução
militar não garantem as suas ambições. Ambos os lados tentam ganhar tempo
através de concessões menores e um status quo menos desgastante, mas
sem terem abandonado formalmente os objectivos que significam a vitória no
conflito: do lado talibã, a retirada total das tropas norte-americanas e da
NATO; do lado norte-americano e da NATO o estabelecimento no país de uma
situação política e militar respeitadora da ordem imperial e a manutenção da
sua presença militar no terreno.
Quando os povos contam
O acordo pode ser um passo
intermédio para coisa nenhuma a não ser a continuação da guerra, situação que é
do agrado do poderoso ramo militar do establishment norte-americano.
A sua assinatura por Washington,
ainda que por questões tácticas e de circunstância, representa, porém, uma
confissão de derrota da potência imperial e respectiva corte de aliados
militares formando a aliança agressiva com maior poder militar da história da
humanidade.
Tal como há 50 anos no Vietname e
agora no Iraque, na Síria e, por maioria de razão, no Afeganistão, prova-se que
a força bruta pode não chegar contra exércitos ou organizações enraizadas nos
povos que se defendem das agressões.
Não são comparáveis as estruturas
patrióticas vietnamitas e os grupos talibãs. Não restam dúvidas, porém, que
vitória da resistência popular vietnamita se deveu à sua forte ligação às
populações de todo o país, das quais era, de facto, uma emanação. No
Afeganistão, nem todos os pashtuns são talibãs mas quase todos os talibãs são
pashtun, a etnia dominante no país. E os pashtuns têm uma longa história de
afirmação soberana e de absoluto inconformismo perante a arrogância e os
poderes estrangeiros que tentam impor a sua força. Neste aspecto, as situações
vietnamitas e afegã são indubitavelmente comparáveis.
Os Estados Unidos e a NATO não
aprendem, continuam a minimizar a capacidade de superação dos povos e a
considerar que podem escrever a História ao ritmo dos interesses potencialmente
criminosos das elites que servem. Puro engano, como ficou de novo à vista agora
em Doha.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Imagens: 1 - Um afegão chora o
seu irmão, morto num ataque aéreo da NATO, na província de Jalalabad,
Afeganistão, a 5 de Outubro de 2013. Pelo menos cinco civis foram mortos
durante esse ataque, acusou o porta-voz do governo provincial afegão. A
intervenção militar da coligação militar liderada pelos EUA foi acusada de
causar um número desproporcionadamente alto de baixas civis CréditosParwiz
/ Reuters; 2 - Paraquedistas norte-americanos numa operação em Lwar Kowndalan,
Afeganistão, em Outubro de 2005
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