Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
As circunstâncias da morte do
cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa expõem procedimentos inaceitáveis e
uma infame cadeia de cumplicidade e encobrimento. Não fosse um médico legista e
uma denúncia anónima e o caso teria morrido com a vítima. Não chega Costa
dizer-se chocado: há muito para explicar.
António Costa disse esta
sexta-feira estar chocado com a suspeita de que três inspetores do
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras são responsáveis pela morte do cidadão
ucraniano Ihor Homeniuk. Frisou no entanto ser necessário ressalvar a presunção
de inocência. Tem razão: os três inspetores, detidos a 30 de março e colocados
em prisão preventiva domiciliária, têm direito a essa presunção: até que um
tribunal decida sobre o caso, são inocentes.
Esse facto, porém, não pode
servir de desculpa para que as responsabilidade do SEF e do Estado não sejam
assumidas. Recorde-se que em 1996, por exemplo, perante o homicídio e
decapitação de um homem no posto da GNR de Sacavém o governo decidiu atribuir à
família do morto uma indemnização antes de qualquer julgamento. Não será
necessariamente o caso aqui. Mas o que já se conhece das circunstâncias da
morte de Ihor (diz-se Igor) - desde logo, a forma como esta foi comunicada ao
MP e à Embaixada da Ucrânia, atribuindo-a a causas naturais;
vários procedimentos que a antecederam e sucederam e, naturalmente, o relatório
preliminar da autópsia, que indica sinais de violência - exige explicações e
alterações urgentes.
É bom pois que António Costa
compreenda que mesmo no meio de uma pandemia não chega dizer que é preciso
esperar pelos resultados do inquérito da Inspeção Geral da Administração
Interna e do processo criminal - que sabemos nunca levarem menos de um ano.
E que não vale a pena invocar o
segredo de justiça, nem o "à justiça o que é da justiça"; não é sobre
a existência ou não de crime que se esperam esclarecimentos do governo. Como é
óbvio, ninguém espera que aponte quem matou, se alguém matou, Ihor. Ninguém
espera que nos diga se poderia ter sido salvo nas 10 horas que mediaram entre as agressões alegadamente
perpetradas pelos três inspetores - que teriam ocorrido entre as 8.15 e as 8.35
da manhã de 12 de março -, e a constatação do óbito, às 18.40, se alguém se
tivesse apiedado dele. Ou que nos elucide sobre o porquê de o cadáver ter estado em poder do SEF durante mais de três
horas sem que o Ministério Público fosse notificado na morte - a lei
prescreve que deve sê-lo logo - e o que aconteceu durante esse tempo; quem foi
entretanto informado do que se passara; se os três inspetores indiciados
estiveram nesse período presentes ou foram por alguém avisados.
Ou, ainda, como raio no
formulário de entrada do corpo do Instituto de Medicina Legal, preenchido
aquando da sua entrega por um inspetor do SEF, consta que aquele provinha
"da via pública".
Ninguém espera que o governo ou mesmo
o SEF nos enumerem, para já, quantos inspetores participaram daquilo que surge
como uma óbvia tentativa de encobrimento - contamos pelo menos três, além dos
três que estão detidos, mas poderão ser mais. Nem que nos justifique o facto
de, aparentemente, o médico do INEM que declarou o óbito não ter visto no corpo
nenhum dos sinais de violência detetados na autópsia; de a enfermeira da Cruz
Vermelha que foi chamada antes do INEM idem; de os agentes da PSP que viram
passar o cadáver terem tido a mesma falta de perspicácia; de os seguranças que disseram à PJ ter ouvido os gritos de
Ihor ao ser espancado e visto que estava amarrado e a sangrar não terem
intervindo nem denunciado o crime; de os (seriam os mesmos ou outros?) que
foram dar-lhe o pequeno-almoço - bolachas e leite - logo depois desse alegado
espancamento não o terem ajudado.
Não; não estamos sequer à espera
de que o governo nos esclareça sobre o facto de dos relatos feitos à PJ se
concluir que Ihor esteve na sala onde viria a morrer, amarrado, durante
pelo menos seis horas, até às 16.40, sem que alguém ali entrasse ou sequer lhe
dessem almoço - mesmo se gostaríamos muito de saber como tal foi possível e se
faz parte das práticas do SEF algemar detidos, deixá-los horas abandonados no
chão e não lhes dar de comer.
Tudo isso terá de ser objeto de
investigação, já que poderão estar em causa os crimes de omissão de auxílio e de
denegação de justiça, talvez também de tortura e tratamentos cruéis,
degradantes ou desumanos.
Mas não é admissível que nem o
SEF nem a tutela se aprestem, perante um acontecimento desta gravidade, a
esclarecer o que pode e deve ser esclarecido. Desde logo, o que era suposto ter
sucedido: o que se passa, segundo as normas, numa instituição
hierarquizada como o SEF quando alguém morre sob a sua jurisdição? Quando é que
a direção do SEF Lisboa - demitida a 30 de março - soube do óbito de Ihor? E a
direção nacional? Que decisões foram tomadas nessa altura? Decidiu-se abrir
inquérito, existiram medidas disciplinares? Se sim, de que tipo?
É muito simples: queremos saber
se é possível uma pessoa morrer sob custódia policial e as chefias não saberem;
e se sabendo podem não determinar um inquérito. Seria também curial
informarem-nos a quem cabe decidir, quando a morte de um detido sobrevém, se a
PJ é ou não chamada. E quem pode determinar que o MP não é de imediato
notificado. São os inspetores de serviço? Depende do que lhes apeteça?
Nenhuma destas questões tem a
ver, especificamente, com as circunstâncias da morte de Ihor; dizem respeito às
regras e procedimentos gerais. É o mínimo que se saiba quais estão em vigor no
SEF, se são os corretos e suficientes (dir-se-ia, face ao ocorrido, que não), e
alterar o necessário para que um caso destes não volte a ocorrer. Nomeadamente,
acolher a proposta várias vezes apresentada pelas organizações
de defesa dos direitos humanos e de apoio aos refugiados e imigrantes, assim
como pela Ordem dos Advogados, de que haja no espaço onde o ucraniano morreu -
o Centro de Instalação Temporária, onde ficam as pessoas cuja entrada no país é
negada, como sucedeu com Ihor, enquanto não são metidas num avião de regresso,
e os que esperam concessão de asilo - apoio jurídico permanente ou pelo menos
observadores externos.
É o mínimo que o SEF se
consciencialize dos danos reputacionais que sofreu e de que não pode continuar
a brincar às escondidas, recusando responder a qualquer pergunta que lhe façam,
incluindo "Quantas pessoas estão a trabalhar no CIT num dia normal? Quais
as respetivas funções?" O país não pode saber quantos inspetores estão no
CIT diariamente, mais seguranças ou outros funcionários? É mesmo o vício da
opacidade ou a resposta seria comprometedora?
Mesmo após ter sido acusado pela
Embaixada da Ucrânia, em carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros, de "omitir
a verdade", o SEF insiste nas omissões, comportando-se como se
não tivesse qualquer obrigação de transparência. Chega ao ponto de invocar a
investigação criminal em curso e o segredo de justiça para se furtar a
esclarecer o seu próprio comunicado de 30 de março, no qual assevera estar
"desde o início a colaborar com as autoridades envolvidas na
investigação", ter tomado "de imediato as medidas previstas em sede
disciplinar" e comunicado a situação à IGAI.
Entendamo-nos: sabe-se que a
morte de Ihor só foi investigada como crime depois de na autópsia, ocorrida a
14 de março, o médico legista ter concluído que se devera a violência e avisado
a PJ, cujo piquete recebeu também nesse dia uma denúncia anónima que descrevia
as agressões de que o ucraniano fora alvo. O SEF, cujos inspetores andaram
a impingir a torto e a direito a versão de que Ihor morrera de causas naturais,
ataque epilético ou cardíaco, afirmar que colaborou "desde o início"
na investigação é uma piada de muito mau gosto. Quanto às medidas
disciplinares tomadas "de imediato" seria interessante saber quais e
quando, já que a informação existente é de que os três inspetores indiciados
pelo homicídio estavam ao serviço, ou seja, não tinham sido sequer suspensos
quando foram detidos, 18 dias depois da morte. E a comunicação à IGAI, soube o
DN por esta, ocorreu a 18 de março.
O que nos leva a outra questão.
Se a IGAI sabia do óbito de Ihor desde dia 18 por que é que só abre inquérito a
30 de março? Diz esta entidade fiscalizadora que primeiro "instaurou
processo administrativo de acompanhamento, no qual foram solicitadas informações
ao SEF", e que "havendo notícia posterior de que o falecimento levou
à detenção de três inspetores do SEF, Sua Excelência o Ministro da
Administração Interna determinou à IGAI, por despacho de 30 de março de 2020, a
instauração de processo de natureza disciplinar".
Não é fácil perceber o que será
um "processo administrativo de acompanhamento", mas parece uma coisa
burocrática, do tipo "digam lá então de que morreu o senhor para a gente
arquivar isto". Mas se a PJ foi informada a 14 de março das suspeitas de
morte violenta e o SEF garante que colaborou com a investigação criminal
"desde o início" - o que pressupõe ter-se dado conta das suspeitas de
crime -, como se explica que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não tenha
comunicado à IGAI nem à tutela a existência dessas suspeitas? Não era obrigado
a fazê-lo? Nada bate certo.
Mais: se é verdade que um dos
três inspetores indiciados levava um bastão extensível quando entrou na sala
onde estava Ihor (a imagem terá sido captada pelas câmaras de videovigilância
que existem no corredor de acesso), tal significa que os três foram lá já
preparados para agredir o ucraniano? E se os bastões não fazem - informação que foi dada ao DN - parte do armamento
oficial dos inspetores do SEF, para que os querem eles, nomeadamente no aeroporto
e num local como o CIT, onde só estão funcionários e detidos?
São muitas perguntas, faltam
todas as respostas. E ter em conta o essencial: morreu um homem. Deixa
viúva e dois filhos menores lá longe na Ucrânia, onde talvez imaginassem
Portugal como um país seguro, civilizado, no qual as polícias não cultivam a
violência e o encobrimento e onde não se varrem mortos para debaixo do tapete.
Era bom que pudéssemos endireitar isto, já que não podemos devolver-lhes o pai
e o marido. Que soubéssemos ser esse país.
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