segunda-feira, 6 de abril de 2020

O PORTUGAL QUE IHOR NOS DESCOBRIU


Fernanda Câncio | Diário de Notícias | opinião

As circunstâncias da morte do cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa expõem procedimentos inaceitáveis e uma infame cadeia de cumplicidade e encobrimento. Não fosse um médico legista e uma denúncia anónima e o caso teria morrido com a vítima. Não chega Costa dizer-se chocado: há muito para explicar.

António Costa disse esta sexta-feira estar chocado com a suspeita de que três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras são responsáveis pela morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk. Frisou no entanto ser necessário ressalvar a presunção de inocência. Tem razão: os três inspetores, detidos a 30 de março e colocados em prisão preventiva domiciliária, têm direito a essa presunção: até que um tribunal decida sobre o caso, são inocentes.

Esse facto, porém, não pode servir de desculpa para que as responsabilidade do SEF e do Estado não sejam assumidas. Recorde-se que em 1996, por exemplo, perante o homicídio e decapitação de um homem no posto da GNR de Sacavém o governo decidiu atribuir à família do morto uma indemnização antes de qualquer julgamento. Não será necessariamente o caso aqui. Mas o que já se conhece das circunstâncias da morte de Ihor (diz-se Igor) - desde logo, a forma como esta foi comunicada ao MP e à Embaixada da Ucrânia, atribuindo-a a causas naturais; vários procedimentos que a antecederam e sucederam e, naturalmente, o relatório preliminar da autópsia, que indica sinais de violência - exige explicações e alterações urgentes.

É bom pois que António Costa compreenda que mesmo no meio de uma pandemia não chega dizer que é preciso esperar pelos resultados do inquérito da Inspeção Geral da Administração Interna e do processo criminal - que sabemos nunca levarem menos de um ano.

E que não vale a pena invocar o segredo de justiça, nem o "à justiça o que é da justiça"; não é sobre a existência ou não de crime que se esperam esclarecimentos do governo. Como é óbvio, ninguém espera que aponte quem matou, se alguém matou, Ihor. Ninguém espera que nos diga se poderia ter sido salvo nas 10 horas que mediaram entre as agressões alegadamente perpetradas pelos três inspetores - que teriam ocorrido entre as 8.15 e as 8.35 da manhã de 12 de março -, e a constatação do óbito, às 18.40, se alguém se tivesse apiedado dele. Ou que nos elucide sobre o porquê de o cadáver ter estado em poder do SEF durante mais de três horas sem que o Ministério Público fosse notificado na morte - a lei prescreve que deve sê-lo logo - e o que aconteceu durante esse tempo; quem foi entretanto informado do que se passara; se os três inspetores indiciados estiveram nesse período presentes ou foram por alguém avisados.

Ou, ainda, como raio no formulário de entrada do corpo do Instituto de Medicina Legal, preenchido aquando da sua entrega por um inspetor do SEF, consta que aquele provinha "da via pública".


Ninguém espera que o governo ou mesmo o SEF nos enumerem, para já, quantos inspetores participaram daquilo que surge como uma óbvia tentativa de encobrimento - contamos pelo menos três, além dos três que estão detidos, mas poderão ser mais. Nem que nos justifique o facto de, aparentemente, o médico do INEM que declarou o óbito não ter visto no corpo nenhum dos sinais de violência detetados na autópsia; de a enfermeira da Cruz Vermelha que foi chamada antes do INEM idem; de os agentes da PSP que viram passar o cadáver terem tido a mesma falta de perspicácia; de os seguranças que disseram à PJ ter ouvido os gritos de Ihor ao ser espancado e visto que estava amarrado e a sangrar não terem intervindo nem denunciado o crime; de os (seriam os mesmos ou outros?) que foram dar-lhe o pequeno-almoço - bolachas e leite - logo depois desse alegado espancamento não o terem ajudado.

Não; não estamos sequer à espera de que o governo nos esclareça sobre o facto de dos relatos feitos à PJ se concluir que Ihor esteve na sala onde viria a morrer, amarrado, durante pelo menos seis horas, até às 16.40, sem que alguém ali entrasse ou sequer lhe dessem almoço - mesmo se gostaríamos muito de saber como tal foi possível e se faz parte das práticas do SEF algemar detidos, deixá-los horas abandonados no chão e não lhes dar de comer.

Tudo isso terá de ser objeto de investigação, já que poderão estar em causa os crimes de omissão de auxílio e de denegação de justiça, talvez também de tortura e tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos.

Mas não é admissível que nem o SEF nem a tutela se aprestem, perante um acontecimento desta gravidade, a esclarecer o que pode e deve ser esclarecido. Desde logo, o que era suposto ter sucedido: o que se passa, segundo as normas, numa instituição hierarquizada como o SEF quando alguém morre sob a sua jurisdição? Quando é que a direção do SEF Lisboa - demitida a 30 de março - soube do óbito de Ihor? E a direção nacional? Que decisões foram tomadas nessa altura? Decidiu-se abrir inquérito, existiram medidas disciplinares? Se sim, de que tipo?

É muito simples: queremos saber se é possível uma pessoa morrer sob custódia policial e as chefias não saberem; e se sabendo podem não determinar um inquérito. Seria também curial informarem-nos a quem cabe decidir, quando a morte de um detido sobrevém, se a PJ é ou não chamada. E quem pode determinar que o MP não é de imediato notificado. São os inspetores de serviço? Depende do que lhes apeteça?

Nenhuma destas questões tem a ver, especificamente, com as circunstâncias da morte de Ihor; dizem respeito às regras e procedimentos gerais. É o mínimo que se saiba quais estão em vigor no SEF, se são os corretos e suficientes (dir-se-ia, face ao ocorrido, que não), e alterar o necessário para que um caso destes não volte a ocorrer. Nomeadamente, acolher a proposta várias vezes apresentada pelas organizações de defesa dos direitos humanos e de apoio aos refugiados e imigrantes, assim como pela Ordem dos Advogados, de que haja no espaço onde o ucraniano morreu - o Centro de Instalação Temporária, onde ficam as pessoas cuja entrada no país é negada, como sucedeu com Ihor, enquanto não são metidas num avião de regresso, e os que esperam concessão de asilo - apoio jurídico permanente ou pelo menos observadores externos.

É o mínimo que o SEF se consciencialize dos danos reputacionais que sofreu e de que não pode continuar a brincar às escondidas, recusando responder a qualquer pergunta que lhe façam, incluindo "Quantas pessoas estão a trabalhar no CIT num dia normal? Quais as respetivas funções?" O país não pode saber quantos inspetores estão no CIT diariamente, mais seguranças ou outros funcionários? É mesmo o vício da opacidade ou a resposta seria comprometedora?

Mesmo após ter sido acusado pela Embaixada da Ucrânia, em carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros, de "omitir a verdade", o SEF insiste nas omissões, comportando-se como se não tivesse qualquer obrigação de transparência. Chega ao ponto de invocar a investigação criminal em curso e o segredo de justiça para se furtar a esclarecer o seu próprio comunicado de 30 de março, no qual assevera estar "desde o início a colaborar com as autoridades envolvidas na investigação", ter tomado "de imediato as medidas previstas em sede disciplinar" e comunicado a situação à IGAI.

Entendamo-nos: sabe-se que a morte de Ihor só foi investigada como crime depois de na autópsia, ocorrida a 14 de março, o médico legista ter concluído que se devera a violência e avisado a PJ, cujo piquete recebeu também nesse dia uma denúncia anónima que descrevia as agressões de que o ucraniano fora alvo. O SEF, cujos inspetores andaram a impingir a torto e a direito a versão de que Ihor morrera de causas naturais, ataque epilético ou cardíaco, afirmar que colaborou "desde o início" na investigação é uma piada de muito mau gosto. Quanto às medidas disciplinares tomadas "de imediato" seria interessante saber quais e quando, já que a informação existente é de que os três inspetores indiciados pelo homicídio estavam ao serviço, ou seja, não tinham sido sequer suspensos quando foram detidos, 18 dias depois da morte. E a comunicação à IGAI, soube o DN por esta, ocorreu a 18 de março.

O que nos leva a outra questão. Se a IGAI sabia do óbito de Ihor desde dia 18 por que é que só abre inquérito a 30 de março? Diz esta entidade fiscalizadora que primeiro "instaurou processo administrativo de acompanhamento, no qual foram solicitadas informações ao SEF", e que "havendo notícia posterior de que o falecimento levou à detenção de três inspetores do SEF, Sua Excelência o Ministro da Administração Interna determinou à IGAI, por despacho de 30 de março de 2020, a instauração de processo de natureza disciplinar".

Não é fácil perceber o que será um "processo administrativo de acompanhamento", mas parece uma coisa burocrática, do tipo "digam lá então de que morreu o senhor para a gente arquivar isto". Mas se a PJ foi informada a 14 de março das suspeitas de morte violenta e o SEF garante que colaborou com a investigação criminal "desde o início" - o que pressupõe ter-se dado conta das suspeitas de crime -, como se explica que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não tenha comunicado à IGAI nem à tutela a existência dessas suspeitas? Não era obrigado a fazê-lo? Nada bate certo.

Mais: se é verdade que um dos três inspetores indiciados levava um bastão extensível quando entrou na sala onde estava Ihor (a imagem terá sido captada pelas câmaras de videovigilância que existem no corredor de acesso), tal significa que os três foram lá já preparados para agredir o ucraniano? E se os bastões não fazem - informação que foi dada ao DN - parte do armamento oficial dos inspetores do SEF, para que os querem eles, nomeadamente no aeroporto e num local como o CIT, onde só estão funcionários e detidos?

São muitas perguntas, faltam todas as respostas. E ter em conta o essencial: morreu um homem. Deixa viúva e dois filhos menores lá longe na Ucrânia, onde talvez imaginassem Portugal como um país seguro, civilizado, no qual as polícias não cultivam a violência e o encobrimento e onde não se varrem mortos para debaixo do tapete. Era bom que pudéssemos endireitar isto, já que não podemos devolver-lhes o pai e o marido. Que soubéssemos ser esse país.

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