Ferreira Fernandes | Diário de
Notícias | opinião
Leitor, olá! Escolheu bem por me
ler, sou um doutorado no assunto momentoso que aqui nos junta. Perdoe-me a
imodéstia, não sou um sábio, é certo, falham-me livros, mas sou
experimentadíssimo sobre o que abre os telejornais na América. O outro.
O assunto momentoso: na Georgia,
estado do sul dos Estados Unidos, um homem corre no lusco-fusco, num daqueles
bairros dos subúrbios que Hollywood nos ensinou a conhecer, sem muros nos
quintais e com portas de vidrinhos e uma lingueta de trinco que salta com um
simples piparote - toda a segurança que basta e acautela a classe média baixa
americana. Branca. De americanos brancos, repito, porque nesta história é
essencial essa brancura que contrasta com a pele negra do homem que corre. Um
vídeo filma-o e também a um carro de habitantes do bairro que o persegue.
Outro ângulo da mesma situação:
um homem está no chão, detido pela polícia de Minneapolis, no estado do
Minnesota, no norte dos Estados Unidos. Três agentes fardados estão sobre o
homem, encostando-o à roda traseira do carro policial, um deles com um joelho
sobre o pescoço do detido. Há ainda outro polícia, de pé, que afasta a gente
que se acerca e, sobretudo, aos seus vídeos. Mas estes filmam o homem, durante
longos minutos, com a face negra empurrada contra o asfalto. O sujeitado que se
queixa: "Não consigo respirar..."
Ambas as cenas entraram no nosso
confinamento e acabaram de forma similar. O primeiro dos negros foi morto a
tiro, o segundo estrangulado. Eu podia agora epilogar sobre diferenças: o
primeiro foi morto por brutalidade deliberada e o outro por bruta imprevidência.
Podia assinalar uma ironia: o jogging aos brancos dá saúde, mas
correr num negro é fatal. Podia convidar-vos à minúcia cruel: olhem o joelho do
polícia como se mexe, metódico, sobre um pescoço... Ou promover o conhecimento
barato: aquele golpe de arte marcial é um chokehold ou um seat
belt?
Mas fico-me pelo essencial:
aprendam a ver o ato racista. Este agora não acontece mais, mas esse crime, que
existiu sempre, passou a conhecer o seu mais temível adversário. Aleluia! Foi
inventado o seu antídoto mais poderoso: o vídeo nas mãos de cidadãos é uma arma
que o expõe. Mostra o racismo a matar, em imagem e som. Claro, não é cura
universal, haverá até gente a aproveitar a exposição para gozar melhor. E ainda
mais gente, sempre demasiada, que encontrará desculpas para não ver o que vê.
Mas, agora, se gente decente souber merecer a experiência...
Eu tinha 12 anos, andava no liceu
e estudava numa noite quente, como eram quase todas na minha cidade colonial,
Luanda. O ano era 1961, e o meu bairro, São Paulo, branco e mestiço, vizinho ao
musseque Sambizanga, andava há semanas envenenado pela mais torta das
inteligências, o medo. E eu tinha 12 anos, estava na minha cidade e estudava e,
contas todas feitas, era feliz como nunca mais fui.
Nessa altura, dez da noite já era
tarde, quando ouvi o som rasca das matilhas. Perguntem à raposa o que dizem os
cães, os homens sei eu: "Agarra! Agarra!" Eu estava na varanda do
rés-do-chão, abri a janela e na rua vi, lá está, um negro a correr. Ele ainda
estava sozinho quando o vi. Sei descrevê-lo, estou a vê-lo. Tinha uns calções
de caqui e uma camisa baça de mangas curtas, era pequeno e redondo, homem, não
rapaz, carapinha quase rapada, e teve a má ideia de se meter sob um camião
estacionado do outro lado do passeio. Nunca olhou para mim, também sei.
Corri para porta, mas o meu pai
que já estava na cama, no andar superior, tinha descido a correr e estava
agarrado à chave. Saltei pela janela e enquanto atravessava o jardim da minha
casa já a chusma cercava o camião. Sons de multidão e som de alguém batido. Eu
gritava não sei o quê onde a palavra "não" era o que eu queria dizer.
No pequeno portão do jardim um homem deu-me um murro e o meu pai agarrou-me e
arrastou-me para casa. Deixei-me ir, chorava e ouvi quando a rua se calou.
Toda a minha vida tentei ser como
nessa noite quente. Por exemplo, em 1999, na ponte sobre o rio Ibar, no Kosovo,
vi uma velha sérvia a ser expulsa de sua casa, porque ela tinha nascido do lado
errado da sua cidade de Mitrovica. Ela tremia com as mãos, sentou-se num
canteiro. Passou a tremer com os joelhos e agarrou-se aos joelhos - pôs-se a
bater com os dentes. Eu vi. Porque, como comecei por dizer, ando há muito a
tirar o curso da vida.
Sem comentários:
Enviar um comentário