segunda-feira, 1 de junho de 2020

Crónica sobre o costume: o outro


Ferreira Fernandes | Diário de Notícias | opinião

Leitor, olá! Escolheu bem por me ler, sou um doutorado no assunto momentoso que aqui nos junta. Perdoe-me a imodéstia, não sou um sábio, é certo, falham-me livros, mas sou experimentadíssimo sobre o que abre os telejornais na América. O outro.

O assunto momentoso: na Georgia, estado do sul dos Estados Unidos, um homem corre no lusco-fusco, num daqueles bairros dos subúrbios que Hollywood nos ensinou a conhecer, sem muros nos quintais e com portas de vidrinhos e uma lingueta de trinco que salta com um simples piparote - toda a segurança que basta e acautela a classe média baixa americana. Branca. De americanos brancos, repito, porque nesta história é essencial essa brancura que contrasta com a pele negra do homem que corre. Um vídeo filma-o e também a um carro de habitantes do bairro que o persegue.

Outro ângulo da mesma situação: um homem está no chão, detido pela polícia de Minneapolis, no estado do Minnesota, no norte dos Estados Unidos. Três agentes fardados estão sobre o homem, encostando-o à roda traseira do carro policial, um deles com um joelho sobre o pescoço do detido. Há ainda outro polícia, de pé, que afasta a gente que se acerca e, sobretudo, aos seus vídeos. Mas estes filmam o homem, durante longos minutos, com a face negra empurrada contra o asfalto. O sujeitado que se queixa: "Não consigo respirar..."

Ambas as cenas entraram no nosso confinamento e acabaram de forma similar. O primeiro dos negros foi morto a tiro, o segundo estrangulado. Eu podia agora epilogar sobre diferenças: o primeiro foi morto por brutalidade deliberada e o outro por bruta imprevidência. Podia assinalar uma ironia: o jogging aos brancos dá saúde, mas correr num negro é fatal. Podia convidar-vos à minúcia cruel: olhem o joelho do polícia como se mexe, metódico, sobre um pescoço... Ou promover o conhecimento barato: aquele golpe de arte marcial é um chokehold ou um seat belt?

Mas fico-me pelo essencial: aprendam a ver o ato racista. Este agora não acontece mais, mas esse crime, que existiu sempre, passou a conhecer o seu mais temível adversário. Aleluia! Foi inventado o seu antídoto mais poderoso: o vídeo nas mãos de cidadãos é uma arma que o expõe. Mostra o racismo a matar, em imagem e som. Claro, não é cura universal, haverá até gente a aproveitar a exposição para gozar melhor. E ainda mais gente, sempre demasiada, que encontrará desculpas para não ver o que vê. Mas, agora, se gente decente souber merecer a experiência...

Eu tinha 12 anos, andava no liceu e estudava numa noite quente, como eram quase todas na minha cidade colonial, Luanda. O ano era 1961, e o meu bairro, São Paulo, branco e mestiço, vizinho ao musseque Sambizanga, andava há semanas envenenado pela mais torta das inteligências, o medo. E eu tinha 12 anos, estava na minha cidade e estudava e, contas todas feitas, era feliz como nunca mais fui.

Nessa altura, dez da noite já era tarde, quando ouvi o som rasca das matilhas. Perguntem à raposa o que dizem os cães, os homens sei eu: "Agarra! Agarra!" Eu estava na varanda do rés-do-chão, abri a janela e na rua vi, lá está, um negro a correr. Ele ainda estava sozinho quando o vi. Sei descrevê-lo, estou a vê-lo. Tinha uns calções de caqui e uma camisa baça de mangas curtas, era pequeno e redondo, homem, não rapaz, carapinha quase rapada, e teve a má ideia de se meter sob um camião estacionado do outro lado do passeio. Nunca olhou para mim, também sei.

Corri para porta, mas o meu pai que já estava na cama, no andar superior, tinha descido a correr e estava agarrado à chave. Saltei pela janela e enquanto atravessava o jardim da minha casa já a chusma cercava o camião. Sons de multidão e som de alguém batido. Eu gritava não sei o quê onde a palavra "não" era o que eu queria dizer. No pequeno portão do jardim um homem deu-me um murro e o meu pai agarrou-me e arrastou-me para casa. Deixei-me ir, chorava e ouvi quando a rua se calou.

Toda a minha vida tentei ser como nessa noite quente. Por exemplo, em 1999, na ponte sobre o rio Ibar, no Kosovo, vi uma velha sérvia a ser expulsa de sua casa, porque ela tinha nascido do lado errado da sua cidade de Mitrovica. Ela tremia com as mãos, sentou-se num canteiro. Passou a tremer com os joelhos e agarrou-se aos joelhos - pôs-se a bater com os dentes. Eu vi. Porque, como comecei por dizer, ando há muito a tirar o curso da vida.

Sem comentários:

Mais lidas da semana