No Dia Mundial contra o Trabalho
Infantil, a DW África fez uma análise profunda sobre a exploração de crianças
guineenses. Durante a pandemia de Covid-19, as autoridades estão a tentar tirar
crianças talibés das ruas.
Na sexta-feira (12.06), assinalou-se
o Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. Na Guiné-Bissau, quase 40% das
crianças entre os 5 e os 14 anos trabalham, segundo os últimos dados
disponíveis divulgados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) em
2014.
O cenário de crianças a vender na
rua é visível em todo o país, mas Maimuna Sila, fundadora da Fundação Ana
Pereira e antiga presidente do Instituto da Mulher e da Criança (IMC), alerta
que o problema envolve outras questões.
"Há aquelas crianças que são
obrigadas a ir, por exemplo, para as ruas vender amendoim ou manga. Muitas das
vezes, elas é que garantem o principal rendimento das famílias. E quando algo
corre mal [nas vendas], as crianças são submetidas a maus-tratos. Tudo isso é
preciso ser acautelado quando falamos de trabalho infantil", sublinha.
Outro tipo de trabalho infantil é
a mendicidade, algo que, para a advogada, pode ser considerado uma tradição
nefasta, mas que não tem mau fundo: "As pessoas não fazem isso de forma
deliberada para fazer mal às crianças. Existe a crença de que se a criança
conseguir sobreviver a essas adversidades, vai tornar-se num adulto consciente
das dificuldades da vida", explica.
Trabalho é discriminatório
Entretanto, Maimuna Sila defende
que o trabalho infantil não deve ser banalizado e que a sociedade deve ser
sensibilizada contra isso. "O trabalho infantil aqui na Guiné-Bissau é
quase institucionalizado. É feito como algo normal e é discriminatório. Quando
falamos em trabalho infantil, a preponderância é maior nas meninas do que
propriamente nos rapazes", assegura.
A fundadora da Fundação Ana
Pereira, que trabalha em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas
(UNFPA), diz que isso é claro quando o assunto é trabalho doméstico. "É
trabalho infantil também e há exploração aí. E infelizmente não se fala, porque
nós temos isso como algo normal, daí eu falar na institucionalização do
trabalho infantil", explica.
A guineense conta que, com o
trabalho, as meninas não têm tempo para outras tarefas, como ler. "De
manhã, está com as lides domésticas para poder garantir o almoço, à tarde vai
regar para garantir que o que tiver semeado há de florescer para depois levar para
vender. Ou seja, ela passa o dia inteiro super ocupada. O rapaz sai da escola e
vai jogar à bola, vai brincar. Existe essa discriminação", exemplifica.
Com a pandemia do novo
coronavírus, que levou ao fecho das escolas, houve uma sobrecarga deste trabalho
doméstico nas meninas e também um aumento
da violência de género. A Fundação Ana Pereira criou uma plataforma online,
a Bioksan, que pretende precisamente sensibilizar a população para estas
questões em tempos de pandemia, através de vídeos de animação e outras
atividades.
Exploração de crianças talibés
Outra forma de trabalho infantil
muito presente na sociedade guineense é a vivenciada pelas crianças talibés,
explica Maimuna Sila. "As crianças talibés que são levadas para as escolas
corânicas, mas que depois para se autossustentarem e sustentarem os seus
mestres têm que ir fazer de pedintes nas ruas. Nós temos isso aqui. E isso é
considerado tráfico de seres humanos", alerta.
A advogada esclarece que muitos
pais sem condições financeiras mandam os filhos "para criação" nessas
famílias um pouco mais abastadas acreditando que lá, para além de terem acesso
à educação, vão ser formados como "homens". "Mas a verdade é que
acabam por ser explorados, acabam por ter de fazer trabalho quase que de uma
empregada doméstica", admite Maimuna Sila.
A ex-presidente da Instituto da
Mulher e Criança (IMC) crê que a solução tem de ser estatal. "Eu acredito
que se fossem construídas escolas corânicas, as verdadeiras madraças, e que
fosse algo institucional do próprio Governo, controlado pelo Governo, onde as
crianças se dedicassem ao ensino corânico numa parte do dia e ao ensino laico
noutra parte do dia, onde tivessem onde dormir, onde tivessem onde comer,
nós retiraríamos esse motivo que leva os mestres corânicos a colocarem as
crianças a mendigar", argumenta.
"O Estado deve ser o
principal interessado em ter crianças saudáveis e com uma boa educação, porque
essas crianças serão o reflexo da sociedade no futuro", conclui.
Maria Vitória Correia, atual
presidente do IMC, afirma que "há muitos anos" estão a ser feitos
esforços para tentar "fazer o casamento entre a escola corânica e a escola
oficial". O Ministério da Educação guineense já inseriu a língua árabe no
ensino laico, com o intuito de que as crianças passem menos tempo na escola
corânica.
Resposta durante a pandemia
A presidente do IMC afirma que
"o trabalho infantil está inserido no plano de emergência [para cobrir a
situação do novo coronavírus]" que está a ser desenvolvido pelas
autoridades. Ainda não existe um plano concreto, mas já está a ser feito um
trabalho direcionado para as crianças talibés.
"Aquela mendicidade já está
a ser reduzida, porque a própria Guarda Nacional e a Polícia Judiciária estão
envolvidas em tirar as crianças das ruas e para que permaneçam na casa dos
mestres [corânicos]", explica.
Mas admite que há excesso de
crianças em casa dos professores corânicos e em situação de vulnerabilidade.
"Nós não podemos aceitar isso. Eu acho que, para a semana, vamos [começar]
a fazer a reinserção dessas crianças, com o apoio do UNICEF, nas famílias.
Assim, o trabalho infantil naquela vertente mais perigosa das crianças na rua a
pedirem esmola vai diminuir", afirma.
Legislação especial
Maria Vitória Correia informa
ainda que o IMC, juntamente com a Comissão Nacional de Prevenção do Trabalho Infantil
da Guiné-Bissau, está a trabalhar no sentido de definir a idade mínima para
admissão de emprego.
Para a advogada Maimuna Sila,
criar uma legislação especial para o trabalho infantil, que ainda não existe, é
por si só ineficiente. "Imaginemos que temos uma lei que diz que crianças
com menos de 12 anos não podem vender na rua. E depois encontramos uma criança
de dez anos a vender na rua. O que é que vamos fazer? Quem é que vai fiscalizar
isso? Ainda que haja quem fiscalize, essa entidade encontra essa criança e vai
levar para onde? Não existem muitos centros de acolhimento. Só aqui em Bissau
existe um único centro de acolhimento, que é da AMIC [Associação dos Amigos da
Criança]", analisa.
"E será que isso é solução,
acolher essa criança? Depois quem é que vai prover o sustento dessa criança?
Não temos nenhuma entidade encarregue disso. E, depois, aquela família que pôs
aquela criança a vender porque era carente, vai continuar carente. Então, se
calhar, eu não olharia mais para a questão legislativa, mas mais para a questão
da sensibilização", avalia a fundadora da Fundação Ana Pereira.
Maimuna Sila acredita que a
resposta passa por capacitar os adultos das famílias pobres, aumentando-lhes os
rendimentos, e assim retirar a necessidade de colocarem as crianças a
trabalhar.
Crianças resgatadas no
estrangeiro
O problema das crianças talibés
estende-se para além das fronteiras, em países como o Mali e a Guiné-Conacri. O
Senegal é o principal destino das crianças guineenses, conta Laudolino Medina,
secretário-executivo da AMIC.
"Há um estudo [citado pelo
UNICEF] que aponta que cerca de 30% das crianças que mendigam nas ruas da
grande região de Dacar são originárias da Guiné-Bissau. Numa amostra de cerca
de 6.700 crianças, 30% eram crianças talibés originárias da Guiné-Bissau",
diz.
A organização não-governamental
gere atualmente dois centros de acolhimento de crianças vulneráveis: um em
Bissau, que acolhe principalmente meninas vítimas de violência baseada no
género", e outro na região de Gabú, que acolhe as crianças talibés.
Desde 2005, a AMIC trabalha com
uma rede internacional de proteção à criança composta por 15 países da África
Ocidental, mais a Mauritânia. Juntos, já conseguiram resgatar cerca de duas mil
crianças em situação de vulnerabilidade.
A Guiné-Bissau é um bom exemplo
no que toca ao acompanhamento pós-resgate. "Felizmente, a Guiné-Bissau é
dos raros países que, através de nós, AMIC, no ato de entrega das crianças [às
famílias], conseguimos que o ato seja testemunhado pelo tribunal regional de
Gabú que responsabiliza as famílias quanto à guarda das crianças, para não as
enviar de novo para este tipo de exploração", conta o secretário-executivo
da AMIC.
"E, nós, enquanto
organização, responsabilizamo-nos a fazer o seguimento da criança. Se uma vez
nas ações de seguimento não encontramos as crianças, automaticamente informamos
a instância judicial que pode incorrer um processo contra a família. E quando
nós começámos a trabalhar com esta estratégia, diminuiu muito o caso de
crianças reincidentes. É quase nula a percentagem das crianças
reincidentes", explica Laudolino Medina.
Marta Cardoso | Deutsche Welle
Publicado em 12/6 em DW |
Publicado e atualizado por PG em 20/6
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