A
figura grotesca de Trump pode tentar a fazer esquecer as responsabilidades
históricas dos seus antecessores no cargo. Mas, mesmo olhando apenas para os
que assumiram a presidência dos EUA desde o final do século XX – Clinton, Bush,
Obama – o traço comum é evidente: todos são responsáveis por criminosas
agressões militares e guerras, pela destruição de países, pela morte e a
condenação à miséria, à fome, ao abandono da sua terra de milhões de homens e
mulheres. E todos se aliaram com a pior escória humana à face da terra.
O
«combatente da liberdade» favorito do presidente Bill Clinton acaba de ser
indiciado por assassínio em massa, tortura, sequestro e outros crimes contra a
humanidade. Em 1999, a
administração Clinton lançou uma campanha de bombardeamentos de 78 dias que
matou até 1500 civis na Sérvia e Kosovo, naquilo que os media norte-americanos
orgulhosamente retrataram como uma cruzada contra o preconceito étnico. Essa
guerra, como a maioria das pretensões da política externa dos EUA, sempre foi
uma farsa.
O
presidente do Kosovo, Hashim Thaci, foi acusado de dez crimes de guerra e
crimes contra a humanidade por um tribunal internacional em Haia, na Holanda,
que acusou Thaci e nove outros homens de “crimes de guerra, incluindo
assassínio, desaparecimento forçado de pessoas, perseguição e tortura.” Thaci e
os outros suspeitos processados foram acusados de serem “criminalmente
responsáveis por quase 100 assassínios” e a acusação envolveu
“centenas de vítimas conhecidas Kosovo albanesas, sérvias, ciganas e de outras
etnias e incluem opositores políticos”. Mas o ridículo preconceito e/ou a
incompetência dos media norte-americanos acerca dessa guerra continua. O New
York Times respondeu à acusação de Thaci com um tweet declarando que “o líder
da Sérvia foi indiciado por crimes de guerra”.
A
truculenta carreira de Hashim Thaci ilustra como o antiterrorismo é uma
bandeira de conveniência para quem formula políticas em Washington. Antes
de se tornar presidente do Kosovo, Thaci era o chefe do Exército de Libertação
do Kosovo (KLA), lutando para forçar os sérvios a sair do Kosovo. Em 1999, a administração
Clinton designou o KLA como “combatentes da liberdade” apesar de seu passado
horrível, e deu-lhes ajuda maciça. No ano anterior, o Departamento de Estado
condenara a “acção terrorista do chamado Exército de Libertação do Kosovo”. O
KLA estava fortemente envolvido no tráfico de drogas e tinha laços estreitos
com Osama bin Laden.
Mas
armar o KLA e bombardear a Sérvia ajudou Clinton a autorretratar-se como um
cruzado contra a injustiça e a desviar a atenção do público após o seu processo
de impeachment. Clinton foi ajudado por muitos membros desavergonhados do
Congresso, ansiosos por santificar as matanças EUA. O senador Joe Lieberman
(D-CN) afirmou que os Estados Unidos e o KLA “representam os mesmos valores e
princípios. Lutar pelo KLA é lutar pelos direitos humanos e pelos valores
norte-americanos.” E como os representantes da administração Clinton compararam
publicamente o líder sérvio Slobodan Milošević a Hitler, qualquer pessoa
decente estava na obrigação de aplaudir a campanha de bombardeamento.
(Alexander Cockburn foi um dos poucos jornalistas que na altura condenaram essa
guerra injusta; uma coluna do Los Angeles Times em 1999 estabeleceu o
padrão-ouro para apoiar o bombardeamento de Clinton sobre a Sérvia.)
Tanto
os sérvios como os albaneses étnicos cometeram atrocidades no amargo conflito
no Kosovo. Mas, para santificar sua campanha de bombardeamento, a administração
Clinton acenou com uma varinha mágica e fez desaparecer as atrocidades do KLA.
O professor britânico Philip Hammond observou que a campanha de bombardeamento
de 78 dias “não foi uma operação puramente militar: a NATO destruiu também o
que chamou de alvos de ‘uso duplo’, como fábricas, pontes urbanas e até o
principal edifício de televisão no centro de Belgrado, numa tentativa de
aterrorizar o país até à rendição.” A NATO lançou repetidamente bombas de
fragmentação em mercados, hospitais e outras áreas civis. As bombas de
fragmentação são dispositivos antipessoal projectados para se espalharem pelas
formações de tropas inimigas. A NATO lançou mais de 1.300 bombas de
fragmentação na Sérvia e Kosovo e cada bomba continha 208 granadas separadas
que flutuavam para terra em paraquedas. Especialistas
em bombas estimaram que mais de 10.000 granadas não explodidas estavam
espalhadas pelo campo quando o bombardeamento terminou, e que mutilaram crianças
muito depois do cessar-fogo.
Nos
últimos dias da campanha de bombardeamentos o Washington Post relatou que
“alguns assessores presidenciais e amigos estão a descrever o Kosovo em termos
churchilianos”, como a “melhor hora de Clinton.” O Post relatou também que de
acordo com um amigo de Clinton, “o que Clinton acredita terem sido os
inequívocos motivos morais para a intervenção da NATO representaram uma
oportunidade de aliviar mágoas instaladas na sua própria consciência. Disse
esse amigo que Clinton tinha por vezes lamentado que a geração anterior à sua
tivesse sido capaz de servir numa guerra com um objectivo claramente nobre, e
que se sente “quase defraudado” por “quando chegou a sua vez, não ter tido a
oportunidade de fazer parte de uma causa moral.” Pelos padrões de Clinton,
massacrar sérvios era “suficientemente próximo” de uma “causa moral” como
tarefa de governo.
Pouco
depois do final da campanha de bombardeamento de 1999, Clinton enunciou o que
seus assessores etiquetaram como doutrina Clinton: “Seja dentro ou fora das
fronteiras de um país, se a comunidade mundial tem poder para o deter, devemos
deter o genocídio e a limpeza étnica.” Na realidade, a doutrina Clinton era que
os presidentes têm o direito de começar a bombardear terras estrangeiras com
base em qualquer descarada mentira que os media norte-americanos regurgitarão.
Na realidade, a lição do bombardeamento da Sérvia é que os políticos
norte-americanos apenas precisam de recitar publicamente a palavra “genocídio”
para obter uma licença para matar.
Após
o término do bombardeamento, Clinton garantiu ao povo sérvio que os Estados
Unidos e a NATO tinham concordado em manter as forças de paz apenas “no
entendimento de que protegeriam os sérvios e os albaneses étnicos e que
partiriam quando a paz se estabelecesse”. Nos meses e anos subsequentes as
forças norte-americanas e da NATO permaneceram enquanto o KLA retomava a sua
limpeza étnica, massacrando civis sérvios, bombardeando igrejas sérvias e
oprimindo qualquer não-muçulmano. Quase 250 mil sérvios, ciganos, judeus e
outras minorias fugiram do Kosovo depois de Clinton ter prometido protegê-los.
Em 2003, quase 70% dos sérvios que viviam no Kosovo em 1999 haviam fugido, e o
Kosovo era 95% etnicamente albanês.
Mas
Thaci permaneceu útil para quem formula as políticas dos EUA. Embora tivesse
sido amplamente condenado pela opressão e corrupção depois de assumir o poder
no Kosovo, o vice-presidente Joe Biden saudava Thaci em 2010 como o “George
Washington do Kosovo”. Alguns meses depois, um relatório do Conselho da Europa
acusou Thaci e operacionais do KLA de tráfico de órgãos humanos. O The Guardian
observou que o relatório alegava que o círculo próximo de Thaci ” depois a
guerra, transportara para a Albânia cativos trazidos do outro lado da fronteira,
onde se diz que numerosos sérvios teriam sido assassinados pelos seus rins, que
eram vendidos no mercado negro”. O relatório afirmava que, quando os
“cirurgiões de transplante” estavam “prontos para operar, os cativos [sérvios]
eram individualmente trazidos para fora do ‘esconderijo’, sumariamente
executados por um atirador do KLA e os seus cadáveres eram rapidamente
transportados para a clínica onde era feita a operação”.
Apesar
da acusação de tráfico de corpos, Thaci foi estrela participante na conferência
anual Global Initiative da Clinton Foundation em 2011, 2012 e 2013, onde posou
para fotos com Bill Clinton. Talvez isso tenha sido resultado do contrato de
lobby de US $ 50.000 por mês que o regime de Thaci assinou com o The Podesta
Group, cogerido pelo futuro gestor de campanha de Hillary Clinton, John
Podesta, como noticiou o Daily Caller.
Clinton
continua a ser um herói no Kosovo, onde uma estátua sua foi erguida na capital,
Pristina. O jornal Guardian observou que a estátua mostrava Clinton “com a mão
esquerda levantada, um gesto típico de um líder saudando as massas. Na mão
direita, segura documentos onde está gravada a data em que a NATO iniciou o
bombardeamento da Sérvia, 24 de Março de 1999.” Uma imagem mais precisa teria sido
representar Clinton em pé sobre uma pilha de cadáveres de mulheres, crianças e
outros mortos na campanha de bombardeamento dos EUA.
Em
2019, Bill Clinton e a sua fanaticamente pró-bombardeamento ex-secretária de
Estado, Madeleine Albright, visitaram Pristina, onde foram “tratados como
estrelas de rock” enquanto posavam para fotos com Thaci. Clinton declarou: “Amo
este país e será sempre uma das maiores honras da minha vida ter estado ao seu
lado contra a limpeza étnica (pelas forças sérvias) e pela liberdade”. Thaci
concedeu medalhas da liberdade a Clinton e Albright “pela liberdade que nos
trouxeram e pela paz em toda a região”. Albright reinventou-se como uma
visionária alertadora contra o fascismo na era Trump. Na verdade, o único
título honorífico que Albright merece é “Açougueira de Belgrado”.
A
guerra de Clinton na Sérvia foi uma caixa de Pandora da qual o mundo sofre
ainda. Como os políticos e a maioria dos media retrataram a guerra contra a
Sérvia como um triunfo moral, foi mais fácil à administração Bush justificar o
ataque ao Iraque, ao governo Obama bombardear a Líbia e ao governo Trump
bombardear repetidamente a Síria. Todas essas intervenções semearam o caos que
continua a amaldiçoar os supostos beneficiários.
O
bombardeamento da Sérvia de Bill Clinton em 1999 foi uma fraude tão grande como
George W. Bush a enganar o país para atacar o Iraque. O facto de Clinton e
outros altos funcionários do governo dos EUA continuarem a glorificar Hashim
Thaci, apesar das acusações de assassínio em massa, tortura e tráfico de corpos
é outro sublinhar da venalidade de grande parte da elite política
norte-americana. Irão os norte-americanos ser novamente crédulos da próxima vez
que quem formula políticas em Washington e seus aliados nos media congeminarem
pretextos da treta para rebentar com qualquer desgraçada terra estrangeira?
*
em O Diário.info
Fonte : https://www.counterpunch.org/2020/06/30/bill-clintons-serbian-war-atrocities-exposed-in-new-indictment/
Fonte
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