#Escrito e publicado em português do Brasil
Como o pessimismo palestino poderia provocar
uma rebelião muito necessária
O maior desafio da Palestina não é o fato de as pessoas não se considerarem um
fator na libertação de sua própria terra e sim a incapacidade da sua liderança
em reconhecer o imenso potencial de energia dos palestinos em toda a parte para
um enfoque anticolonial, centrado e estratégico, uma campanha de libertação.
Ramzy Baroud [*]
Numa
recente discussão televisiva, um respeitado jornalista pró-Palestina declarou
que se alguma vez ocorrer uma mudança ou transformação positiva na trágica saga
palestina, não seria agora, pois seria necessário uma geração completamente
nova para conseguir uma mudança de paradigma... Tão inócua como possa parecer,
a declaração incomodou-me muito. Escutei essa frase uma e outra vez,
frequentemente reiterada por intelectuais bem-intencionados, cujas experiências
ao investigar e escrever sobre o chamado 'conflito israelo-palestino' podem ter
levado alguns deles ao pessimismo, se não a desesperança. O 'discurso da
desesperança' é, talvez, compreensível se alguém examina a realidade tangível e
desagradável sobre o terreno: a ocupação israelense cada vez mais arraigada, a
anexação planejada da terra palestina ocupada na Cisjordânia, a vergonhosa
normalização árabe com Israel, o silêncio ensurdecedor da comunidade
internacional e a inutilidade da liderança palestina. Endossar essa lógica não
é apenas contraproducente, é também a-histórico. Ao longo da história cada
grande conquista que trouxe liberdade e um pouco de justiça a qualquer nação se
realizou apesar de probabilidades aparentemente insuperáveis. De fato, quem
teria pensado que o povo argelino fosse capaz de derrotar o colonialismo
francês quando suas ferramentas de libertação eram tão rudimentares em
comparação com os incríveis poderes do exército francês e seus aliados? A mesma
noção se aplica a muitas outras experiências históricas modernas, desde o Vietnã
até a África do Sul, desde a Índia até Cuba.
A Palestina não é a exceção. Entretanto, o "discurso da desesperança"
não é tão inocente quanto parece. Ele se deve a persistente incapacidade de
reconhecer a centralidade do povo palestino, ou qualquer outra pessoa, para o
caso, em sua própria história. Ademais, supõe que o povo palestino é,
francamente, ineficaz. Curiosamente, quando muitas nações ainda estavam lidando
com o conceito de identidade nacional, o povo palestino já havia desenvolvido
um sentido refinado de identidade coletiva moderna e consciência nacional. As
greves gerais de massas e a desobediência civil que desafiam o imperialismo
britânico e os assentamentos sionistas começaram há quase um século, culminando
na greve geral de seis meses de duração de 1936. Desde então, a resistência
popular, que está vinculada a um sentido definido de identidade nacional, tem
sido um elemento básico na história palestina. Foi uma característica destacada
na Primeira Intifada, o levantamento popular de 1987. O fato de que a pátria
palestina se perdiesse, apesar da maior consciência das massas palestinas nesse
momento, não é indicativo da capacidade do povo palestino para afetar os
resultados políticos.
Reiteradamente os palestinos se rebelaram e, com cada rebelião, obrigaram todas as partes, incluindo Israel e os Estados Unidos, a reconsiderar e rever suas estratégias por completo. Um exemplo disso foi a Primeira Intifada. Quando, em 8 de dezembro de 1987, milhares saíram às ruas do campo de refugiados de Jabaliya, o campo mais povoado e pobre da Faixa de Gaza, o momento e o lugar do levantamento foram mais adequados, racionais e necessários. Nesse mesmo dia, um caminhão israelense havia atropelado um comboio de automóveis que transportavam trabalhadores palestinos, matando a quatro homens jovens. Para Jabaliya, como para o resto da Palestina, foi a gota d'água. Respondendo aos cantos e súplicas dos sofredores de Jabaliya, Gaza foi, em questão de dias, o terreno fértil para uma verdadeira revolução autopromovida e inquebrantável. Os cantos dos palestinos na Faixa de Gaza foram respondidos na Cisjordânia e ecoaram nas cidades palestinas, inclusive naquelas localizadas em Israel.
A
energia contagiosa de crianças e jovens que queriam reclamar as identidades de
seus antepassados que haviam sido horrivelmente desfigurados e divididos entre
regiões, países e campos de refugiados, era emblemática. A Intifada, que
literalmente significa "sacudir-se", enviou uma poderosa mensagem à
Israel de que o povo palestino está vivo e ainda é capaz de alterar todos os
esforços coloniais de Israel. A Intifada também enfrentou o fracasso das
lideranças palestinas e árabes, que persistiram nas suas políticas de facções e
egoístas. De fato, as conversações de Madrid de 1991 entre palestinos e
israelenses foram entendidas como um compromisso israelo-estadunidense,
destinado a terminar com a Intifada em troca do reconhecimento da Organização
para a Libertação da Palestina (OLP) como representante do povo palestino. Os
Acordos de Oslo, assinados por Yasser Arafat e Israel em 1993, desperdiçaram os
ganhos da Intifada e, em última instância, substituíram a OLP, que era mais
democraticamente representativa, pela Autoridade Palestina corrupta.
Mas mesmo então o povo palestino continuou regressando, reclamando, à sua maneira,
sua importância e centralidade na luta. A Grande Marcha de Retorno de Gaza é
apenas uma das muitas iniciativas impulsionadas pelas pessoas. O maior desafio
da Palestina no movimento não é o fato de que as pessoas não se considerem como
um fator de libertação de sua própria terra e sim a incapacidade da sua
liderança em reconhecer o imenso potencial de aproveitar as energias dos
palestinos em todos os lugares para um enfoque anticolonial, centrado e
estratégico, campanha de libertação anticolonial. Essa falta de visão remonta
aos finais da década de 1970, quando os líderes palestinos trabalharam para se
comprometer politicamente com Washington e outras capitais ocidentais,
culminando no sentido dominante de que, sem a validação política dos Estados
Unidos, os palestinos seriam sempre marginais e irrelevantes. Os cálculos da
liderança palestina naquele momento resultaram desastrosos. Depois de décadas
satisfazendo as expectativas e os ditames de Washington, a liderança palestina,
em última instância, regressou com as mãos vazias, como finalmente demonstrou o
'Acordo do Século' da atual administração de Donald Trump. Falei recentemente
com duas jovens ativistas palestinas: uma é da Gaza sitiada e a outra da cidade
de Seattle. O discurso progressista delas é, em si mesmo, um testemunho de que
o pessimismo de alguns intelectuais não define o pensamento dessa nova geração
palestina, e que não há necessidade de descartar os esforços coletivos desta
geração ainda muito nova com vistas ao surgimento de uma "melhor".
Malak Shalabi, um estudante de direito que mora em Seattle, não transmite uma
mensagem de desesperança e sim de ação. "É realmente importante que cada
palestino e cada ativista de direitos humanos defenda a causa palestina
independentemente de onde se encontrem, e é importante, especialmente
agora", me disse. "Atualmente há irrupções de movimentos sociais aqui
nos Estados Unidos, em torno dos direitos civis para os negros e de outros
temas que estão (se convertendo) temas prementes – igualdade e justiça – na
corrente principal. Como palestinos, é importante que também nós levemos a
causa palestina à corrente principal ", acrescentou. "Há muito
trabalho entre os ativistas palestinos aqui nos Estados Unidos, a nível social,
econômico e político, para assegurar que se produza um vínculo entre o Black
Lives Matter e a Palestina", acrescentou.
Por sua vez, Wafaa Aludaini, em Gaza, falou dos incansáveis esforços de sua
organização, a 16 de outubro, para envolver as comunidades de todo o mundo e
tornar conhecidos os crimes de guerra israelenses ali praticados e por fim ao
assédio prolongado na faixa empobrecida. "Os palestinos e ativistas
pró-palestina no exterior são importantes porque fazem que nossas vozes se
escutem fora da Palestina, já que os principais meios não informam (a verdade
sobre) o que está acontecendo aqui", me disse. Para que estes esforços
tenham êxito, "todos necessitamos estar unidos", afirmou,
referindo-se ao povo palestino em casa e na diáspora, e ao movimento de
solidariedade pró-palestina em todas as partes, também. As palavras de Malak e
Wafaa estão validadas pela crescente solidariedade com a Palestina no movimento
BLM, assim como com numerosos outros movimentos de justiça em todo o mundo. Em
28 de junho, a divisão do BLM no Reino Unido tuitou que
"orgulhosamente" se solidariza com os palestinos e rechaça os planos
de Israel de anexar grandes áreas da Cisjordânia. BLM foi além, criticando a
política britânica por ser "amordaçada do direito de criticar o sionismo e
as atividades coloniais dos colonos de Israel".
Repetir a afirmação de que toda uma nova geração necessita substituir a atual
para que ocorra qualquer mudança na Palestina é um insulto, ainda que, às
vezes, sem intenção, a gerações de palestinos, cuja luta e sacrifícios estão
presentes em todos os aspectos da vida palestina. Simplesmente porque as
probabilidades acumuladas contra a liberdade palestina parecem demasiado
grandes nesse momento, não justifica deixar de contar com uma nação inteira,
que viveu muitas guerras, assédios prolongados e dificuldades incalculáveis.
Além disso, a próxima geração não é mais que uma mera evolução da consciência
da geração atual. Não podem ser desvinculadas e analisadas separadamente. Em
seus "Cadernos do Cárcere", o intelectual antifascista Antonio
Gramsci cunhou o termo "pessimismo do intelecto, otimismo da
vontade". Se bem que a análise lógica de uma situação possa levar o
intelecto ao desespero, o potencial de revoluções e transformações sociais e
políticas deve nos manter a todos motivados para mantermos a luta, sem importar
as probabilidades.
[*] Jornalista
e editor do The Palestine Chronicle. O seu livro mais recente é These Chains Will Be Broken: Palestinian Stories of Struggle
and Defiance in Israeli Prisions (Clarity Press, Atlanta). O
Dr. Baroud é investigador principal não residente no Centro para o Islã e
Assuntos Globais (CIGA), Universidade de Istambul Zaim (IZU). Seu
website é www.ramzybaroud.net/
Ver também:
Aprendiendo del pasado: la historia proporciona pistas sobre la
anexión de Cisjordania de Israel
A versão em castelhano encontra-se em mintpressnews.es/...
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/
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