sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Portugal | A paciência à Esquerda

Miguel Guedes * | Jornal de Notícias | opinião

É mais fácil dizer que fazer, ou outros adágios. As negociações do Governo tendo em vista a aprovação à esquerda do OE21 têm sido um simulacro de negociação por parte do PS.

Apesar do esforço de alguns analistas que procuram atirar com o ónus da culpa para supostas birras do BE ou atavismos do PCP, elogiando o esforço e paciência de António Costa em lidar com o que dizem ser condições irrazoáveis impostas pelos partidos à Esquerda, há muitos detalhes que os arautos da "paciência de chinês" de Costa não conseguem explicar. E por não conseguirem explicar, refugiam-se na defesa fácil do Governo pelo mito da "doença infantil" da Esquerda em pedir este mundo e aquele. Estão enganados, enganam-se a si próprios ou querem fazer-nos passar por tolos. É um pouco como a notícia de ontem que dá conta de que a nova linha ferroviária de alta velocidade entre Porto e Lisboa vai avançar e reduzir o tempo de viagem para 1h15. A mesma notícia já tinha sido dada, capa de jornal, em 1999 (há 21 anos!). Nada avançou, nada se fez. É fácil falar, é simples adiar, não vale é fazer de conta que não se cumpriu com o prometido.

Centremo-nos só no dossier da saúde. O Governo não cumpriu com muito do prometido nos acordos à Esquerda que viabilizaram o OE20 e não pode pensar que é possível incluir essas "velhas" medidas como novidades no OE21. Ao Governo importa tomar o soro da verdade. No SNS, o momento é dramático e terá consequências graves, a curto prazo, se o caminho não for corrigido agora. Dados do portal de transparência do SNS: há uma quebra de quase mil médicos entre Janeiro e Setembro deste ano (264 médicos de carreira e 654 internos), mesmo contando com contratações precárias de 4 meses. Os concursos que abriram nas últimas semanas não acrescentam médicos ao SNS, apenas colocam os que já lá estão e terminam a formação. Um quarto das vagas para 453 médicos de família ficaram vazias por falta de médicos interessados (portanto, menos 116 médicos), num país que já conta com um milhão de utentes sem médico de família (no último ano, 300 mil utentes perderam o seu médico de família).

Perante isto, o Governo prefere o logro de comparar publicamente o número de médicos em Dezembro e em Agosto, procurando a ilusão de crescimento: os números englobam os internos que entram no primeiro ano, mas não as saídas dos que terminam o internato ao longo do ano. É isto falar verdade e cumprir o compromisso assumido nas negociações para a viabilização do OE20 (nomeadamente com o BE) sobre o reforço do SNS e contratação de efectivos que reforcem o número de profissionais na saúde? Se nada for feito, no próximo ano o SNS perderá mais 1000 médicos devido à degradação das condições profissionais. Os assistentes operacionais de um hospital em Barcelos mudam de profissão quando abre um hipermercado novo que lhes paga um pouco mais. A contratação de enfermeiros é um pesadelo face aos turnos ingeríveis e à falta de condições. A dedicação plena com direitos prevista no OE20 desapareceu na proposta para o OE21. Onde está a vinculação dos enfermeiros e a carreira para técnicos auxiliares? O Governo anda a contar uma meia-verdade sobre o SNS e quer, à força, que os partidos à Esquerda a subscrevam. Mas há limites e há a mentira.

* Músico e jurista

O autor escreve segundo a antiga ortografia

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