Epidemia é comparativamente branda: nos EUA, 8,2 mil já morreram de gripe, neste inverno. Mas sua imensa repercussão remete a distopias tecnológicas, cidades convertidas em desertos e desejos secretos de segregar os diferentes
Slavoj Žižek | Outras Palavras | Tradução de Simone Paz Hernández
Muito de nós, inclusive eu, secretamente adorariam estar na cidade chinesa de Wuhan neste exato momento, vivenciando um cenário real de filme pós-apocalíptico. As ruas desertas da cidade nos remetem à imagem de um mundo não-consumista, em paz consigo mesmo.
O coronavírus está em todas as manchetes e eu nem ousaria me considerar um especialista em medicina, mas gostaria de levantar uma questão: onde terminam os fatos e onde começa a ideologia?
O primeiro enigma óbvio é: com tantas epidemias piores acontecendo no mundo, por que essa obsessão somente com ela, enquanto milhares de pessoas morrem diariamente de outras doenças infecciosas?
É claro que a pandemia de gripe de 1918-1920, conhecida como gripe espanhola, foi um caso extremo — quando o número de mortos chegou a pelo menos 50 milhões. Nos tempos atuais, a gripe já infectou, somente neste inverno, 15 milhões de norte-americanos: pelo menos 140 mil pessoas foram hospitalizadas e mais de 8.200 morreram.
Of course, an extreme case was the 1918-1920 influenza pandemic, known as Spanish flu, when the death toll is estimated to have been at least 50 million. Around this time, influenza has infected 15 million Americans: at least 140,000 people have been hospitalized and more than 8,200 people killed this season alone.
Parece, portanto, que há uma paranóia racista presente aqui Lembre-se daquelas fantasias sobre as mulheres de Wuhan esfolarem cobras vivas e tomarem sopa de morcego. Enquanto isso, na realidade, uma grande cidade chinesa deve ser um dos lugares mais seguros no mundo.
Mas há um paradoxo ainda maior em jogo: quanto mais conectado nosso mundo, maiores as chances de um desastre local desatar o pavor global — e até uma catástrofe.
Na primavera de 2010, uma nuvem gerada por uma pequena erupção vulcânica na Islândia provocou a paralisação de quase todo o tráfego aéreo da Europa — nos fazendo lembrar que, apesar de nossa grande capacidade para transformar a natureza, a humanidade nada mais é do que outra espécie viva do planeta Terra.
O terrível impacto socioeconómico de um pequeno evento como esse deve-se ao nosso desenvolvimento tecnológico (no caso, às viagens aéreas). Um século atrás, uma erupção dessas teria passado completamente despercebida.
O desenvolvimento tecnológico nos tornou mais independentes da natureza, porém, simultaneamente, num outro nível, mais dependentes de seus caprichos. O mesmo se aplica à disseminação do coronavírus: se tivesse acontecido antes das reformas de Deng Xiaoping, é provável que nem tivéssemos ouvido falar nele.