Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) poderia ser um bom exemplo de democracia participada, caso os processos de transmissibilidade nacionais fossem fiáveis e se a coesão democrática na União Europeia (UE) desse garantias de justeza e equidade.
A denominada "bazuca europeia" ou "vitamina" (o "downgrade", nas palavras de António Costa) será a resposta comunitária à sua mais profunda crise desde a II Guerra Mundial. Marshall para que te quero. Um pacote de recuperação global de 1,8 biliões de euros, soma do Orçamento plurianual 21-27 e do Fundo de Recuperação da UE. Para Portugal, seguramente mais de 45 mil milhões, acrescidos de empréstimos à la carte, dependentes do juízo de prudência e perigosidade do Governo português. Mas as incertezas são mais do que muitas.
A mutualização da dívida é uma excelente notícia, absolutamente impensável há cerca de dois anos. Assim como era inimaginável a activação da cláusula de escape do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) que suspendeu as regras que impõem limites aos países para a dívida pública (60% do PIB) e para o défice orçamental (3% do PIB). A pandemia teve o condão de tornar evidente a disfuncionalidade do sistema europeu. Mas a UE reagiu com coragem e capacitação ou apenas com o desespero do socorro momentâneo? Saber se as subvenções a fundo perdido serão mesmo uma conta comum a pagar por todos a partir de 2027, ao módico valor de 15 mil milhões/ano, e saber se o valor dos empréstimos irá contar ou não para o avolumar das contas da dívida pública exige respostas pelas quais ninguém se atravessa e sem as quais qualquer plano de recuperação será, a médio prazo, convertido em nova austeridade. Onde é que já vimos este filme?
A Europa vive agora a sua derradeira hipótese de redefinição, aquela que a salve dos populismos extremistas. Ou decide ser a Europa do "Plano de Acção para a Implementação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais", apresentado pela Comissão Europeia, onde até 2030 pretende promover o emprego, diminuir diferenças salariais, respeitar minorias, estimular a formação, retirar 15 milhões de europeus da pobreza e da exclusão social; ou prefere ser a UE que demora um ano a montar uma "Conferência sobre o Futuro da Europa", muito por responsabilidade do Conselho Europeu, a Europa que atrasou um ano e meio os apoios à pandemia devido às exigência dos frugais holandeses, austríacos, suecos e dinamarqueses e ao veto/chantagem de Budapeste e Varsóvia. Este é o momento em que a Europa tem que decidir se, como António Costa já admitiu, se pode fazer um "debate sereno" sobre a revisão das normas do PEC - onde as regras e velocidades não poderão continuar a ser iguais para todos porque ignoram as condições estruturais de cada um dos estados-membros - ou se prefere recuperar essas normas restritivas já em 2022, fazendo de conta que, antes da pandemia, o projecto europeu não era absolutamente desigual e não estava já doente.
*Músico e jurista
O autor escreve segundo a antiga ortografia
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