domingo, 14 de março de 2021

Portugal | Relatório de Sevícias ou (Se)viciado?

«Vivemos hoje uma fase política insidiosa em que uma onda revanchista, inspirada na extrema direita populista, tudo aproveita numa sinistra manobra cujo objetivo final é o ajuste de contas com o 25 de Abril. Depois do aproveitamento da morte Marcelino da Mata, “uma operação de abutres” como certeiramente lhe chamou Matos Gomes ressurge, com idêntico carimbo, o Relatório das Sevícias.»

Pedro Pezarat Correia* | opinião  

Entramos na semana do 11 de Março em que se somam 46 anos sobre o frustrado golpe de setores militares spinolistas que tinham na retaguarda, muitos sem o saberem, o MDLP e o ELP e visava inverter o processo revolucionário, impedir as eleições para a Constituinte e instaurar um “cesarismo” de poder pessoal. Culminou a contrarrevolução que se iniciara na própria noite 25 de Abril de 1974 com a emenda que Spínola, apoiado pela JSN, impôs ao Programa do MFA. As grandes roturas do PREC que aceleraram o ritmo da revolução foram, todas, mais do que iniciativas revolucionárias, respostas a golpes reacionários: Palma Carlos, 28 de Setembro, 11 de Março.

Vivemos hoje uma fase política insidiosa em que uma onda revanchista, inspirada na extrema direita populista, tudo aproveita numa sinistra manobra cujo objetivo final é o ajuste de contas com o 25 de Abril. Depois do aproveitamento da morte Marcelino da Mata (MM), “uma operação de abutres” como certeiramente lhe chamou Matos Gomes ressurge, com idêntico carimbo, o Relatório das Sevícias. Documento de 1976 foi, então, recebido com muitas reservas por membros do CR dada a óbvia intenção de salientar excessos em momentos críticos do PREC mas justificar os do 25 de Novembro.

Os canais da “oportuna” difusão do relatório, que nunca foi secreto, são os mesmos que se indignaram com a referência a atos criminosos da e na guerra colonial e é gritante, mas nada estranho, o dualismo de critérios que invocam. Sobre a guerra não há provas, não houve julgamentos, há que ter em conta o contexto bélico em que ocorreram. Quanto às sevícias, cuja gravidade não tem paralelo com aqueles, também não há provas, também não houve julgamentos, mas aqui o contexto, o de um processo revolucionário ameaçado por uma contrarrevolução violenta envolvendo o ELP, o MDLP, o Plano Maria da Fonte, a rede bombista, os apoios externos, não interessa. Os eventuais crimes da e na guerra há que esquecê-los para que não manchem a sua memória, as sevícias têm de ser apontadas para que não se esqueçam e não se repitam.

Há um pormenor que lhes escapa: os eventuais crimes da e na guerra colonial jazem no silêncio porque a ditadura os abafou e deles se serviu. As sevícias são públicas porque o próprio regime de Abril promoveu a sua investigação. Que importa isso?

A revivalista “glorificação” da guerra colonial, com o ignóbil aproveitamento da morte de MM, ensaiou uma manobra de diversão invocando os maus tratos que este sofrera no RALIS, nos quais tentou envolver Diniz de Almeida, um dos mais destacados militares do MFA. É obsceno. Diniz de Almeida é um homem digno, de caráter, corajoso e está acima dessa canalhice. Não estava no quartel, foi chamado com urgência para acudir à situação, logo que chegou resgatou MM, tirou-o das mãos dos “torquemadas” do MRPP. Isto é omitido no Relatório das Sevícias que, aliás, noutra passagem, até trata o MRPP como vítima. Não admira, no 25 de Novembro o MRPP foi “aliado” do Grupo dos Nove, esteve com os vencedores (efémeros) e viria a destacar-se nas represálias que, na sua sequência, também não faltaram.

É uma campanha aberrante e uma revisão da história. Se há algo consensual entre historiadores, politólogos, sociólogos, nacionais e estrangeiros, é a moderação da Revolução dos Cravos, o baixo nível de conflitualidade em que se desenvolveu, a tolerância com os responsáveis e torcionários do regime derrubado. E, é factual, os atos de maior violência tiveram sempre a marca da contrarrevolução.

Repito o que já escrevi, lamento que o PR esteja a deixar-se envolver nestas manobras sujas. Mas a mágoa maior, que me fere a alma, é “sentir” aí camaradas de Abril. Quem, conscientemente, participou no 25 de Abril, só por ignorância ou estupidez pôde surpreender-se por, com a instauração da liberdade plena, a guerra colonial ter ficado irremediavelmente condenada e, com ela, o próprio império. Se, hoje, capitães de Abril se sentem honrados por terem participado na guerra colonial, é porque admitem que os seus objetivos, a manutenção da ditadura e a preservação das colónias, eram justos. É então a altura de pedirem desculpa por terem participado no 25 de Abril que pôs fim à “honrosa” guerra e liquidou o império, essa nossa “pertença congénita”.
Por mim, estou tranquilo e em paz com o que fiz.

A terminar junto a minha voz às muitas outras que assinalam os 100 anos do PCP. Pelo seu passado de luta, foi precursor do 25 de Abril. Depois foi um dos partidos fundadores do regime democrático. Nunca tive e não terei qualquer ligação partidária, já concordei e já discordei do PCP. Hoje, como ontem, continuo a considerá-lo indispensável no processo democrático. É credor do meu respeito.

8 de Março de 2021

*O Diário.info

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