domingo, 25 de abril de 2021

EUA | Pobreza, fome e racismo não rimam com direitos humanos

António Abreu | AbrilAbril | opinião

A hipocrisia e a duplicidade de critérios na avaliação das situações concretas susceptíveis de por em risco direitos humanos já tem mais de cem anos nos EUA. Podem deitar para o lixo o disco: está riscado.

Se visitarmos Nova Iorque, guiados por uma agência de turismo, podemos, depois da Estátua da Liberdade, deslocar-nos em Manhattan, ao Times Square ao Central Park, passando pelo Memorial e museu do 11 de Setembro, pela Wall Street, pelo Empire State Building, pelo edifício das Nações Unidas, pelos quarteirões recheados das grandes marcas, ou o Centro Rockfeller. Outra opção é juntar-lhe visitas a bairros mais pobres onde as luzes da ribalta já não brilham – o Harlem, o Bronx, Brooklyn... Essa é reveladora de profundas divisões sociais e diferentes formas de procurar sobreviver. Outra dessas formas, menos conhecida, é a que percorre as páginas do livro Nomadland, da jornalista norte-americana Jessica Bruder1, em que a cineasta chinesa Chloé Zhao se baseou para realizar o filme com o mesmo nome, que chegou hoje às salas de cinema do nosso país, já premiado em países europeus, contando agora com seis nomeações a Óscares de Hollywood.

Segundo a autora, dos campos de beterraba da Dakota do Norte aos acampamentos da Floresta Nacional da Califórnia e ao programa CamperForce da Amazon no Texas, os patrões descobriram um novo pool de mão-de-obra de baixo custo, composto em grande parte por americanos idosos, mas temporários. A pandemia levou ao despejo de muitas dezenas de milhares de pessoas que deixaram de ter rendimento para pagar as rendas. Aos despejados juntaram-se muitos outros, que foram descobrindo que a Previdência Social é insuficiente, muitas vezes submersa em hipotecas, e que foram para a estrada às dezenas de milhares em RVs (veículos recreativos), trailers de viagem e furgões (vans) de último modelo, formando uma comunidade crescente de nómadas, que vivem a tempo inteiro na estrada. Procuram trabalhos ou biscates, acorrem às necessidades de trabalho sazonal, de um biscate. São trabalhadores migrantes que se autodenominam «workampers» e que venceram o medo de serem assaltados enquanto dormem nas viaturas, quando isolados. Mas que podem agrupar-se em parques de estacionamento a perder de vista, equipados de infraestruturas para a higiene pessoal e refeições. São milhares. Vêm das camadas altas e médias, mas são pobres e fazem parte dos 40 milhões de norte-americanos que vivem abaixo do limiar da pobreza. E onde estão também os 117 milhões de mais baixos salários, que não se alteraram desde 1970.

Nómadas sem glamour

O processo de pauperização dos brancos vinha de trás, com expressões semelhantes às características da dos afro-americanos – taxas de desemprego a subirem muito, maiores taxas de nascimento fora dos casamentos, maiores taxas de mortalidade e de dependência de opiáceos. Há dois séculos que estes deserdados são remetidos para uma espécie de campo de esquecimento, catalogado por «white trash» (lixo branco).

Esta abordagem recente no Nomadland destes nómadas dos nossos dias tem uma assinalável semelhança com As vinhas da ira, de John Steinbeck. Passado durante a Grande Depressão, o romance centra-se nos Joads, uma família pobre de rendeiros expulsos da sua quinta no Oklahoma pela seca, por dificuldades económicas, por mudanças na actividade agrícola e pela execução de dívidas pelos bancos forçando o abandono pelos rendeiros do seu modo de vida. Devido à sua situação desesperada, e em parte porque estavam no meio do Dust Bowl (tempestades de pó), os Joads foram para a Califórnia. Com milhares de outros «Okies», procuraram emprego, terra, dignidade e um futuro.

Sem dinheiro para as contas

Nos EUA ainda não existe um programa oficial de erradicação da pobreza extrema como o que foi concluído este ano na China.

Mais de meio século depois do presidente Lyndon B. Johnson ter declarado, em1964, «guerra incondicional à pobreza», os EUA ainda não descobriram como a vencer.

Assim, é para cada um de nós um dos grandes paradoxos dos nossos tempos: os Estados Unidos, país mais rico do mundo, têm alguns dos piores índices de pobreza no grupo dos países desenvolvidos.

O país teve, desde então, conquistas surpreendentes, como chegar à Lua ou gerir a internet. Mas, nesse período, conseguiu apenas uma moderada redução no índice de pobreza, que caiu de 19% para cerca de 12%.

Isso significa que, hoje, quase 40 milhões de americanos vivem abaixo da linha oficial de pobreza. Juntando os pobres que ainda estão acima dessa linha, são mais de 140 milhões de pessoas pobres ou que vivem com rendimento insuficiente para pagar as suas contas, o que representa 43% da população do total do país, considerado um dos mais ricos do mundo.

A fome que bate à porta

A fome batia à porta de uma em cada quatro casas nos Estados Unidos, no final do ano passado. Antes da pandemia mais de 35 milhões de americanos não tinham comida suficiente. Mas depois por efeito dela, da recessão, desigualdade em falta de apoios sociais às populações carenciadas, os EUA sofrem também com insegurança alimentar. A jornalista da BBC, Mariana Sanches, citando uma organização de combate a fome, afirmou que 1 em cada 6 norte-americanos encontram problemas para ter o que comer 2

O problema é muito maior e mais antigo do que se vê na actual pandemia do novo coronavírus, que também vem revelando o agravamento das questões sociais do país — os EUA têm o maior número de casos de Covid-19 no mundo e agora enfrentam os piores níveis de desemprego desde a Grande Depressão de 1930.

Noutro pontos do globo a pobreza tem sido reduzida lentamente. No Sul da Ásia, em 1990, cerca de 500 mil milhões de pessoas viviam na pobreza. Através da implementação de um programa efectivo de redução da pobreza que foi auxiliado por condições económicas favoráveis, a população de pobres no Sul da Ásia foi reduzida para 216 milhões de pessoas em 2015. Não apenas com subsídios, mas com formação e criação de situações de trabalho produtivo.

Mais ricos igual a muito mais pobres

O abismo entre ricos e pobres nos EUA só se tem aprofundado. Apesar do rendimento bruto ter crescido nas últimas quatro décadas, o mesmo aconteceu, porém, com a diferença entre os mais ricos e os mais pobres. De acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) «As desigualdades no rendimento aumentaram mais nos Estados Unidos do que em qualquer outro país desenvolvido desde 1980».

Segundo dados de países da OCDE de 2019, os EUA são o 11.º país com expectativa mais baixa de vida.

O país mais rico do mundo ocupa o quinto lugar entre as nações da OCDE com maior mortalidade infantil.

Depois do Chile, do México e da Turquia, os EUA são o quarto país com maior nível de desigualdade de rendimento, segundo dados publicados pela OCDE, usando um índice de Gini elaborado pela própria organização (diferindo, portanto, do Gini oficial de cada país).

Os Estados Unidos são um país com muitos recursos económicos, mas, paradoxalmente, ocupam o primeiro lugar no índice de pobreza de rendimento usado pela OCDE.

Num dos indicadores mais utilizados no âmbito internacional para comparar o rendimento escolar entre países, a avaliação Pisa de matemática, os EUA não aparecem bem posicionados. O país é o sétimo entre aqueles com pior resultado.

Nathan Driskell, director-associado de análise de políticas e desenvolvimento do Centro Nacional de Educação e Economia (NCEE, na sigla em inglês), afirmou à BBC News que em alguns casos o desempenho dos estudantes chega a figurar dois ou três anos atrás de seus pares de outros países.

Como autoproclamados líderes na defesa dos direitos humanos, os Estados Unidos têm estado na vanguarda da condenação do que os seus dirigentes consideram ser abusos dos direitos humanos no resto do mundo. No entanto, o sofrimento humano que se apresenta internamente muitas vezes não é suficientemente discutido. Se o presidente Joe Biden pretende liderar pelo exemplo, ele precisará não apenas abordar, mas erradicar questões que estão profundamente enraizadas na sociedade e – cada vez mais – no sistema político dos EUA.

O racismo continua a ser um dos principais problemas do país e continua a aparecer em muitas formas. O assassinato de George Floyd no final de maio de 2020 mais uma vez evidenciou sérias queixas contra as autoridades policiais norte-americanas. Ainda assim, a violência policial excessiva é apenas um dos muitos problemas enfrentados pela aplicação da lei americana.

Joe Biden está perfeitamente ciente desta injustiça, e criou a expectativa de poder ser o presidente que pode quebrar a barreira racial.

Mas não são apenas os afro-americanos que são frequentemente maltratados nos Estados Unidos. Os requerentes na fronteira sul de asilo nos EUA, em particular, tiveram seus direitos humanos violados durante o antigo governo de Donald Trump.

Os refugiados são frequentemente separados de suas famílias – e de seus filhos – e vivem em condições que as Nações Unidas criticaram como potencialmente violadoras do direito internacional. Estas condições deviam ser inaceitáveis para um país em cuja Estátua da Liberdade está escrito o poema: «Venham a mim as multidões exaustas, pobres e confusas ansiosas pela liberdade. Venham a mim os desabrigados, os que estão sob a tempestade... Eu guio-os com a minha tocha»3.

Quando os desordeiros de Hong Kong invadiram o Conselho Legislativo e tentaram espalhar a destruição na cidade, Nancy Pelosi, a presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, disse que era «um belo espetáculo de se ver». Quando aconteceu nos EUA, com o assalto ao Capitólio, ela chamou-lhe «terrorismo doméstico».

A hipocrisia e a duplicidade de critérios na avaliação das situações concretas susceptíveis de por em risco direitos humanos já tem mais de cem anos nos EUA. Podem deitar para o lixo esse disco já tão riscado.

Notas:

1.Entre nós ainda não foi traduzido. A FNAC tem à venda a versão original.

2.Em 29/12/2020.

3.Da poetisa Emma Lazarus, 1875.

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