quinta-feira, 8 de abril de 2021

Jihad avança em Moçambique

Um relatório de uma organização internacional especializada no estudo da relação do crime com o terrorismo (A iniciativa global de combate ao crime organizado transnacional, que usa o acrónimo em língua inglesa de GIATOC) publicado em Outubro de 2018 previa já uma evolução da Jihad em Moçambique muito próxima da que se tem vindo a verificar.

Paulo Casaca, em Bruxelas* | Jornal Tornado

De acordo com um despacho de 3 de Abril do canal público francês France 24 a petrolífera francesa Total tomou a decisão de abandonar todas as suas instalações na península de Fungi nos arredores de Palma perante o avanço das forças jihadistas, sendo pouco claro como poderão ser evacuadas as cerca de 15.000 pessoas que aí se tinham refugiado e fazendo temer o pior.

De acordo com o canal francês, ao longo dos últimos cinco anos, Moçambique sofreu centenas de ataques, milhares de mortos e centenas de milhares de fugitivos no que se perfila como um dos maiores teatros do assalto jihadista à escala mundial.

O desmoronamento de um investimento de 20 biliões de dólares, o maior de sempre em África, terá enormes consequências para interesses franceses que dominavam o projecto e constitui um sério revês quer para as autoridades moçambicanas quer europeias.

Um relatório de uma organização internacional especializada no estudo da relação do crime com o terrorismo (A iniciativa global de combate ao crime organizado transnacional, que usa o acrónimo em língua inglesa de GIATOC) publicado em Outubro de 2018 previa já uma evolução da Jihad em Moçambique muito próxima da que se tem vindo a verificar.

O saque dos recursos naturais – especialmente madeira contrabandeada para a China, mas também o marfim de elefantes ilegalmente chacinados e diamantes – o tráfico de droga e de refugiados que floresciam já antes do início da Jihad foram terreno propício para o financiamento da rede jihadista.

A doutrinação ideológica começou com a chegada dos refugiados somalis da Jihad a partir de 2006, data em que os jihadistas deixam de controlar directamente Mogadíscio. Os jihadistas conhecidos como ‘Al Sabaab’ – a Juventude – na Somália são também conhecidos pelo mesmo nome em Moçambique e são assim designados, por exemplo, pelo relatório de Outubro de 2018 a que fazemos referência acima.

O Al Shabaab Somali está hoje enquadrado pela Al Qaeda enquanto o seu homónimo moçambicano está integrado no ‘Califado’ ou Estado Islâmico.

O relatório de 2018 do GIATOC (p.17) explica, dando o exemplo da cidade de Palma, a lógica do recrutamento jihadista. Em fases anteriores do processo, o recrutamento fez-se através de emprego, bolsas de estudo e viagens para centros de treino. Porém, na altura em que esse relatório foi feito, o método de recrutamento seguido assentava já no microcrédito:

“Os primeiros líderes do Al Shabaab começaram a recrutar jovens para as suas mesquitas e madrassas (em vez de um movimento armado) com a oferta de empréstimos para o investimento. Esses empréstimos poderiam ser investidos em qualquer setor de seu interesse e todos os novos adeptos da seita se mudaram para o negócio. Alguns compraram barcos novos para a pesca, alguns começaram pequenas lojas vendendo alimentos e bens de consumo, e outros estabeleceram-se na reparação automóvel ou na venda de materiais de construção ou ferramentas elétricas.”

Os empréstimos estão longe de ser grátis, como explica o relatório:

“No entanto, é importante ter em conta que muitos dos que aceitaram os empréstimos do Al Shabaab não perceberam as consequências. Quando o momento chegou, foi exigido aos recrutas a venda dos activos adquiridos, presumivelmente para financiar os ataques (…). Na semana anterior ao ataque em Mocímboa da Praia, jovens de todas as cidades de Cabo Delgado venderam suas ações, lojas e casas e partiram para Mocímboa da Praia. No entanto, nem todos estavam preparados para isso. Ao que soubemos os recrutadores do Al Shabaab foram vagos sobre as condições ligadas aos seus empréstimos. Os jovens foram informados de que os empréstimos eram livres de juros e poderiam ser investidos, no entanto, quando o movimento requereu, eles foram obrigados a vender o que tinham. Aqueles que desobedeceram são punidos. (…) são decapitados ou, se desaparecem, as consequências recaem sobre as suas famílias.”

Nesta passada semana li vários relatórios internacionais – todos eles publicamente disponíveis – sobre o desenvolvimento da Jihad no ‘crescente Swahili’, que vai do Sul da Somália ao Norte de Moçambique, alguns mais outros menos interessantes; este que citei aqui desenvolvidamente foi talvez o mais interessante de todos.

Da leitura feita, a conclusão que é para mim mais óbvia é que tudo o que vemos agora a desenvolver-se em Moçambique é não só a repetição do que se viu noutras paragens mas foi previsto, por vezes com algum detalhe.

No livro de que sou o editor principal ‘Terrorismo Revisitado’ preocupei-me em explicar em particular três coisas:

1. que o Jihadismo é de longe a forma contemporânea mais importante do fenómeno;

2. que a doutrinação jihadista é o elemento essencial a ter em conta antes de o fenómeno eclodir e

3. que a guerra da informação é o principal campo onde ele se trava.

Tudo isto parece ter sido pouco ou nada escutado. A forma como o Ocidente continua a ignorar o fenómeno da doutrinação jihadista e como deixou que o Jihadismo tomasse conta dos mecanismos de formação da opinião e de veiculação da informação é absolutamente escandalosa e aflitiva.

A Jihad em Moçambique é o resultado de um Estado de extrema fragilidade que é o de Moçambique, mas é também o resultado de um Ocidente cuja incompetência, venalidade e incapacidade para lidar com o fenómeno é talvez um sintoma maior.

A menos que se abram olhos, se denunciem conflitos de interesse, se abandonem cegueiras ideológicas, e consequentemente se extirpem os agentes ideológicos ou comerciais do jihadismo que parasitam as instituições ocidentais, o drama está para durar e agravar-se.

Desiludam-se os que pensam que isto é flagelo específico para o terceiro mundo!

*Paulo Casaca, em Bruxelas -- Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

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