quinta-feira, 1 de abril de 2021

Portugal | Uma guerra de palácios

Jornal de Notícias | editorial

Se Marcelo Rebelo de Sousa foi mais político do que jurista, António Costa escolheu a via jurídica para justificar o ponto de viragem na convergência institucional entre o Governo e a Presidência da República.

A mensagem é clara, o tom pouco habitual. Ao anunciar o envio para o Tribunal Constitucional do pacote que alarga apoios sociais, aprovado pela coligação negativa que juntou todos contra o PS no Parlamento, o primeiro-ministro invocou a lei, depois de o presidente e renomado constitucionalista ter admitido que tempos excecionais poderiam justificar expedientes excecionais, numa tentativa de justificar a promulgação.

O desfecho deste braço de ferro entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém é imprevisível. Não apenas porque estão em choque conceitos constitucionais, desde logo os relacionados com os efetivos poderes do Parlamento e do Governo, mas também porque, ao fazer uma interpretação tão flexível da chamada lei-travão (que impede que a Assembleia da República tome qualquer iniciativa legislativa com impacto na receita e na despesa orçamentadas pelo Governo), o presidente corre o risco de criar condições para tornar ainda mais penosa e ingerível a tarefa de um Governo minoritário. Mesmo que tenha traçado um risco preventivo para delimitar tentações futuras.

No meio destes dois palácios estão cerca de 130 mil portugueses que viram ser aprovadas novas ajudas a sócios-gerentes e trabalhadores independentes, a profissionais de saúde e a pais em teletrabalho com filhos em casa. Ora, independentemente da força dos argumentos jurídicos defendidos por Costa e subvalorizados por Marcelo (apenas o Tribunal Constitucional poderá determinar quem está a ler corretamente a Lei Fundamental), a verdade é que os apoios em causa são justos, necessários e urgentes. De outra forma, de resto, não se compreenderia que todos os partidos da Oposição e o presidente ficassem do mesmo lado da causa. Todos contra Costa.

E daqui resulta a pergunta fundamental: pode a Constituição ser moldada às necessidades dos tempos, sobretudo quando os tempos são de urgência económica e social? A resposta é jurídica, mas é igualmente política. E também por isso é que este primeiro dia do resto da segunda vida entre Costa e Marcelo se reveste de uma enorme importância, pelo que significa em termos de jurisprudência e de equilíbrio de poderes.

Não são de hoje os sinais de afastamento crescente. As juras de amor que ecoaram no primeiro mandato de ambos foram-se degradando e os episódios recentes sobre a velocidade e a forma do desconfinamento são a prova cabal de uma evolução no relacionamento entre as duas figuras que seguram o regime. Marcelo tem insistido na necessidade de o Governo durar até ao final da legislatura, Costa tem feito o possível para manter vivo (pelo menos na aparência) o espírito de convergência com Belém.

A crise política tem outra ponta do triângulo no Parlamento. Mais uma vez de futuro incerto. Desde a noite eleitoral que o Governo se habituou a antevisões de dificuldades para a segunda metade do mandato e a negociação do próximo Orçamento poderá ser uma dor de cabeça. Mas se o Tribunal Constitucional lhe der razão, Costa terá conquistado argumentos para travar tentações excessivas da Oposição. Uma vitória que poderá, a médio prazo, vir a trazer-lhe mais ganhos do que as perdas políticas aparentes de uma posição impopular em tempos de pandemia e em ano de eleições autárquicas.

A Direção JN

Sem comentários:

Mais lidas da semana