quarta-feira, 12 de maio de 2021

A União Europeia é a potência mais egoísta do planeta?

Pedro Tadeu* | Diário de Notícias | opinião

Adoro que haja países que digam "não" aos Estados Unidos da América, quanto mais não seja para diminuir um pouco a sensação sufocante de que os seus governantes mandam no mundo a seu bel-prazer. Mas quando é o governo dos Estados Unidos da América a propor a chamada suspensão das patentes das vacinas para a covid-19 e o "não" a esta ideia vem dos seus aliados da União Europeia (UE) - quase sempre servis em quase todos os assuntos deste planeta - mordo a língua...

A Índia e a África do Sul tinham enviado à Organização Mundial de Comércio (OMC), em março do ano passado, uma proposta de licenciamento compulsório.

Este é o termo correto da operação que erradamente andamos a dizer ser uma "suspensão de patentes", numa formulação que cria logo a ideia na opinião pública de se estar a querer uma espécie de "roubo de propriedade intelectual", o que é mentira.

Este "licenciamento compulsório" até já se fez várias vezes para, por exemplo, dar acesso a certos países a medicamentos de tratamento à sida. A ideia não é, portanto, original, tem previsão legal nas regulamentações da OMC e há regras acordadas mundialmente, no âmbito do acordo TRIPS, para aplicar medidas assim.

Grosso modo, a coisa funcionaria assim: sempre que um titular de uma das patentes, durante uma fase aguda da pandemia, não conseguisse satisfazer as necessidades de vacinas de um país, esse país teria o direito de as mandar fabricar durante um período de tempo previamente determinado, a troco do pagamento de uma remuneração ao detentor da patente.

Se o detentor da patente não der este licenciamento voluntariamente durante esse período, então o país pode considerar a patente cedida gratuitamente e avançar para o fabrico.

Claro que há um milhão de nuances e de complicações técnico-jurídicas à volta disto, mas a base de discussão é aquela: cedência provisória do licenciamento para fabrico local, a troco de um pagamento - bastante mais baixo do que o da compra "normal", sim, mas um pagamento, não "um roubo".

A UE definiu uma política para as vacinas contra a covid-19 que tem num dos seus principias pressupostos esta ideia: as vacinas que a Europa comprar têm de ser produzidas em fábricas localizadas dentro da própria União.

Este pressuposto foi um dos vários motivos para o atraso inicial na vacinação dentro da UE e para a teimosia (para além de razões de política mesquinha) em não aceitar acordos de fornecimentos com marcas que não fabricavam na UE - e isto matou pessoas, que não foram vacinadas a tempo.

Quando António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, repetindo as teses da Alemanha e da Comissão Europeia, dizem que a solução para o fornecimento das vacinas aos países pobres está em aumentar a produção, e não em ceder patentes, estão a propagandear uma falácia: como é óbvio, se mais países, com esses licenciamentos provisórios, pudessem fabricar vacinas, mais rapidamente se resolveria o problema do fornecimento e da escalada de preços que a inicial falta destes medicamentos, entretanto, provocou.

O que interessa à UE é o que o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, disse este fim de semana em Portugal, à margem da (ironicamente) Cimeira Social que decorreu no Porto: "Cerca de 50% das doses produzidas em solo europeu são exportadas, o que atesta a solidariedade, o nosso empenho em manter abertas as cadeias de abastecimento."

Na realidade, isto nada tem de solidário. O que isto quer dizer é que a UE não quer abdicar da sua quota no negócio da exportação de vacinas para os países pobres, no âmbito do projeto "solidário" Covax.

Se as empresas que fabricam na Europa cederem licenças compulsórias a países como, por exemplo, o Brasil, a África do Sul ou a Índia, estes poderiam, durante esse período, entregar (e cobrar) à Covax aquilo que a UE deixaria de fornecer. As perdas financeiras para as fábricas europeias seriam certamente relevantes.

Entretanto, os dirigentes europeus atiram-nos com a palavra "solidariedade" em cada declaração que fazem e escondem um egoísmo que pode levar o mundo a retardar o fim dos efeitos da pandemia - e, entretanto, vão morrendo mais pessoas e as economias, mesmo as europeias, empobrecem. Não é estúpido?

*Jornalista

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