quarta-feira, 21 de julho de 2021

Portugal | Os juízes legisladores

Luís Menezes Leitão* | jornal i | opinião

Os juízes pretendem agora transformar-se em legisladores, propondo novas leis em lugar de aplicar as leis vigentes, o que constitui uma violação grosseira do princípio da separação de poderes.

O Estado de Direito atravessa presentemente em Portugal uma crise profunda, com a sucessiva violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, a qual nem sempre tem sido travada pelos Tribunais. Grande parte dessa situação ocorre em virtude de a independência do poder judicial não estar a ser adequadamente assegurada, com a existência de portas giratórias entre o Governo e os Tribunais. Temos hoje juízes dos tribunais superiores em lugares de governo ou até como assessores do governo. Agora entrámos, porém, numa nova fase, que é a proposta de iniciativas legislativas por parte de magistrados judiciais, enquanto estão em funções nos tribunais. Os juízes pretendem assim agora transformar-se em legisladores, propondo novas leis em lugar de aplicar as leis vigentes, o que constitui uma violação grosseira do princípio da separação de poderes.

O pontapé de saída para esta nova fase já tinha sido dado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), que apresentou uma proposta de lei para a criminalização do enriquecimento ilícito, que os partidos políticos prontamente acolheram. Mas quem foi mais longe neste domínio foi o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que, numa entrevista recente, não apenas propôs novas leis, mas também profundas alterações à Constituição, o que nos parece contrário à sujeição dos Tribunais à lei e à Constituição.

Em relação à criminalização do enriquecimento ilícito, o Presidente do STJ acha a proposta da ASJP uma “solução minimalista” e considera que o legislador ultrapassará com “vontade e esforço” os “obstáculos apontados pelo Tribunal Constitucional”, onde entende que “há muito conservadorismo”. Ficamos a aguardar para saber por que forma esse legislador voluntarioso e esforçado irá remover os obstáculos colocados por esses juízes conservadores, esperando-se que não seja através da eliminação da fiscalização da constitucionalidade das leis, imposta pelos arts. 277º e ss. da Constituição.

Isto porque o Presidente do STJ chega ao ponto de propor que a revisão constitucional que defende consagre a extinção da jurisdição administrativa, prevista no art. 212º da Constituição, propondo assim que o STJ, que ele próprio dirige, absorva outro Supremo Tribunal, o Supremo Tribunal Administrativo, que hoje é pela nossa Constituição o órgão máximo de uma jurisdição distinta, com uma Presidente própria.

Ao mesmo tempo, o Presidente do STJ propõe-se abolir a norma do art. 209º, nº5, da Constituição que proíbe a criação de tribunais especiais para o julgamento de certas categorias de crimes, defendendo a criação de um tribunal especial semelhante à Audiência Nacional espanhola, que se caracterizou precisamente por uma punição severíssima dos independentistas catalães, levando o poder político espanhol a aprovar uma amnistia para esses delitos. Manifestamente que esta não seria uma solução adequada para Portugal.

E, finalmente, o Presidente do STJ acha que há excesso de garantias de defesa, propondo-se cortar com elas para se ter uma justiça mais rápida. Não só esta proposta é claramente inconstitucional, uma vez que o art. 32º, nº1, da Constituição determina que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso, como também não corresponde minimamente à realidade dos factos. O que o país assistiu nos últimos tempos foi à detenção de cidadãos por vários dias, alguns dos quais advogados, sem qualquer justificação plausível, e em relação aos quais nem sequer chegou a ser pedida ou decretada a sua prisão preventiva. E Portugal deve ser dos poucos países do mundo em que alguém pode ser condenado por um tribunal superior, sem um novo julgamento, depois de ter sido absolvido por um júri. O problema de Portugal não é assim de excesso de garantias de defesa, mas até de ausência das mesmas. Ora em caso algum se pode admitir, num Estado de Direito Democrático, que o objetivo da celeridade dos processos seja motivo para condenações injustas, como manifestamente ocorreria se as garantias de defesa fossem reduzidas.

Como tem sido sempre seu apanágio, os advogados portugueses irão defender o Estado de Direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos contra quaisquer iniciativas legislativas que os contrariem, mesmo que as mesmas tenham origem no poder judicial.

*Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

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